HAVIA UM GRANDE INCÊNDIO, os ratos, as ratazanas desciam as escadas em manada, saíam de todas as retretes e desciam as escadas do prédio em chamas, enquanto pequenos ratinhos saíam dos canos dos lavatórios e as pastas de dentes se desfaziam em lombrigas. O homem, imobilizado, face ao avanço das ratas, grandes como coelhos, que passavam sobre ele em tropel como vacas em estampido, não aguentou mais e, enchendo os pulmões e escancarando a boca, soltou um berro que lhe saiu da alma. Foi um urro tão forte e tão autêntico que acordou. Tinha o pijama colado ao corpo, com o suor, o corpo doía-lhe, as mãos tremiam-Ihe e os olhos, inchados e encovados, davam um aspecto tão sombrio àquele busto arfante e despenteado, desalinhado, a cor da pele da cara magra era tão esverdeada, que a mulher, despertada por aquele monumental grito, assarapantada, disse, peremptória:
- Amanhã, queiras tu ou não, vais ao médico!
E atirou-se para o travesseiro, virada para o outro lado, dando as costas ao marido desinteressado e apavorado, também ela sem conseguir pregar olho, desconsolada e mal-amada de meses.
O médico foi peremptório: mudar de comprimidos, experimentar outra terapêutica, já que a terapêutica do clínico anterior não dera outro resultado senão o de as ratas saírem das retretes mais devagar e a cores. Cinematograficamente falando, o progresso verificado pelo doente foi deixar de sonhar a preto e branco e com a respiração e a suspensão do Hitchcock, e passar a sonhar a cores e com mais ritmo, mas também com aterradores efeitos especiais, tipo Spielberg. As personagens, no entanto, pareciam adaptadas por Fellini e Pasolini de quadros de Bosch. O realismo dos efeitos especiais era tal que o pobre do sonhador chegou, por duas vezes, a acordar o prédio com os seus gritos.
A mulher foi falar com o médico. As vezes que entendeu necessárias ao desabafo da sua preocupação e da sua insatisfação. Os sonhos continuavam. Os berros eram agora mais frequentes, o ciclo dos pesadelos mais intenso, os sobressaltos quase permanentes. Nem aos fins-de-semana havia um sonhozito cor-de-rosa, uma comédia, para alegrar o pobre do homem, cada vez mais cadavérico e mais verde. Um sonho erótico, mesmo soft, isso é que nunca, para desespero da pobre mulher, que nem numa creche perderia tantas noites como naquele caso, sem pregar olho ao lado do corpo agitado e inútil do marido.
Segunda-feira imediata a um fim-de-semana de terror, o casal foi ao médico, depois dum telefonema para o consultório a garantir que era urgente e necessário serem atendidos naquele dia.
Foi nessa consulta que ficou decidido o internamento.
Era uma casa de repouso, muito silenciosa, como seria de desejar, com muitas flores e cheia de cortinados floridos nas janelas. O homem chegou com um pequeno saco, como se estivesse em viagem e contasse com o necessário para uma breve estada, pelo braço da mulher esperançada e convincente.
- Vais ver que só te vai fazer bem!
O director da casa de repouso já estivera em contacto com o médico assistente e haviam decidido que, para começar, não havia melhor do que uma cura de sono.
- O senhor vai sair daqui como novo!
E o homem deitou-se, com o seu pijama térmico, um sorriso triste e os olhos mortiços. Foi a última vez que lhe viram os olhos. Nunca mais acordou.
A mulher foi chamada por um lacónico telefonema. A explicação que lhe foi fornecida foi a que se tratara duma inesperada paragem cardíaca.
Nada faria prever tão trágico desfecho, diziam os médicos, porque o estado cardiovascular não justificava qualquer alarme e não haveria outra explicação para o triste desenlace senão a de mais um insondável mistério do organismo.
Paragem cardíaca foi o que ficou a constar da certidão de óbito. As causas não foram explicitadas. Mas essas sabemo-las nós. O homem não aguentou. Aquela cura de sono foi uma verdadeira sessão contínua de atrozes pesadelos que o mataram de terror.
Lisboa, 1987
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