Era fácil olhar o longe, lá onde a menina morava.
Os campos eram rasteiros, sempre iguais, sem um sobressalto, e os olhos perdiam-se até onde conseguiam ver. Só duas vezes por ano havia diferenças - meses de terra lisa, loira, doirada, até se perder no amarelo do fundo; meses de terra verde, verde-claro e verde-escuro, rente mas desigual, com ondas e redemoinhos que o vento arrepiava como uma cabeleira de menina, como aquela que saltava e pulava, entre verde ou doirado, ou ficava sentada, de pés juntos e joelhos afastados, a olhar o longe.
O verde e o loiro nos campos correspondiam, no fundo, às únicas mudanças de vestuário que aquela menina conhecia. Quando a terra era verde, a perder de vista, a menina tinha um vestido espalmado ao corpo, leve, pobre, bonito e digno e por cima vestia um grosso casaco de lã que a mãe tricotara pelas noites dentro; quando a terra era loira até onde se conseguia ver, a menina usava só o vestido, aquele mesmo vestido, que era lavado de noite para voltar a ser usado na manhã seguinte.
A menina não tinha bonecas. Brincava com as pedras, com os ninhos, com as flores e com os pássaros. Às vezes, antes de regressar a casa, a menina brincava também com outras meninas da escola.
A escola ficava a um par de quilómetros, que a menina percorria, para cá e para lá, bocados ao pé-coxinho, bocados como se jogasse à malha, pedaços a correr, pedaços aos pontapés às pedras. Depois, jogava a saca que a mãe lhe fizera de um pouco de manta para guardar os cadernos, e onde fora bordado «A minha pasta» juntamente com as iniciais do nome da menina, que naquela família se preparava para inaugurar a geração dos que sabiam ler, jogava a saca para um canto, e ia brincar.
Viver com pai, mãe e sem irmãos, num ermo daquele campo todo, não era fácil para uma menina do tamanho daquela. Sem saber porquê, ela tinha de se acompanhar a si própria. E naquela paisagem que parecia desenhada por uma criança, e pintada a lápis de cor, com uma casa de duas janelas e uma porta, uma chaminé e uma estrada quase direita, com uma igreja ao fundo, e sem carros ou só com tractores de homens que levantavam uma das mãos quando passavam por outros, a menina juntava-se a outras meninas e meninos que só existiam na sua imaginação e brincava com eles, como se existissem de facto, a ponto de Ihes falar em voz alta.
Um dia, o pai trouxe um pintainho para casa.
Era pouco maior do que um ovo e muito amarelo com uma cabecita assustada e careca. Naquela noite, a menina não deixou que pusessem o pinto na capoeira e quase não dormiu, espreitando-o aninhado na roupa da sua cama de ferro.
De dia, a menina levava o pinto a passear com ela pelo campo. E, uma vez, chegou mesmo a levá-lo para a escola e foi repreendida pela professora, mas valeu a pena porque todos quiseram brincar com o pinto e alguns chegaram a ficar cheios de inveja.
O pinto foi crescendo, já tinha crista e muito menos graça, mas a menina nunca o abandonava e brincava com ele todos os dias. O pinto ficava na capoeira e a mãe dizia que ele era já um franganote, mais pequeno do que o galo velho que galava e bicava as galinhas que punham os ovos que a mãe vendia a quem procurava ovos frescos ou galinha de campo, também às vezes, quase sempre para mesa de doente, de boda ou de baptizado.
Mesmo quando o frango chegou a galo, a menina brincava com ele. Dera-lhe um nome, chamava-lhe Evaristo, e depois das cópias e das contas conversava com o galo e metia-Ihe as mãos nas penas azuis e cor de fogo, tal qual como as meninas brincam com cães ou com gatos, nas cidades.
Enquanto a terra esteve verde, a perder de vista, o pinto fez-se galo. Depois, a terra começou a ficar amarela, loira, doirada, vieram as férias, e a menina dedicava o dia todo, todos os dias, ao Evaristo, o galo.
Estava a terra a começar a escurecer quando a menina voltou à escola, para a classe seguinte. Quando mostrou em casa a lista de livros e cadernos que precisava para aquele ano, a menina ouviu o pai falar com a mãe sobre o preço dos livros. E durante muito tempo foi à escola sem livros, até a professora fazer cara de má e dizer que assim não podia ser.
Em casa, tal como lhe dissera a professora, a menina declarou que assim não podia ser.
E os pais voltaram a falar do preço dos livros enquanto a menina brincava com o seu galo Evaristo, bonitão, azul e cor de fogo, com crista a dançar no alto da cabeça.
- Diz à professora que amanhã levas o livro que mais falta faz - disse-lhe o pai.
Na escola, a menina disse à professora que no dia seguinte levaria o livro que mais falta fazia. Voltou a casa a saltar, metade ao pé-coxinho, metade ao jogo da malha.
Atirou a saquinha dos cadernos para o canto de sempre e foi à capoeira para brincar com o seu galo.
O galo não estava lá.
- O Evaristo onde anda, mãe? - perguntou a menina.
- O teu pai levou-o para vender e ajudar a comprar o livro - disse, simplesmente, a mãe.
A menina largou um berro que fugiu pelos campos rasteiros e escuros da tarde, que já morria cedo. E saiu de casa, a correr, atrás daquele berro, pela terra mole e lisa e correu, correu, sem apanhar o berro que dera nem nenhum dos outros gritos que a seguir também lhe tinham fugido, sempre à sua frente, pelos campos fora.
Os olhos da menina, sentada no chão, de pés juntos e joelhos afastados, encheram-se de lágrimas. E já era noite escura quando ela começou a chorar, e chorou tanto, tanto, que inundou aquela paisagem, que parecia um desenho infantil, com uma casa com duas janelas e uma porta, uma chaminé e uma estrada quase sem curvas.
Quando perguntam à menina «Sabes ler?», ela chora em silêncio e ninguém percebe porquê.
Lisboa, 1987
Sem comentários:
Enviar um comentário