É UM BOM QUADRO, embora não tenha uma qualidade por aí além e o seu valor esteja necessariamente diminuído pelo facto de não estar assinado. A olho nu, pode ver-se que é da Escola de Madrid, do século XVIII – em numeração romana, como sempre convém quando se escreve sobre pintura ou qualquer das outras artes.
A cena representada é uma Virgem com um arcanjo e a curiosidade reside no pormenor que, para nós, deixa de ser um detalhe quando passa a dominar todo o quadro – com as suas rosquinhas de carne cor-de-rosa muito perfeitas, com as suas mãozinhas papudas a segurarem um arco e flechas, o arcanjo está a fazer beicinho, desfazendo em lágrimas as suas bochechas ruborizadas.
O contraste entre a expressão dolorosa do arcanjo e a serena beleza sorridente da Virgem é notável – e como o quadro não tem nome, ou título, é praticamente impossível compreender o que representa, o que pode constituir um interessante desafio à imaginação de quem o possa admirar em casa do meu amigo que o adquiriu num adelo de Segóvia.
Convidamos, assim, o leitor a acompanhar-nos num exercício que, sem dar prémio, pode ser um excelente passatempo – encontrar um título para aquele quadro de um anónimo espanhol do século XVIII, em numeração romana, como convém.
Cá por mim, estou com uma ideia fixa – o arcanjo está com uma birra dos diabos ou apanhou uma palmada por alguma coisa que não devia ter feito. Imagino também que a Virgem o proibiu de atirar setas a quem ele queria, possivelmente por ter partido algum vidro, ou ainda que não o tenha autorizado a voar naquele dia com as suas asinhas, talvez por ter feito chichi na cama.
Penso que os arcanjos têm caminhas, como todos os outros bebés, e que, apesar de não terem sexo, terão qualquer coisinha que sirva para fazer chichi. As caminhas obviamente que não têm grades, porque os arcanjos podem, com as suas asas, suspender uma queda, mesmo que esta ocorra em pleno sono. Mas se me recuso perder tempo discutindo o sexo dos anjos, já me detenho a imaginar a razão de ser do choro e da atitude contrariada do arcanjo, que, por se tratar de quem se trata, não pode deixar de estar com o demónio no corpo.
Para mim, o quadro é uma surpresa, tanto mais que sempre ouvi dizer que os mortais como nós se devem dar bem entre si, «como Deus com os anjos», o que é um exemplo a seguir, tipo norma de execução permanente, e que neste quadro ou foi esquecido pelo pintor ou desrespeitado pelos protagonistas.
Naturalmente que o quadro põe igualmente em causa os métodos pedagógicos do Paraíso ou os processos educativos da Sagrada Família. Mas que naquele infantário divino há arcanjos que choram, não restam quaisquer dúvidas.
O sorriso da Virgem é tolerante sem deixar de ser em nenhuma circunstância firme. É um sorriso tipo «chora menino chora, que o pirolito vai-se embora» ou uma legenda género «de pequenino é que se torce o pepino».
Uma outra hipótese – que o arco e as flechas sugerem, – é a de o arcanjo ali representado ser o Cupido, e que uma das flechadas deste irrequieto personagem não tenha levado o melhor caminho, espetando-se contra a moral vigente.
Enfim, o mistério do quadro é de difícil dissipação. Impossibilitado de investigar, não procedo, cá por mim, a mais especulações. Por isto ou por aquilo, não restam dúvidas que o arcanjo está a chorar, e a ter de se dar um título àquele quadro de anónimo espanhol do século XVII, (em, romano, sempre, sempre) eu ia por este Madona Sorri a Birra de Arcanjo.
Ou será que não pode haver, também, anjos mal-educados?
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