domingo, 8 de junho de 2008

A vida de Maria

QUANDO MARIA ALVES SAIU DA IGREJA pelo braço de seu marido, toda a gente entendeu que ela se havia casado bem, apesar de três ou quatro sorrisos irónicos e outros tantos olhares maliciosos de quem não acreditava que pudesse dar bom resultado uma jovem fresca e bonita, como aquela, desposar um homem mais velho do que o próprio pai.
As mulheres, já sem ilusões, todas elas mais ou menos mal-amadas, aplaudiam o casamento por verem nele a segurança, o bem-estar e a importância social que não haviam recebido em troca de uma ninhada de filhos e de umas carícias mal-amanhadas que eram, afinal, muito diferentes das que haviam sonhado.
Os homens, mais maliciosos, ficavam-se pela inveja surda daquele corpo seco e flexível, daquele sorriso branco e doce, daqueles olhos que nem sempre escondiam uma curiosidade que muitos gostariam de satisfazer.
Só os mais jovens da aldeia, homens e mulheres, tentavam antecipar as frustrações e ânsias, que, convertidas em suspiros, seriam quase gemidos, largados no leito matrimonial; esses não agoiravam nada de bom a quem, pensavam eles, merecia os instintos bem tratados e o corpo satisfeito, com carinho, mas também com vigor.
Durante anos, o pai de Maria Alves negociara aquele casamento. Ele e o futuro genro falariam dela, observando-a, seguindo-lhe os gestos e apreciando-Ihe as atitudes inocentes como quem acompanha, enternecidamente, as evoluções de uma potra prometida.
Solteiro impenitente, ganhando cada vez mais dinheiro na compra e venda de terrenos, na construção civil, nas madeiras, macambúzio em casa, mas de ostentação fácil, o noivo tinha uma única paixão – beber e dançar, se possível, até às tantas.
Por isso, a pouco e pouco, Maria Alves foi-se encontrando sozinha, nas noites da casa grande à beira da estrada que o marido fizera construir para estrearem uma vez casados.
A mãe dava-Ihe conselhos, recomendava serenidade, fazia-Ihe ver as vantagens e garantia-Ihe que os homens eram todos iguais, razão pela qual ela não deveria recriminar em exclusivo um homem, que era seu marido, que não lhe faltava com coisa alguma e lhe dava uma vida que ninguém mais lhe poderia dar.
Mas Maria Alves deveria, certamente, ter dúvidas quanto à igualdade dos homens, porque por vezes o seu olhar se demorava mais num ou noutro jovem da sua idade, a quem, sempre que possível, espicaçava com a sua desenvoltura até à fronteira do permitido pela mentalidade de uma povoação onde ainda há irmãos que se matam à sacholada, vizinhos que se guerreiam a tiros de caçadeira e amantes que assassinam com veneno para os escaravelhos.
Uma noite, dormia de bruços, com uma perna nua fora das cobertas ligeiras porque se estava no Verão, quando o telefone tocou naquela estridência insultuosa das desoras.
«É para informar que o marido da senhora foi transportado para este hospital com um ataque de coração», disse uma voz grosseira e impessoal.
Ficou quieta, sentada na cama, com as pernas cruzadas, sem saber que fazer. Telefonou à mãe e, ainda antes de o Sol nascer, partiu com os pais para a cidade próxima, em cujo hospital distrital o marido destilava o resto do uísque da véspera e secava as coronárias que haviam dado de si.
Maria fora, no meio dos pais, com o aspecto de uma órfã, porque os seus poucos anos assim transformavam a precoce atitude de viúva que sua mãe recomendara. O que mais a surpreendera durante a viagem, e ao longo daquela noite, foi não ter sentido pena do marido, antes pelo contrário, ter chegado a pensar que aquilo que lhe sucedera fora bem feito.
O homem recuperou lentamente, com os médicos a recomendarem prudência nos esforços e a exigirem o fim das noitadas, no que foram bem sucedidos, porque o medo de morrer do paciente foi aliado precioso dos cuidados clínicos. E, na sua rotina, a vida recompôs-se.
Um certo fim-de-semana, houve baptizado na família. Um sobrinho do marido de Maria Alves com velas mais altas do que um homem, pia baptismal, copo-d'água de arromba cheio de cup, de peru, de fios de ovos, de garrafas de espumante e um conjunto a tocar até à noite, ficou apto a aumentar a estatística da mortalidade infantil sem correr o risco de não ir para o céu.
Maria, naquela tarde, dançou com quem lhe pediu, comeu, bebeu, brincou e sentiu-se feliz. Quando o marido a levou de regresso a casa, Maria pôs a cabeça de fora da janela do carro, riu-se ao vento, soltou o cabelo e tirou os sapatos, esfregando os pés um no outro.
Na sala, pôs um disco com o volume quase no máximo e, rindo-se, disse para o marido:

- Vamos dançar.
- Olha que eu não posso abusar.
- Um dia não são dias e o médico diz que o exercício te faz bem...

Rodopiaram, dançaram afastados e agarrados e a mulher que por vezes saltava dos olhos de Maria começou, lentamente, mas a saber o que fazia, a esfregar-se no homem, até os dois, afogueados, subirem para o quarto do casal.
Ainda não era meia-noite quando Maria estava sentada na cama, com as pernas cruzadas como gostava, nua e com um sorriso indecifrável, olhando o toucador e os objectos espalhados sobre o seu tampo, sem saber se deveria ou não telefonar à mãe a comunicar-lhe que o marido que lhe arranjaram, também nu e com um braço tombado para fora da cama, de olhos fixos no tecto, acabava de a promover à condição da viúva mais cobiçada daquele concelho.

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