SOBRAÇANDO UM RAMO DE CRISÂNTEMOS, entre os quais estreitava um par de gerânios, com o chapéu de feltro mole às três pancadas e deixando descair o peso do corpo sobre a bengala grossa, o velho arrastava pela rua fora a ostentação da sua dor no grito desgarrado com que varria aquela hora matutina do Dia dos Mortos, primeiro de Novembro.
- Noémia!!! Ah, Noémia, minha Noémia!!!
Ninguém veio vê-Io à janela. Poucos eram os que com ele se cruzavam sob o sol morno do primeiro de Novembro de Verão tardio, carregado da luminosidade que no Outono só Lisboa possui, mesmo num dia de mortos.
- Noémia! Ah, minha Noémia!
A bengala era silenciada por uma grossa cunha de borracha. A manga do fato cinzento mostrava uma larga faixa preta de fumo que indicava luto carregado. O chapéu tinha as abas descaídas sobre o rosto mal barbeado, mas pouco ensombrado, porque a barba que despontava era toda branca.
Três ou quatro miúdos que conversavam sobre livros de aventuras e jogos de futebol pararam de falar quando o velho passou e riram-se, dobrando o corpo, quando ele largou mais um berro.
- Ah, Noémia, minha Noémia!!!
O cemitério ficava a cerca de dois quilómetros. Da rua onde está o rés-do-chão em que o velho mora pode lá chegar-se numa lenta viagem de carro eléctrico, que sobe uma calçada íngreme, no fim da qual se tem de apear para tomar outro transporte, se não se quiser caminhar os seiscentos metros que vão dali ao portão de ferro forjado, com sineta coplada, através do qual se passa para as ruas e ruelas dos jazigos, gavetões e campas rasas.
O velho preferiu caminhar, percorrer os quilómetros que o separavam do local onde repousa a ossada da sua Noémia, nome de mulher que percorre a cidade todos os primeiros de Novembro, libertando-se de um molho de crisântemos com um ou dois gerânios à mistura.
- Noémia!!!
As pessoas, primeiramente, sobressaltam-se ao ouvir o berro. Depois, percebem; e então, ou ignoram o velho, a bengala, os crisântemos, ou têm de dirigir um quase obrigatório aceno de simpatia e comiseração que, obviamente, ele agradece.
Os dois quilómetros, mais coisa menos coisa, que vão da casa do velho ao cemitério, foram este ano percorridos, com calçada íngreme e tudo, em hora e meia. O grito foi largado cada cem metros, o que significa que o nome da defunta foi pronunciado vinte e cinco vezes, para ser rigoroso, ao longo do penoso percurso, devendo ter sido escutado por não mais de quarenta pessoas à vista, que corresponderam ou fingiram ignorar; isto, claro, sem contar com aqueles que em suas casas deram por uma Noémia desconhecida a entrar-Ihes pelo quarto dentro, sem perceberem do que se tratava, não só dado o atrasado da hora mas também por tudo isto ocorrer na manhã de um feriado sem obrigações.
O velho atravessou o portão do cemitério, mais curvo sobre a bengala, com as flores a escaparem-Ihe já sob o cotovelo do outro braço e sem qualquer gritaria. Os seus olhos fixavam as poucas pessoas que àquela hora já andavam pelo cemitério, mas sem dúvida que parecia ter deixado ao portão a dor lancinante que transformada em berros se não percebia qual a origem: se da alma, se dos ossos.
Sem dúvida que no cemitério o comportamento do homem mudou. Estava agora entre pares – seres vivos a homenagearem mortos. E os mortos, ali, andavam por toda a parte, pressentiam-se nas portas abertas dos jazigos, viam-se nas prateleiras, escorriam dos naperões sobre o mogno das urnas ou atiravam-nos sorrisos das fotografias emolduradas, ou encastoadas por baixo, ou por cima, da «profunda saudade» que o canteiro escrevia na pedra como tipografia põe morada em cartão de visita.
Ali, definitivamente, o homem não gritou mais. Se alguém o observasse, notaria talvez que procurava mesmo passar despercebido. Inclinou-se junto a uma campa, largou sobre ela as flores que trazia, teve breves instantes de recolhimento e saiu do cemitério como se não tivesse nada a ver com o homem que momentos antes apregoara o nome da defunta pelas ruas da cidade.
Regressou a casa visitando as capelinhas, uma a uma. E assim fez, devotadamente, ao longo do dia, até à noite parar defronte do seu rés-do-chão, rebuscando as chaves pelos bolsos. Dois vizinhos, conversa mole sobre a mulher do próximo, observaram-no:
- Ouviste aquele, esta manhã? É preciso lata! Moía a mulher de porrada, dava-Ihe tareias de caixão à cova e agora berra por ela que nem um vitelo desmamado.
E o velho, antes de fechar a porta:
- Com licença, meus senhores. Vou recolher-me. Vou rezar por vocês e por todos os nossos vizinhos. Passei o dia com a minha Noémia e foi ela quem me pediu que rezasse por todos vocês. Muito boa noite, meus senhores.
A quatro portas e oito algarismos dali, os miúdos que, de manhã, se tinham dobrado a rir quando o velho por eles passeou o seu berro juntaram as cabeças, com as mãos por cima uns dos ombros dos outros, e gritaram em coro:
- Oh, Noéeeeeeemia!!!
E puseram-se a milhas, dado o pira, cada um para sua casa, ala que se faz tarde.
- Noémia!!! Ah, Noémia, minha Noémia!!!
Ninguém veio vê-Io à janela. Poucos eram os que com ele se cruzavam sob o sol morno do primeiro de Novembro de Verão tardio, carregado da luminosidade que no Outono só Lisboa possui, mesmo num dia de mortos.
- Noémia! Ah, minha Noémia!
A bengala era silenciada por uma grossa cunha de borracha. A manga do fato cinzento mostrava uma larga faixa preta de fumo que indicava luto carregado. O chapéu tinha as abas descaídas sobre o rosto mal barbeado, mas pouco ensombrado, porque a barba que despontava era toda branca.
Três ou quatro miúdos que conversavam sobre livros de aventuras e jogos de futebol pararam de falar quando o velho passou e riram-se, dobrando o corpo, quando ele largou mais um berro.
- Ah, Noémia, minha Noémia!!!
O cemitério ficava a cerca de dois quilómetros. Da rua onde está o rés-do-chão em que o velho mora pode lá chegar-se numa lenta viagem de carro eléctrico, que sobe uma calçada íngreme, no fim da qual se tem de apear para tomar outro transporte, se não se quiser caminhar os seiscentos metros que vão dali ao portão de ferro forjado, com sineta coplada, através do qual se passa para as ruas e ruelas dos jazigos, gavetões e campas rasas.
O velho preferiu caminhar, percorrer os quilómetros que o separavam do local onde repousa a ossada da sua Noémia, nome de mulher que percorre a cidade todos os primeiros de Novembro, libertando-se de um molho de crisântemos com um ou dois gerânios à mistura.
- Noémia!!!
As pessoas, primeiramente, sobressaltam-se ao ouvir o berro. Depois, percebem; e então, ou ignoram o velho, a bengala, os crisântemos, ou têm de dirigir um quase obrigatório aceno de simpatia e comiseração que, obviamente, ele agradece.
Os dois quilómetros, mais coisa menos coisa, que vão da casa do velho ao cemitério, foram este ano percorridos, com calçada íngreme e tudo, em hora e meia. O grito foi largado cada cem metros, o que significa que o nome da defunta foi pronunciado vinte e cinco vezes, para ser rigoroso, ao longo do penoso percurso, devendo ter sido escutado por não mais de quarenta pessoas à vista, que corresponderam ou fingiram ignorar; isto, claro, sem contar com aqueles que em suas casas deram por uma Noémia desconhecida a entrar-Ihes pelo quarto dentro, sem perceberem do que se tratava, não só dado o atrasado da hora mas também por tudo isto ocorrer na manhã de um feriado sem obrigações.
O velho atravessou o portão do cemitério, mais curvo sobre a bengala, com as flores a escaparem-Ihe já sob o cotovelo do outro braço e sem qualquer gritaria. Os seus olhos fixavam as poucas pessoas que àquela hora já andavam pelo cemitério, mas sem dúvida que parecia ter deixado ao portão a dor lancinante que transformada em berros se não percebia qual a origem: se da alma, se dos ossos.
Sem dúvida que no cemitério o comportamento do homem mudou. Estava agora entre pares – seres vivos a homenagearem mortos. E os mortos, ali, andavam por toda a parte, pressentiam-se nas portas abertas dos jazigos, viam-se nas prateleiras, escorriam dos naperões sobre o mogno das urnas ou atiravam-nos sorrisos das fotografias emolduradas, ou encastoadas por baixo, ou por cima, da «profunda saudade» que o canteiro escrevia na pedra como tipografia põe morada em cartão de visita.
Ali, definitivamente, o homem não gritou mais. Se alguém o observasse, notaria talvez que procurava mesmo passar despercebido. Inclinou-se junto a uma campa, largou sobre ela as flores que trazia, teve breves instantes de recolhimento e saiu do cemitério como se não tivesse nada a ver com o homem que momentos antes apregoara o nome da defunta pelas ruas da cidade.
Regressou a casa visitando as capelinhas, uma a uma. E assim fez, devotadamente, ao longo do dia, até à noite parar defronte do seu rés-do-chão, rebuscando as chaves pelos bolsos. Dois vizinhos, conversa mole sobre a mulher do próximo, observaram-no:
- Ouviste aquele, esta manhã? É preciso lata! Moía a mulher de porrada, dava-Ihe tareias de caixão à cova e agora berra por ela que nem um vitelo desmamado.
E o velho, antes de fechar a porta:
- Com licença, meus senhores. Vou recolher-me. Vou rezar por vocês e por todos os nossos vizinhos. Passei o dia com a minha Noémia e foi ela quem me pediu que rezasse por todos vocês. Muito boa noite, meus senhores.
A quatro portas e oito algarismos dali, os miúdos que, de manhã, se tinham dobrado a rir quando o velho por eles passeou o seu berro juntaram as cabeças, com as mãos por cima uns dos ombros dos outros, e gritaram em coro:
- Oh, Noéeeeeeemia!!!
E puseram-se a milhas, dado o pira, cada um para sua casa, ala que se faz tarde.
Lisboa, 1987
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