AQUELE QUE MAIS IMPRESSÃO LHE CAUSAVA era o empregado de café, não lhe conhecia bem a história, mas sabia aquela que corria e conversava com ele todos os dias. Durante horas seguidas, o rapaz era normal, correcto, simpático, inteligente, divertido. De repente, sem pré-aviso, ora por fracções de escassos minutos, ora por períodos longos, a cabeça disparava-se-Ihe.
-... E fiquei assim porque a rapariga me deitou uns pozinhos no café e mos deu a beber. A minha mãe é que tinha razão e bem me avisou. E logo ela vem ver-me e traz-me cigarros. E enquanto não vem, deixa-me a fumar um dos seus...
De repente, sem alteração de voz ou de expressão, normalizava e falava com ponderação e vivacidade de todas e quaisquer coisas do nosso mundo.
Havia, também, a menina dos cosméticos. Durante todo o dia, pintava-se, vendo-se num espelho minúsculo, vestia e despia pequenos e miseráveis casacos de malha, e devagar, saracoteando-se, passeava pelo jardim ou pelo pátio, como se fosse uma miúda, caricaturando uma mulher provocante. Também lhe falava e, normalmente, ela dirigia-se-Ihe quase sempre com uma pergunta a que acabara por se habituar:
- Queres ser meu namorado?
Fingia que não percebia e entregava-se, afincadamente ao seu trabalho técnico, montando a máquina electrónica que a sua empresa lhe mandara pôr a funcionar naquele manicómio.
Distraía-se, também, do seu trabalho para observar o bailarino. Velho, calvo, com o cabelo que lhe restava, muito preto das tintas, e caindo em farripas sobre os ombros. Com os olhos cheios de rímel e a boca em coração de bâton, passeava pelo recreio tomando balanço para se lançar em sucessões de piruetas e de tesouras que o seu corpo pesado falhava, sem que os movimentos correspondessem aos passos que a sua imaginação persistia em criar, sem par, nem palco, nem público, e sem alguém que se preocupasse com ele, velho bailarino, retirado, perdido e patético no meio de pacíficos tontos entretidos com as suas coisinhas.
Detestava os velhos. Pareciam um quadro. Esquálidos, mal vestidos, sentados em bancos, batiam com os pratos de alumínio nas mesas dos refeitórios ou ficavam horas perdidas balançando os corpos para trás e para a frente, num vaivém absorto, com um olhar de quem não está cá.
Sentiu-se estranho, pela primeira vez, ao terceiro dia. Montara fios e mais fios, experimentara uma secção da máquina electrónica de cuja firma era técnico, tivera o seu tempo de observação dos loucos, saíra para tomar café ali próximo e sentia aquela angustiosa confusão, quedando triste e acabrunhado durante o resto do dia. Na rua, onde ao redor do hospital passeavam os mais inofensivos, descobrira a sua incapacidade de distinguir entre loucos e sãos. À medida que se afastava do hospital, ia fazendo esse teste. Fixava esta ou aquela pessoa e não conseguia distinguir a diferença dela para aqueles com quem passava o dia.
Nessa noite não conseguiu dormir.
Um enfermeiro desafiou-o a acompanhá-Io ao pavilhão de segurança:
- Venha ver um gajo que matou a mãe e os três irmãos.
Sentado no catre, em pijama, era um menino forte e louro, simpático e inofensivo.
- Estrangulou todos. A mãe, matou-a na cozinha. Os irmãos mais pequenos, na cama – explicou o enfermeiro.
Não conseguiu trabalhar mais nessa tarde. A cena do rapaz louro e louco a assassinar a família não o abandonou. Nem as piruetas do bailarino ou as provocações da menina dos cosméticos ou as conversas do empregado do café o distraíram. À noite, quando depois de jantar fixou a mulher, sem falar também, não encontrou qualquer diferença entre ela e as mulheres que durante o dia passavam por ele no hospital. Quando se despiu para se deitarem ele não estranhou estar na cama a observar e à espera do corpo da menina dos cosméticos.
Foi um grande dia no hospital. Dois ministros, dois, visitavam aquilo que persistem em classificar de complexo, inaugurando os melhoramentos naquilo que não desistem de descrever como estabelecimento hospitalar. Eram melhoramentos várias vezes inaugurados, mas que estes dois ministros, dois, não desistiam de reivindicar para o seu Governo.
O director guiava a visita, mostrando os aparelhos, explicando as secções, descrevendo sumariamente um caso ou outro.
Estavam, agora, no pavilhão de segurança. Com curiosidade mal disfarçada, espreitavam o menino que matara a família. E, de longe, riam-se da menina dos cosméticos que alguém se esquecera de fechar e que insistia em provocar tão Iuzida comitiva.
- E agora – disse o director – um caso interessantíssimo. Um homem que enlouqueceu aqui. Matou um enfermeiro e deixara a mulher estrangulada na cama. Era o técnico de electrónica que estava a montar a máquina que voscelências viram há momentos. De pijama, com os pés nus a baloiçar, sem tocar no chão, sentado de través no catre, sorriu para os olhos que se sucederam no óculo da porta. Era, de facto, impossível dizer a diferença.
-... E fiquei assim porque a rapariga me deitou uns pozinhos no café e mos deu a beber. A minha mãe é que tinha razão e bem me avisou. E logo ela vem ver-me e traz-me cigarros. E enquanto não vem, deixa-me a fumar um dos seus...
De repente, sem alteração de voz ou de expressão, normalizava e falava com ponderação e vivacidade de todas e quaisquer coisas do nosso mundo.
Havia, também, a menina dos cosméticos. Durante todo o dia, pintava-se, vendo-se num espelho minúsculo, vestia e despia pequenos e miseráveis casacos de malha, e devagar, saracoteando-se, passeava pelo jardim ou pelo pátio, como se fosse uma miúda, caricaturando uma mulher provocante. Também lhe falava e, normalmente, ela dirigia-se-Ihe quase sempre com uma pergunta a que acabara por se habituar:
- Queres ser meu namorado?
Fingia que não percebia e entregava-se, afincadamente ao seu trabalho técnico, montando a máquina electrónica que a sua empresa lhe mandara pôr a funcionar naquele manicómio.
Distraía-se, também, do seu trabalho para observar o bailarino. Velho, calvo, com o cabelo que lhe restava, muito preto das tintas, e caindo em farripas sobre os ombros. Com os olhos cheios de rímel e a boca em coração de bâton, passeava pelo recreio tomando balanço para se lançar em sucessões de piruetas e de tesouras que o seu corpo pesado falhava, sem que os movimentos correspondessem aos passos que a sua imaginação persistia em criar, sem par, nem palco, nem público, e sem alguém que se preocupasse com ele, velho bailarino, retirado, perdido e patético no meio de pacíficos tontos entretidos com as suas coisinhas.
Detestava os velhos. Pareciam um quadro. Esquálidos, mal vestidos, sentados em bancos, batiam com os pratos de alumínio nas mesas dos refeitórios ou ficavam horas perdidas balançando os corpos para trás e para a frente, num vaivém absorto, com um olhar de quem não está cá.
Sentiu-se estranho, pela primeira vez, ao terceiro dia. Montara fios e mais fios, experimentara uma secção da máquina electrónica de cuja firma era técnico, tivera o seu tempo de observação dos loucos, saíra para tomar café ali próximo e sentia aquela angustiosa confusão, quedando triste e acabrunhado durante o resto do dia. Na rua, onde ao redor do hospital passeavam os mais inofensivos, descobrira a sua incapacidade de distinguir entre loucos e sãos. À medida que se afastava do hospital, ia fazendo esse teste. Fixava esta ou aquela pessoa e não conseguia distinguir a diferença dela para aqueles com quem passava o dia.
Nessa noite não conseguiu dormir.
Um enfermeiro desafiou-o a acompanhá-Io ao pavilhão de segurança:
- Venha ver um gajo que matou a mãe e os três irmãos.
Sentado no catre, em pijama, era um menino forte e louro, simpático e inofensivo.
- Estrangulou todos. A mãe, matou-a na cozinha. Os irmãos mais pequenos, na cama – explicou o enfermeiro.
Não conseguiu trabalhar mais nessa tarde. A cena do rapaz louro e louco a assassinar a família não o abandonou. Nem as piruetas do bailarino ou as provocações da menina dos cosméticos ou as conversas do empregado do café o distraíram. À noite, quando depois de jantar fixou a mulher, sem falar também, não encontrou qualquer diferença entre ela e as mulheres que durante o dia passavam por ele no hospital. Quando se despiu para se deitarem ele não estranhou estar na cama a observar e à espera do corpo da menina dos cosméticos.
Foi um grande dia no hospital. Dois ministros, dois, visitavam aquilo que persistem em classificar de complexo, inaugurando os melhoramentos naquilo que não desistem de descrever como estabelecimento hospitalar. Eram melhoramentos várias vezes inaugurados, mas que estes dois ministros, dois, não desistiam de reivindicar para o seu Governo.
O director guiava a visita, mostrando os aparelhos, explicando as secções, descrevendo sumariamente um caso ou outro.
Estavam, agora, no pavilhão de segurança. Com curiosidade mal disfarçada, espreitavam o menino que matara a família. E, de longe, riam-se da menina dos cosméticos que alguém se esquecera de fechar e que insistia em provocar tão Iuzida comitiva.
- E agora – disse o director – um caso interessantíssimo. Um homem que enlouqueceu aqui. Matou um enfermeiro e deixara a mulher estrangulada na cama. Era o técnico de electrónica que estava a montar a máquina que voscelências viram há momentos. De pijama, com os pés nus a baloiçar, sem tocar no chão, sentado de través no catre, sorriu para os olhos que se sucederam no óculo da porta. Era, de facto, impossível dizer a diferença.
1 comentário:
..é sem duvida uma historia para ler e deitar fora..
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