O GUERRILHEIRO ESTAVA SENTADO no bidão amolgado no meio da pista de terra batida e olhava os cães famélicos que cheiravam os papéis que o vento levava e trazia nos intervalos das chuvadas em cordão... Outros quatro guerrilheiros andavam por ali e já não tinham mais onde espreitar depois de terem devassado o que havia para ser visto quer no hangar quer no barracão prefabricado, coberto a lusalite.
Os cinco jovens africanos tinham recebido ordens para chegar até ali, de onde os iriam transportar para a cidade. Haviam passado cinco dias e os guerrilheiros estavam ali, certos de que não se iriam esquecer deles, vivendo ainda a excitação do primeiro voo, da primeira vez numa cidade.
O acaso juntaria aqueles cinco jovens africanos, armados e fardados, confiantes na sua espera, a um repórter que, também como eles, ali tinha encontro marcado, não com um avião mas com um helicóptero.
Durante as três horas que o repórter ali passou esperando transporte, este fizera com os guerrilheiros uma roda alargada e, sentados na pista, de pernas cruzadas, falaram de cidades, seguindo as corridas, sem destino, dos cães sem dono e as piruetas das folhas de papel no meio das nuvens de pó que, subitamente, sopravam, em remoinho, dos lados da pista.
Com idades entre os dezoito e os vinte anos, os guerrilheiros tinham nascido no mato, crescido no mato até Ihes meterem uma AK nas mãos e mandado lutar. Não conheciam mais do país que seria o seu do que mata num raio de quatrocentos quilómetros onde nunca tinham visto uma casa ou observado um automóvel, e avião sabiam o que era porque os ensinaram a esconder-se sempre que um passava.
Ali sentados, conversaram sobre coisas para todos nós normais como se falassem de uma civilização e de uma cultura que pertencessem a outro planeta. Como são as casas, o que é o vidro nas janelas, quantas casas há numa cidade, porquê tantas, porquê casas em cima de casas, como subir para as casas de cima e todas as perguntas que se possam imaginar.
O repórter explicou, explicou. E depois, quando chegou à cidade para onde se dirigia, e que não era a mesma que os soldados demandavam, despachou o seu serviço para a Redacção, que ficava noutro continente, e no final, aproveitando a linha aberta do telex, não resistiu a escrever uma pequena nota impressiva sobre cinco guerrilheiros, sentados há dias, à espera de transporte para a capital do país que iria ser o seu. Guerrilheiros que nunca tinham visto um automóvel («porque são os automóveis às cores?») nem conheciam uma casa («mas como se sobe para as de cima?») e iam pela primeira vez andar de avião.
É possível que a memória pregue partidas às pessoas. Talvez tenha sido isso que aconteceu quando esta semana, de repente, quase doze anos volvidos, aquele repórter se sobressaltou em Lisboa a pensar nisto tudo, sem razão visível, e ficado preocupado, «Terão chegado a ir buscar os rapazes?», e a cena revivificou-se como um velho filme a preto e branco, com o vento, as chuvadas, os jornais velhos a voarem, os cães a mostrarem as costelas e os cinco rapazes sentados na pista, a rirem-se sem ter que comer.
É de crer que os tenham acabado por levar, de alguma forma, e que hoje, uma dúzia de anos passados, eles nem notem o que é uma casa e nem dêem por que andam de elevador, que tinham sido uma novidade cuja descrição de um repórter desconhecido, há muitos anos, os havia excitado.
Possivelmente estarão hoje completamente ambientados, passearão de Volvo e nem notarão as utilidades das coisas estranhas que uma cidade tem. Mas, sobretudo, terão encontrado resposta para uma questão que de repente ali se colocou, doze anos atrás, na pista deserta uma questão nessa altura insolúvel: explicar e perceber o que é uma escada.
Perceber, eles não perceberam. Mas explicar, eu não fui capaz.
Lisboa, 1987
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