Litri, o pai, é um velho matador que já despachou centenas e centenas de touros em momentos de suprema verdade, com praças em profundo e respeitoso silêncio. Há dias, dizia Litri que «o touro é um animal nobre, inteligente e com sentimentos. De tal maneira que quase sempre os vejo chorarem durante a faena. E a um de tal modo lhe tombavam as lágrimas que por isso mesmo o poupei».
É bonito ouvir-se falar de um adversário, seja ele quem for, com esta dignidade e com este respeito, desde que o inimigo o mereça, bem entendido. E é tão raro acontecerem ambos os factos à nossa volta que não pude hoje deixar de pensar nas palavras de Litri, o pai, proferidas para andaluza gazeta. E aqui as trago, deste modo, à colação, no que se pretende um breve comentário sobre ideias gerais, que não uma crónica tauromáquica, género aliás dos mais nobres no nosso jornalismo, ao longo dos tempos, cultivado por brilhantes penas e competentes observadores.
Só que a corrida – o respeito que lhe tenho impede-me de usar o vocábulo tourada, este mais conforme com o triste espectáculo produzido e interpretado apenas por humanóides –, por ser uma luta de morte, muito deve contribuir para que se fale e honre a vida.
Litri, o filho, que de êxito em êxito segue as pisadas paternas em ruedos onde se respeita quem combate, dizia também a um Jornal de Huelva que «o touro tem medo do toureiro. Por isso, este deve permanecer junto dele, e impor-se, para além do momento da sua morte».
Em Portugal, terra de brandos costumes, poucos são os que respeitam adversários e a sua morte; talvez assim suceda porque igualmente poucos são os que conservam amigos e os que vivem a vida tal como se deve viver; tão-pouco é raro que se assuma o mal que se pratica, de preferência e sempre que possível à porta fechada, ou à boca calada, qualidades que nos devem restar da herança dos inquisidores e dos cristãos-novos, de quem descendemos, sobrevivendo com a histórica paciência do cá-vamos-andando, preferindo esmagadoramente a resignação e dando privilégio de minoria à resistência, na esperança de virmos a ganhar, quem sabe, o reino dos céus, ora-nunca-se-sabe, pois-podia-ser-bem-pior, sempre, sempre com o credo na boca.
Mas se ao não se pretender que este breve comentário se converta, por inadvertência, em crónica tauromáquica, igualmente urge evitar a queda em filosóficas reflexões, à volta do redondel, que nem agradecimento aos tércios mereceriam. Impõe-se, portanto, que o texto consiga ficar cingido ao vago tema impreciso e suscitado por respeitosas palavras de dois toureiros dignos desse nome, por acaso pai e filho.
Ter-se-á, então, que passar pela distância que medeia entre a verdadeira corrida que só existe em Espanha e na Hispano-América e aqueles espectáculos pobres com infelizes e trôpegos novilhos forçados a coxearem atrás de bem ajaezados cavalos de não menos elegantes senhoritos. É que sou do tempo em que a cavalo e a sério havia Simão da Veiga e João Núncio, que como bem podem imaginar nada tinham que ver com os modernos Fittipaldis das vacas taurinas. E sou também do tempo em que a pé, que é como de verdade se vê quem manda, quem tem arte e outras coisas en su sitio, havia Ordoñez e Dominguin, já que um Carlos Arruza ou uma Conchita Citrón eram o qualificado prenúncio dos desplantes e dos descabelos que hoje avassalam as nossas pobres praças, nessas touradas propriamente ditas, em que até os animais chegam a ser corridos mais de uma vez, e com os cornos tão limados e embutidos com tal perfeição que a virilidade lusitana ficaria em perigo de sério desprestígio se não tivesse o apoio do fado de Lisboa e de Coimbra, que a cobre, e a canta, para satisfação da sua proverbial fanfarronice.
Enfim, também nos touros, onde nunca fomos multo assumidos, se perdeu a qualidade e a exigência, a frontalidade e o rigor, a nobreza e o carácter. As touradas com curro mais parecem, por cá, os velhos combates da Bom-Boxe.
De corrida, cada vez mais só conhecemos a das ratazanas, que é corrida traiçoeira, com fintas e tarrascadas, sem regras nem preceitos, mas obviamente ornamentada com as cortesias das falsidades e das infidelidades, ao som (em pasodoble) das traições. Para além de cada vez mais se cuspir no prato onde se come, é bom também que se diga que o queijo é cada vez mais tipo e menos serra; e o traque das ratoeiras é de tão intensa cadência que mais parece uma rajada.
Às apalpadelas e às escorregadelas tem de se avançar, prudentemente, mas sem medo e também atento ao veneno para o escaravelho, recusando até ao fim o movimento de rastejar. Enfim, tudo isto são bichezas.
Bichezas de quem é incapaz de pegar a vida de caras.
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