METEM POEMAS DEBAIXO DOS NOSSOS PÉS. Com a discrição de quem não sabe escrever e só fala quando tem coisas importantes a dizer.
Curvados sobre os joelhos, sentados sobre os calcanhares, escrevem poemas a preto e branco nas calçadas da cidade que, esventrada, se abre e entrega aos devaneios deles.
De martelo e pedras escolhidas nas mãos, cobrem a pele da cidade com uma tatuagem fina, filigranada. É a sua forma de escrita, resistente e pesada como o calcário que manuseiam, com o qual dizem flor, amor, barco, corvo, curva, cálice, verdade.
São bandos silenciosos e rasteiros, olhando pedra a pedra, estudando a rua onde se sentam, com os olhos a um nível nunca superior aos calcanhares indiferentes que se afastam. Vêm de fora, com a pele curtida e as mãos duras, que volteiam calhau após calhau. E levam-nos, em camionetas, em bandos silenciosos e encarrapitados nas caixas abertas, sem nunca olharem para trás, para aquilo que deixaram escrito para ser pisado pelos pés indiferentes a poemas figurados, com rima em amor, flor, barco, arco, corvo, curva, cálice, verdade.
Enfeitam a cidade que não é deles. E silenciosos se vão embora, assim calados e sem remetente, para as suas terras sem pedras no chão a enfeitarem o caminho dos passos desencontrados.
Nas ruas das terras deles, o enfeite é, normalmente, outro. Quase todas têm apenas por adorno filas de laranjeiras amargas, coloridas e cheirosas para os tristes e frios dias de Inverno.
Sempre que alguém quer um poema de pedra escrito nas ruas de uma cidade, a preto e branco, certo, de caligrafia regular (a única que conhecem no território calcário que é o seu) vão buscá-los. E lá ficam, rasteiros e silenciosos, de pedras e martelo nas mãos, a fazerem a caligrafia que aprenderam em meninos e que nunca conheceu reformas ortográficas nem grafismos electrónicos.
É um trabalho paciente, pedra a pedra, peça a peça, um bordado meticuloso, certo, combinado, escrito com a lentidão de quem escolhe as palavras que ali vão ficar mudas, em figuras silenciosas, a dizerem-nos coisas simples e belas que vão de laranja amarga a amor, flor, barco, arco, corvo, curva, cálice, verdade.
Por vezes, mais parece um difícil quebra-cabeças, destinado à indiferença das solas-para-que-vos-queremos de quem tem destino certo, ou simplesmente vagueia num mosaico a preto e branco, desenhado a calcário por estes homens que chegam, e partem, silenciosos, no seu cotim, cinzentos, em caixas abertas de camionetas escuras e sorumbáticas, que os aguardam enquanto trabalham.
A exposição dos seus trabalhos não tem vernissage possível. Quando muito, uma mangueira possante, a atirar para longe restos de areia que serviu de leito às pedras colocadas depois de partidas com ponderação, para encherem a parte do desenho que lhes compete.
Sentam-se em pequenos tacos, ou caixas, de madeira, quase nos próprios calcanhares, e olham o que fazem por entre os joelhos, sem levantarem os olhos a não ser com grande indiferença, às vezes até com uma certa vergonha, para os poucos que acidentalmente param, mirando com apreciação o que fazem.
Engolem ali mesmo o almoço, entre pedras por partir, fios de nível para alisar o chão futuro dos nossos pés. Falam pouco, mesmo entre si, e quanto a rir é bom nem pensar.
Só se ocupam de ruas e calçadas nobres, onde normalmente há mais pés e mais pressa do que em outras, onde há mais tempo e mais olhos para admirarem os desenhos que podem deixar.
Metem poemas debaixo dos nossos pés. Com a discrição de quem não sabe escrever e só fala quando tem coisas importantes a dizer. Com a humildade de quem espera não ser entendido, com a tristeza de quem muito menos pensa vir a ser apreciado.
Tecem, pois, com as suas pedrinhas, que partem na mão com a delicadeza de quem liberta uma noz da casca, tapetes que ninguém nos pode puxar. Deixam-nos, belo, um chão sólido que podemos pisar com firmeza, sem receio de alçapões ou outras falsidades. E depois, cinzentos de cotim, ignorados e silenciosos, partem sem um olhar para o que deles ali deixaram.
Normalmente, só os avós os entendem. Seguram, aos domingos, as mãos dos netos, e apontam-lhes o chão que estes homens nos vão deixando, mostrando e explicando cada coordenada destes mapas desprezados da geografia citadina. E devagar, com muita paciência, como aquela que só os avós sabem ter para os netos, mostram-lhes a rima do poema, a sua métrica, escrito à mão, pedra a pedra, a preto e branco, com desenhos e riscos que nos falam, nos versos certos de amor, flor, barco, arco, corvo, curva, cálice, verdade.
Curvados sobre os joelhos, sentados sobre os calcanhares, escrevem poemas a preto e branco nas calçadas da cidade que, esventrada, se abre e entrega aos devaneios deles.
De martelo e pedras escolhidas nas mãos, cobrem a pele da cidade com uma tatuagem fina, filigranada. É a sua forma de escrita, resistente e pesada como o calcário que manuseiam, com o qual dizem flor, amor, barco, corvo, curva, cálice, verdade.
São bandos silenciosos e rasteiros, olhando pedra a pedra, estudando a rua onde se sentam, com os olhos a um nível nunca superior aos calcanhares indiferentes que se afastam. Vêm de fora, com a pele curtida e as mãos duras, que volteiam calhau após calhau. E levam-nos, em camionetas, em bandos silenciosos e encarrapitados nas caixas abertas, sem nunca olharem para trás, para aquilo que deixaram escrito para ser pisado pelos pés indiferentes a poemas figurados, com rima em amor, flor, barco, arco, corvo, curva, cálice, verdade.
Enfeitam a cidade que não é deles. E silenciosos se vão embora, assim calados e sem remetente, para as suas terras sem pedras no chão a enfeitarem o caminho dos passos desencontrados.
Nas ruas das terras deles, o enfeite é, normalmente, outro. Quase todas têm apenas por adorno filas de laranjeiras amargas, coloridas e cheirosas para os tristes e frios dias de Inverno.
Sempre que alguém quer um poema de pedra escrito nas ruas de uma cidade, a preto e branco, certo, de caligrafia regular (a única que conhecem no território calcário que é o seu) vão buscá-los. E lá ficam, rasteiros e silenciosos, de pedras e martelo nas mãos, a fazerem a caligrafia que aprenderam em meninos e que nunca conheceu reformas ortográficas nem grafismos electrónicos.
É um trabalho paciente, pedra a pedra, peça a peça, um bordado meticuloso, certo, combinado, escrito com a lentidão de quem escolhe as palavras que ali vão ficar mudas, em figuras silenciosas, a dizerem-nos coisas simples e belas que vão de laranja amarga a amor, flor, barco, arco, corvo, curva, cálice, verdade.
Por vezes, mais parece um difícil quebra-cabeças, destinado à indiferença das solas-para-que-vos-queremos de quem tem destino certo, ou simplesmente vagueia num mosaico a preto e branco, desenhado a calcário por estes homens que chegam, e partem, silenciosos, no seu cotim, cinzentos, em caixas abertas de camionetas escuras e sorumbáticas, que os aguardam enquanto trabalham.
A exposição dos seus trabalhos não tem vernissage possível. Quando muito, uma mangueira possante, a atirar para longe restos de areia que serviu de leito às pedras colocadas depois de partidas com ponderação, para encherem a parte do desenho que lhes compete.
Sentam-se em pequenos tacos, ou caixas, de madeira, quase nos próprios calcanhares, e olham o que fazem por entre os joelhos, sem levantarem os olhos a não ser com grande indiferença, às vezes até com uma certa vergonha, para os poucos que acidentalmente param, mirando com apreciação o que fazem.
Engolem ali mesmo o almoço, entre pedras por partir, fios de nível para alisar o chão futuro dos nossos pés. Falam pouco, mesmo entre si, e quanto a rir é bom nem pensar.
Só se ocupam de ruas e calçadas nobres, onde normalmente há mais pés e mais pressa do que em outras, onde há mais tempo e mais olhos para admirarem os desenhos que podem deixar.
Metem poemas debaixo dos nossos pés. Com a discrição de quem não sabe escrever e só fala quando tem coisas importantes a dizer. Com a humildade de quem espera não ser entendido, com a tristeza de quem muito menos pensa vir a ser apreciado.
Tecem, pois, com as suas pedrinhas, que partem na mão com a delicadeza de quem liberta uma noz da casca, tapetes que ninguém nos pode puxar. Deixam-nos, belo, um chão sólido que podemos pisar com firmeza, sem receio de alçapões ou outras falsidades. E depois, cinzentos de cotim, ignorados e silenciosos, partem sem um olhar para o que deles ali deixaram.
Normalmente, só os avós os entendem. Seguram, aos domingos, as mãos dos netos, e apontam-lhes o chão que estes homens nos vão deixando, mostrando e explicando cada coordenada destes mapas desprezados da geografia citadina. E devagar, com muita paciência, como aquela que só os avós sabem ter para os netos, mostram-lhes a rima do poema, a sua métrica, escrito à mão, pedra a pedra, a preto e branco, com desenhos e riscos que nos falam, nos versos certos de amor, flor, barco, arco, corvo, curva, cálice, verdade.
Certamente que todos os que me lêem já há muito que perceberam que vos falo dos calceteiros da minha cidade de Lisboa, das nossas vilas e cidades, poetas ignorados das nossas pedras lascadas, cinzentos e calados, sem que saibamos de onde vêm ao certo, para onde vão realmente, e de que vivem, quando cada vez menos nos metem poemas debaixo dos nossos pés.
No outro dia, quieto e com falsidade aparentando indiferença, ouvi dois a falarem entre si. Escreviam com as pedras que iam escolhendo e juntando, na sua gloriosa caligrafia pesada de calcário, palavras que não sabem dizer por letras.
- Manel, achas que os advogados sabem todos ler?
- Ora, hão-de ser como nós. Uns sabem, outros não.
Deixei-os a escreverem, por pedras, amor, flor, arco, barco, corvo, curva, cálice, verdade.
Já vinha longe e, palavra de honra, senti de repente o cheiro a laranja amarga.
No outro dia, quieto e com falsidade aparentando indiferença, ouvi dois a falarem entre si. Escreviam com as pedras que iam escolhendo e juntando, na sua gloriosa caligrafia pesada de calcário, palavras que não sabem dizer por letras.
- Manel, achas que os advogados sabem todos ler?
- Ora, hão-de ser como nós. Uns sabem, outros não.
Deixei-os a escreverem, por pedras, amor, flor, arco, barco, corvo, curva, cálice, verdade.
Já vinha longe e, palavra de honra, senti de repente o cheiro a laranja amarga.
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