FICAVA MUITO CONTENTE sempre que no seu táxi apanhava alguém de quem gostasse. Fazia por isso, imaginando o tipo de pessoa que lhe convinha transportar, em conformidade com o diálogo que gostaria de travar no trajecto seguinte e o itinerário que fazia questão em percorrer.
Era delicado. Antes de colocar o taxímetro em funcionamento, de espreitar se poderia acelerar de junto do passeio e perder-se no meio do tráfego, cumprimentava quem se tivesse sentado no banco de trás, perguntava se a música não incomodava, fazia um comentário ao estado do tempo e arrancava.
Guiava sempre com suavidade. Entendia, de resto, que da delicadeza e da economia dos seus gestos beneficiava ele próprio e imaginava que um dia uma jovem haveria de lhe perguntar:
- Porque é que você é chofer de praça?
Tinha tudo estudado para a eventualidade de isso lhe suceder. A resposta e aquilo que seria a sua parte do diálogo estavam firmemente memorizadas. Quando ele desejasse que essa situação se materializasse sabia que isso sucederia.
John, Chauffeur Russo impressionara-o muito quando o lera, e seria assim que gostaria de dar a volta a uma mulher. A alguém que nada soubesse a seu respeito, que o visse num estatuto inferior e a quem pudesse vir a conquistar primeiramente pelo seu aspecto e maneiras, depois pela sua educação e cultura, finalmente pelos seus atributos inquestionáveis.
Desistiria depressa, receando a rotina de dia após outro a trabalhar para a mesma família, o patrão ao escritório, a patroa a casa de amigas, os dois à ópera e os filhos à escola e aos concursos hípicos. Decidira não ser nunca chofer particular.
A praça fascinara-o. A possibilidade de correr toda a cidade, as hipóteses de ouvir conversas interessantes, as oportunidades de conhecer permanentemente gente nova e diferente, de ser livre nos seus percursos fizeram-no decidir-se pela praça, definitivamente. E foi com entusiasmo que uma tarde preparou o carro que sempre imaginara e, aproveitando não estar ninguém em casa a quem tivesse de dar satisfações, partiu para as suas aventuras avulsas, como vingador solitário de banda desenhada ou herói romântico de fotonovela.
Como todos os motoristas de táxis de Lisboa, adorava serviços para o Estoril. Para ele era o destino que contava, pouco importava a rentabilidade do serviço ou o pagamento do retorno.
Adorava correr pela Marginal, preferia fazê-lo com sol, os olhos nas curvas suaves da estrada, por vezes a despistarem-se para o rio até ao Bugio, quando havia pouco tráfego.
«Um dia», pensava consigo próprio, «aparece-me uma judia rica, de Nova Iorque, que veio jogar no Casino, ficamos noivos, casamos e vamos viver no estrangeiro.»
Não sabia explicar a razão, mas sempre que pensava numa mulher que valesse a pena tratava-se sempre de uma Judia de Nova Iorque.
O carro entrou na subida ligeira para Caxias e Paço de Arcos.
Transportava um inglês idoso que apanhara na Baixa, bem vestido de tweed verde-oliva. Sorriu, o comboio corria com ele, paralelo, às vezes desaparecia para voltar a aparecer mais próximo, como se brincasse às escondidas e ao toca-e-foge. Meteu uma mudança e acelerou, deixando a composição para trás, condenada a seguir o capricho dos carris, por entre alas de casas e de árvores. Do outro lado, do seu lado, como se estivesse parado na água, enorme e preocupante sob a chapada de sol que o deixava em contraluz, um petroleiro de grande porte parecia perigosamente próximo de terra.
- Quando chegar ao Estoril, eu indico-lhe o resto do caminho - disse-lhe lá de trás o inglês, envolto numa nuvem de John Players e de alfazema.
- Okay! Eu abrando para não me enganar. Não conheço as ruas do Estoril.
Imaginou o seu passageiro nos anos da guerra a beber vinho do Porto no bar do Hotel Palácio. Podia ter sido um agente ao serviço de Sua Majestade e ter regressado agora de férias ou para recuperar uma arca de barras de ouro que enterrara num quintal. Abrandou e encostou-se bem ao passeio para ser ultrapassado por um grande Mercedes bege. Reduziu ainda mais a velocidade, sorrindo para o petroleiro gigantesco e disse com o melhor sotaque que ouvira no cinema:
- Lovely day!
- Yes, lovely day - respondeu o inglês, que não disse mais nada até chegarem às palmeiras do Estoril.
Foi no regresso, já depois de largar o passageiro, que a sua vida profissional sofreu um estrago irreparável, que teve consequências nefastas que se prolongaram até hoje.
Ouviu um pequeno ruído atrás de si. O retrovisor não assinalou nada que não devesse. No entanto, de repente, num fragor muito maior do que qualquer desastre, num rompante que não chegara a imaginar sequer em qualquer operação stop:
- Salte já daí!!! Que julga você que está a fazer? Logo, vamos conversar!!
O jantar foi pior do que o auto de apreensão de carta.
A mesma voz acusava, por entre garfos e pratos e copos, testemunhas mudas daquele julgamento sem defensor oficioso:
-... E imagina que o apanhei, com as pernas dentro da cristaleira, onde guardamos o serviço de Limoges, sentado numa de quatro cadeiras muito juntinhas, duas à frente e duas atrás, a olhar para o espelho do alçado, a fingir que guiava com uma tampa de marmita de tupperwear e a fazer mudanças com o desentupidor da retrete!!!
Todo o seu sonho desabara. Deixara de soprar ali a brisa fresca da Marginal, o esconde-esconde com o comboio, os mistérios insondáveis dos seus passageiros, o petroleiro perigosamente próximo da terra.
Antes que a mesa toldada e trémula desaparecesse por completo dos seus olhos e o prato se desvanecesse da sua frente, de modo a que a colher nada encontrasse, decidiria que, não podendo fazer mais alegres corridas com o comboio do Estoril, iria dar rumo novo à sua vida: apanharia o próximo paquete, com destino a Nova Iorque.
E foi antes que as primeiras lágrimas lhe caíssem na canja que resolveu qual seria a sua próxima profissão.
Uma vez chegado a Nova Iorque, iria ser barman. E jurou a si próprio que, quando fosse grande, teria um bar, um táxi e uma jovem judia.
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