DEVE-ME TER FICADO DE PEQUENO esta ideia de ter um esconderijo. Não propriamente um sítio esconso, onde dantes se via fotografias de meninas em fato de banho, ou mesmo nuas, ou onde se brincava e escondia pistolas de madeira. Refiro-me, sim, a um local onde possa fazer o que me dá na gana, fora das vistas de todos, onde possa levar pessoas de quem gosto e com elas lá passar o tempo que eu possa ou entenda.
Tenho um esconderijo.
Não tem tesouros escondidos, nem arcas enterradas, nem meninas com véus a saltitarem nas pontas dos pés, nem flibusteiros ou náufragos perdidos, embora, com alguma imaginação, se possa lá ter tudo isso porque o meu esconderijo está situado entre grutas e a maré vazia ou a preia-mar. É um esconderijo meu e de mais cinco famílias, duas de pescadores e três de apanhadores de algas, dezenas de gaivotas em dias de temporal e mais ninguém, se não contarmos com um guarda-fiscal que nunca percebi se anda à procura de contrabandistas ou a ver a paisagem porque, ainda que apareça diariamente, arriscando o pescoço na descida dos penhascos, nunca gastou um «bom dia» com esta estranha comunidade de poucas falas, que já não pára com o que está a fazer para o olhar, em sinal de receio ou de respeito.
Nos últimos dias tenho andado fugido, neste meu esconderijo. Mas sempre muito ocupado e entretido porque, entre mergulhar e sair de madrugada para a pesca, há sempre uma lagosta ou uma santola que se apanha, e algum álcool de confiança que decilitrar, com estes homens e estas mulheres, à conversa mole, com as crianças à escuta, para já não falar das minhas releituras à luz do petromax.
Subitamente, esta rotina de saúde foi interrompida por um acontecimento que naturalmente nos mobilizou a todos. Foi um apanhador de algas que, apontando o seu barco ao meio da praia, de pé, ainda com o fato de mergulhar e fazendo gestos com a mão livre do leme, gritou.
- Está uma baleia nas rochas a seguir à praia!
E estava, de facto, encalhada na baixa-mar, muito quieta, connosco todos a olhar, sem lhe fazer mal, ou antes pelo contrário, preocupados em como a safar, apreensivos sobre se o animal estaria ou não doente.
Durante mais algumas horas, a maré vazaria ainda mais. Só depois começaria a encher e, lá para a noite, deveria haver água suficiente para a baleia e o seu esguicho partirem; pelo Atlântico, talvez direito aos Açores, ou onde mais lhe aprouvesse. E lá andámos, numa roda-viva, de barco a remos ou de fora-de-borda, para cá e para lá, a ver a baleia, muito quieta, cinzenta, a olhar-nos, e certamente a pensar o que todas as baleias pensam nestes apuros.
À noite, fui também ver a partida da baleia. Com três crianças e os seus pais, num barco de borracha, como se fôssemos um pequeno e furtivo grupo de combate de fuzileiros, mas sem desembarque previsto. Havia também os outros barcos, mais um que era o do faroleiro, que também viera ver o animal, informando-nos que já há dois dias o vira andar por ali.
No frio da noite, ficámos quietos, a olhar aquelas toneladas de carne, esperando que a comporta da maré lhe desse água para o seu calado. Mostrava, então, o animal, alguma impaciência, assim julgo eu, que por tal tomei os seus grunhidos entre dois esguichos. Por fim, começou a mover-se, nós nos barcos próximos mas a uma distância prudente, e a baleia lá se virou, mergulhou e voltou à superfície, e quando esperávamos que se fosse embora mudou de posição mas não se afastou, para surpresa de todos e desespero de alguns, em especial dos pescadores que haviam perdido uma maré, e dos apanhadores de algas também, que não haviam mergulhado para os laboratórios que lhes compram as algas secas e cujas administrações se não compadecem com histórias de baleias. A pouco e pouco, viemos todos embora, certos de que o animal não estava ferido e era livre de partir, ao que não assistiríamos por não haver lua naquela noite. Eu, cá por mim, só perdera as notícias que sempre escuto nas ondas curtas, Londres, Paris ou Washington, no meu pequeno transoceânico, e que são as novidades por que espero interessadamente quando estou no meu esconderijo.
Por isso, cedo na manhã seguinte, sintonizei para uma estação portuguesa, em onda média, e fiquei uns minutos à espera para ser informado do que se passaria no Médio Oriente, depois da visita de Shimon Peres a Marrocos, como iam as conversações EUA-URSS sobre o desarmamento, o que se passava com as sanções económicas a Pretória, que estavam os Verdes a fazer na Alemanha, o que acontecia com as taxas de juro na América e como se comportava a bolsa de Nova Iorque.
Psicologicamente, fiquei preparado pelo sinal horário. Aumentei o volume do receptor, dispus-me a escutar as notícias, naquela estação portuguesa. E tudo o que fiquei a saber, palavra, foi que um cachalote andava perdido no Mar da Palha, e uma jibóia estava à solta em Carnide, depois de fugir dum circo quando tomava banho; disseram-me também que o primeiro-ministro tinha não sei quê e que a Assembleia da República ia fazer não sei quantos.
Estava eu a interrogar-me a mim próprio, «Mas afinal o que acontece neste país e neste mundo?», quando a notícia chegou. O mais madrugador dos apanhadores de algas, de bordo do seu dinggy, gritava para nós, histérico, gesticulando:
- Voltou! Ela voltou!
A baleia tinha voltado. Não estava encalhada, estava semi-submersa, fazendo o seu repuxo e olhando-nos na nossa praia deserta, com os seus olhos marotos.
Suponho que ela nunca ouviu a história do capitão Jonas, nem nunca lhe contaram a vida da Moby Dick, nem deve ter escutado a notícia do cachalote, nem se assustou com a jibóia que fugiu do circo em Carnide, e seguramente que não sabe qual e o ano chinês em que vivemos. Acho que ela voltou somente para nos manifestar o seu agradecimento pela nossa preocupação da véspera. Voltou para nos visitar.
Eu é que, com tudo isto, fiquei na dúvida de ter acordado num livro da Beatrix Potter e estive quase para me atirar ao mar e nadar até encontrar um navio que me recolhesse, não importa sob que bandeira.
Tenho um esconderijo.
Não tem tesouros escondidos, nem arcas enterradas, nem meninas com véus a saltitarem nas pontas dos pés, nem flibusteiros ou náufragos perdidos, embora, com alguma imaginação, se possa lá ter tudo isso porque o meu esconderijo está situado entre grutas e a maré vazia ou a preia-mar. É um esconderijo meu e de mais cinco famílias, duas de pescadores e três de apanhadores de algas, dezenas de gaivotas em dias de temporal e mais ninguém, se não contarmos com um guarda-fiscal que nunca percebi se anda à procura de contrabandistas ou a ver a paisagem porque, ainda que apareça diariamente, arriscando o pescoço na descida dos penhascos, nunca gastou um «bom dia» com esta estranha comunidade de poucas falas, que já não pára com o que está a fazer para o olhar, em sinal de receio ou de respeito.
Nos últimos dias tenho andado fugido, neste meu esconderijo. Mas sempre muito ocupado e entretido porque, entre mergulhar e sair de madrugada para a pesca, há sempre uma lagosta ou uma santola que se apanha, e algum álcool de confiança que decilitrar, com estes homens e estas mulheres, à conversa mole, com as crianças à escuta, para já não falar das minhas releituras à luz do petromax.
Subitamente, esta rotina de saúde foi interrompida por um acontecimento que naturalmente nos mobilizou a todos. Foi um apanhador de algas que, apontando o seu barco ao meio da praia, de pé, ainda com o fato de mergulhar e fazendo gestos com a mão livre do leme, gritou.
- Está uma baleia nas rochas a seguir à praia!
E estava, de facto, encalhada na baixa-mar, muito quieta, connosco todos a olhar, sem lhe fazer mal, ou antes pelo contrário, preocupados em como a safar, apreensivos sobre se o animal estaria ou não doente.
Durante mais algumas horas, a maré vazaria ainda mais. Só depois começaria a encher e, lá para a noite, deveria haver água suficiente para a baleia e o seu esguicho partirem; pelo Atlântico, talvez direito aos Açores, ou onde mais lhe aprouvesse. E lá andámos, numa roda-viva, de barco a remos ou de fora-de-borda, para cá e para lá, a ver a baleia, muito quieta, cinzenta, a olhar-nos, e certamente a pensar o que todas as baleias pensam nestes apuros.
À noite, fui também ver a partida da baleia. Com três crianças e os seus pais, num barco de borracha, como se fôssemos um pequeno e furtivo grupo de combate de fuzileiros, mas sem desembarque previsto. Havia também os outros barcos, mais um que era o do faroleiro, que também viera ver o animal, informando-nos que já há dois dias o vira andar por ali.
No frio da noite, ficámos quietos, a olhar aquelas toneladas de carne, esperando que a comporta da maré lhe desse água para o seu calado. Mostrava, então, o animal, alguma impaciência, assim julgo eu, que por tal tomei os seus grunhidos entre dois esguichos. Por fim, começou a mover-se, nós nos barcos próximos mas a uma distância prudente, e a baleia lá se virou, mergulhou e voltou à superfície, e quando esperávamos que se fosse embora mudou de posição mas não se afastou, para surpresa de todos e desespero de alguns, em especial dos pescadores que haviam perdido uma maré, e dos apanhadores de algas também, que não haviam mergulhado para os laboratórios que lhes compram as algas secas e cujas administrações se não compadecem com histórias de baleias. A pouco e pouco, viemos todos embora, certos de que o animal não estava ferido e era livre de partir, ao que não assistiríamos por não haver lua naquela noite. Eu, cá por mim, só perdera as notícias que sempre escuto nas ondas curtas, Londres, Paris ou Washington, no meu pequeno transoceânico, e que são as novidades por que espero interessadamente quando estou no meu esconderijo.
Por isso, cedo na manhã seguinte, sintonizei para uma estação portuguesa, em onda média, e fiquei uns minutos à espera para ser informado do que se passaria no Médio Oriente, depois da visita de Shimon Peres a Marrocos, como iam as conversações EUA-URSS sobre o desarmamento, o que se passava com as sanções económicas a Pretória, que estavam os Verdes a fazer na Alemanha, o que acontecia com as taxas de juro na América e como se comportava a bolsa de Nova Iorque.
Psicologicamente, fiquei preparado pelo sinal horário. Aumentei o volume do receptor, dispus-me a escutar as notícias, naquela estação portuguesa. E tudo o que fiquei a saber, palavra, foi que um cachalote andava perdido no Mar da Palha, e uma jibóia estava à solta em Carnide, depois de fugir dum circo quando tomava banho; disseram-me também que o primeiro-ministro tinha não sei quê e que a Assembleia da República ia fazer não sei quantos.
Estava eu a interrogar-me a mim próprio, «Mas afinal o que acontece neste país e neste mundo?», quando a notícia chegou. O mais madrugador dos apanhadores de algas, de bordo do seu dinggy, gritava para nós, histérico, gesticulando:
- Voltou! Ela voltou!
A baleia tinha voltado. Não estava encalhada, estava semi-submersa, fazendo o seu repuxo e olhando-nos na nossa praia deserta, com os seus olhos marotos.
Suponho que ela nunca ouviu a história do capitão Jonas, nem nunca lhe contaram a vida da Moby Dick, nem deve ter escutado a notícia do cachalote, nem se assustou com a jibóia que fugiu do circo em Carnide, e seguramente que não sabe qual e o ano chinês em que vivemos. Acho que ela voltou somente para nos manifestar o seu agradecimento pela nossa preocupação da véspera. Voltou para nos visitar.
Eu é que, com tudo isto, fiquei na dúvida de ter acordado num livro da Beatrix Potter e estive quase para me atirar ao mar e nadar até encontrar um navio que me recolhesse, não importa sob que bandeira.
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