TODA A GENTE DIZ que a vida já não é o que era. Mesmo aqueles que vivem bem, na abastança, assim o entendem, o que impede que este desabafo possa constituir privilégio dos humildes.
A vida já não é o que era. É um facto. Mas a morte também não.
Quer nos confortos e nos pormenores que nos dão os mimos da vida, quer nas alegrias e nas dores que nos temperam a existência, ou nas pompas e nas circunstâncias com que antecedemos o fatal desenlace, que será o «grande final» de todos e cada um, se perdeu, irrecuperavelmente, a qualidade.
Morrer, hoje em dia, além de estar pela hora da morte, já não é o que era.
Morremos mal e depressa. Os nossos amigos nem sabem bem do que morremos e os nossos inimigos lançam facilmente insidiosos boatos na maior impunidade, por meio de melífluos sorrisos que parecem querer dizer tudo e não dizem nada, mas que são mortíferas certidões de óbito da nossa virilidade, da dignidade dos nossos herdeiros. Definitivamente, não se pode morrer em paz.
Os testamentos são raros. Essa celebração hipócrita, de negro irrepreensível à volta de um notário de voz trémula e solene, de olhar perscrutador perseguindo todas as reacções da assembleia, praticamente desapareceu.
Resta aos vivos a emoção instantânea e sem glória do totoloto ou a pinderiquice de um carro no «Um, dois, três». Resta aos mortos deixarem dívidas sem honra ou andares de juro bonificado.
Amigos do peito, daqueles para todas as ocasiões a ponto de porem gravata preta no dia em que nos acompanham à última morada, já não há. Hoje, o traje para um funeral ou é ditado pelo acaso ou envergado em consonância com a caracterização dos acompanhantes.
Morre um amigo, pintor de arte. Vai-se de camisa branca, dois botões abertos, fio de ouro grosso, blazer azul-marinho, jeans, sapatos de pala, de preferência com elástico verde e vermelho, a imitar Gucci.
Morre um amigo, gestor de empresa pública. Vai-se de príncipe-de-gales cinzento, camisa azul Oxford, gravata azul-escura a contrastar, preferivelmente de seda pura e adamascada.
Morre a mãe de um amigo. Não se vai. Manda-se telegrama e espera-se junto à pia da água benta a saída da família em missa do sétimo dia.
Morre uma actriz que se admirava. Vai-se para que toda a gente pense que teria havido coisa em que se não deve pensar, muito menos em tal momento, e envia-se um bouquet de rosas Baccarat.
De flores, nem falar se deve. Dispendiosas e importadas, quase inodoras, não deixam mais aquele cheiro típico de enxerto em cera de círio que se consumia lentamente nos tempos dos velórios a sério.
Coroas. É bom nem referir. Toda a gente sabe que quase não há.
Os necrófilos foram extintos como libelinhas. A necrofilia erradicada, como a varíola, e nem se manifesta nas formas mais suaves e benignas, cujos sintomas eram facilmente detectáveis nos olhos gordos que escorriam para o negro acanalhante de um vestido de viúva, ou para o brilho cintilante e convidativo de um par de alianças ostentado no mesmo dedo branco e leitoso de carnuda viúva, ou de esguio e austero viúvo.
O respeito de um cortejo automóvel, de marcha pesada, longo comboio negro reluzente a atravessar a cidade que respeitosamente tirava o chapéu à sua passagem, que silenciosamente encomendava almas ao Criador, cedeu lugar à buliçosa gincana de carros vermelhos ou cinzento-metálicos, japoneses, com prova de perícia final junto ao cemitério, onde as badaladas se confundem em ritmo alucinante de última volta de corrida de atletismo. As três badaladas e o balde de cai converteram-se em imagem literária, reduziram-se ao pó da liberdade poética.
As carretas puxadas por três parelhas de cavalos ajaezados de negro e prata, de grandes palas sobre os olhos com cocheiros e trintanário, mestre-de-cerimónias e carpideiras, são recordações nostálgicas de meninos dos anos 40, a embaciarem com o bafo húmido as vidraças das tardes de Novembro, trémulos de medo do quarto escuro.
Hoje, viaja-se para a última morada em Mercedes panorâmico, com rádio-telefone e bancos de autopullman tipo familiar.
Da promiscuidade post mortem é melhor nem falar.
Quem se lembra do tempo em que também na morte todos sabiam o lugar que lhes pertencia? Onde vai o tempo em que, nos jazigos, as prateleiras de cima se deixavam para os avós, as do meio para os pais, as rés ao chão para os filhos, que deveriam morrer em seu tempo, e no subsolo havia sempre lugar para um velho criado sem família, ama de leite ou caseiro dedicado?
Como se pode ser indiferente a esses mausoléus que albergavam urnas de bom: mogno incrustado, com fotografias sorridentes em molduras de laca, madrepérola e prata, anjinhos de canteiro, ou mesmo de escultor, tocando trombetas dos dois lados do nome de família honrada, de preferência soletrado com duas consoantes, e tudo isto dominando as classes mais desfavorecidas, alinhadas onde lhes competia, no pó a que regressavam, cruz, sim, cruz sim?!
Sobretudo, como se pode não fazer o sinal da cruz perante a promiscuidade em que cada um cai hoje, depois de morto, esse festim de urnas acolchoadas em jazigos onde já nem se respeita a tia morta no Caramulo, de tuberculose; onde se tem dúvidas sobre qual é a urna do pai, onde se chega sem que a opinião pública, aqueles que contam, leiam uma coluna necrológica como deve ser, como as de outros tempos, em que havia extintos benfazejos, famílias beneméritas e senhoras muito esmoleres?
Na impossibilidade quase certa de, no que respeita à liturgia da morte e suas indústrias subjacentes, acompanharmos o que de bom se pratica lá por fora, onde os cemitérios parecem greens sem golfistas e cuidadosos caracterizadores nos maquilham extremadamente para que repousemos sem olheiras; na certeza de que os bons tempos ora aqui evocados não voltarão para todos nós que ainda não fomos a Deus chamados a servir em Sua presença, resta-nos a reconfortante conclusão, reconfirmada na paz deste domingo, que a única coisa a fazer é viver o mais e o melhor possível. Ainda que saibamos que a vida já não é o que era.
Sem comentários:
Enviar um comentário