SEMPRE EM SILÊNCIO, exerce o seu mister onde os outros se aliviam ou se refrescam. Cabisbaixa, faz um eterno tricô e só o interrompe quando ouve, ou pressente, passos na escada de mármore. Espera, depois, pacientemente, que se aprestem para estender um toalhete de linho imaculado às damas e cavalheiros que o requerem.
É a senhora do WC.
Utilizando para tal uma viuvez súbita e pós-menopausa, a vida atirou-a para aquele lugar, para aquela bata negra de cetim, para o ar composto e recatado, quase monástico de olhos no chão, que as circunstâncias exigem .
Inicialmente, custou-Ihe. Horas longas de choro acompanhavam-Ihe as noites solitárias e o filho com o curso por acabar era a sua anfetamina, o pai da sua coragem.
«Roubar é que é pecado», repetia muitas vezes a si própria, quando chegava ao ponto de buscar algum conforto e certa dignidade no trabalho que lhe deram. E nas vizinhanças de sua casa procurava não dar explicações sobre o trabalho que tinha, mesmo quando os preconceitos acicatavam a curiosidade alcoviteira sobre o porquê dos tardios regressos a casa, diariamente.
A pouco e pouco, os anos foram-Ihe aliviando o fardo e a necessidade envergonhada. Gradualmente, por iniciativa própria, e para alargar os proventos das gorjetas, começou a passar por uma florista barata, de mercado, e a comprar rosas e cravos, pois sempre havia um interessado - não para pôr na botoeira, que é hábito banido entre nós - numa flor para uma dama em jantar ou almoço de estreia.
Depois, com autorização do patrão, arranjou a sua caixinha do tabaco, com maços nacionais e estrangeiros, que sempre encontravam quem os quisesse. E ainda que a prudência e a decência lhe aconselhassem os olhos baixos e gestos comedidos, que ainda hoje utiliza, soltou os ouvidos e a imaginação e começou a viver com deleite os sonhos dos outros que à frente do espelho lhe começaram a confiar, quer em relatos, desabafos ou queixas próprias e directas, quer em conversas de discurso indirecto, antes de retomarem o palco que era o piso atapetado onde brilhavam luzes e cristais daquele restaurante, por cima da cabeça da senhora do WC.
Muitas mulheres lhe fizeram confidências, muitos homens lhe comentaram namoros e arrufos, amigos, sócios, adversários. Com o silvo permanente das torneiras e as suas intermitentes descargas, à meia-Iuz e com um eco marmóreo que convidava ao sussurro, aquela sua sala, a cheirar a desinfectante, a alfazema e a flores, convertera-se, a pouco e pouco, num confessionário, onde os gestos reprimidos, os sorrisos contidos, as palavras comedidas acabaram por conquistar confiança, com a vantagem de ali ninguém impor penitência a ninguém.
Houve mesmo uma altura em que gostou do seu trabalho. A malha que tricotava a duas agulhas, o calor ou o fresco, aquela ausência permanente de luz que não dava indicação das horas, lhe acabavam, por constituir uma concha a que se remetia, protegida de tudo quanto de mau havia cá em cima e lá fora.
No entanto, sempre que se proporcionava, repetia para quem a quisesse ouvir que só ali estaria até o filho acabar o curso. Depois, ele tomaria conta da mãe. Dizia isso para si mesma, também, mas principalmente para os outros, para que não deixassem de a tratar com consideração, ainda que sabendo que estava ali às gorjetas e aos almoços e jantares quentes, além de uns restos que sempre levava para o filho, e da margem de lucro dos cigarros e flores. Era um cenário de ameaça que perfilava para os outros na sua vida sem estratégia.
Hoje, o filho teve tempo de concluir três cursos seguidos, com mestrados e pós-graduações. A senhora ali continua, já completou as bodas de prata a estender toalhetes e a vender rosas e cigarros, que cravos já ninguém leva. A pouco e pouco, deixou de falar no filho, nunca falou em netos nem em ninguém que lhe seja chegado. Passou a fazer conversa de circunstância, com o cuidado de não cruzar desabafos e inconfidências que ali, no seu banquinho, continua a escutar.
No outro dia, com a confiança respeitosa ganha ao longo dos anos, com a necessidade de ser alguém que no nosso íntimo não se abafa facilmente, olhou um velho cliente e, orgulhosa que só visto, disse:
- Sabe o que aconteceu ao meu filho? Está no Governo! - E um longo sorriso silencioso respondeu à estupefacção.
E ao lhe ser perguntado sobre quem era o filho, apenas declarou:
- Ora, não interessa. Ele tem vergonha de ser o filho da senhora do WC.
É a senhora do WC.
Utilizando para tal uma viuvez súbita e pós-menopausa, a vida atirou-a para aquele lugar, para aquela bata negra de cetim, para o ar composto e recatado, quase monástico de olhos no chão, que as circunstâncias exigem .
Inicialmente, custou-Ihe. Horas longas de choro acompanhavam-Ihe as noites solitárias e o filho com o curso por acabar era a sua anfetamina, o pai da sua coragem.
«Roubar é que é pecado», repetia muitas vezes a si própria, quando chegava ao ponto de buscar algum conforto e certa dignidade no trabalho que lhe deram. E nas vizinhanças de sua casa procurava não dar explicações sobre o trabalho que tinha, mesmo quando os preconceitos acicatavam a curiosidade alcoviteira sobre o porquê dos tardios regressos a casa, diariamente.
A pouco e pouco, os anos foram-Ihe aliviando o fardo e a necessidade envergonhada. Gradualmente, por iniciativa própria, e para alargar os proventos das gorjetas, começou a passar por uma florista barata, de mercado, e a comprar rosas e cravos, pois sempre havia um interessado - não para pôr na botoeira, que é hábito banido entre nós - numa flor para uma dama em jantar ou almoço de estreia.
Depois, com autorização do patrão, arranjou a sua caixinha do tabaco, com maços nacionais e estrangeiros, que sempre encontravam quem os quisesse. E ainda que a prudência e a decência lhe aconselhassem os olhos baixos e gestos comedidos, que ainda hoje utiliza, soltou os ouvidos e a imaginação e começou a viver com deleite os sonhos dos outros que à frente do espelho lhe começaram a confiar, quer em relatos, desabafos ou queixas próprias e directas, quer em conversas de discurso indirecto, antes de retomarem o palco que era o piso atapetado onde brilhavam luzes e cristais daquele restaurante, por cima da cabeça da senhora do WC.
Muitas mulheres lhe fizeram confidências, muitos homens lhe comentaram namoros e arrufos, amigos, sócios, adversários. Com o silvo permanente das torneiras e as suas intermitentes descargas, à meia-Iuz e com um eco marmóreo que convidava ao sussurro, aquela sua sala, a cheirar a desinfectante, a alfazema e a flores, convertera-se, a pouco e pouco, num confessionário, onde os gestos reprimidos, os sorrisos contidos, as palavras comedidas acabaram por conquistar confiança, com a vantagem de ali ninguém impor penitência a ninguém.
Houve mesmo uma altura em que gostou do seu trabalho. A malha que tricotava a duas agulhas, o calor ou o fresco, aquela ausência permanente de luz que não dava indicação das horas, lhe acabavam, por constituir uma concha a que se remetia, protegida de tudo quanto de mau havia cá em cima e lá fora.
No entanto, sempre que se proporcionava, repetia para quem a quisesse ouvir que só ali estaria até o filho acabar o curso. Depois, ele tomaria conta da mãe. Dizia isso para si mesma, também, mas principalmente para os outros, para que não deixassem de a tratar com consideração, ainda que sabendo que estava ali às gorjetas e aos almoços e jantares quentes, além de uns restos que sempre levava para o filho, e da margem de lucro dos cigarros e flores. Era um cenário de ameaça que perfilava para os outros na sua vida sem estratégia.
Hoje, o filho teve tempo de concluir três cursos seguidos, com mestrados e pós-graduações. A senhora ali continua, já completou as bodas de prata a estender toalhetes e a vender rosas e cigarros, que cravos já ninguém leva. A pouco e pouco, deixou de falar no filho, nunca falou em netos nem em ninguém que lhe seja chegado. Passou a fazer conversa de circunstância, com o cuidado de não cruzar desabafos e inconfidências que ali, no seu banquinho, continua a escutar.
No outro dia, com a confiança respeitosa ganha ao longo dos anos, com a necessidade de ser alguém que no nosso íntimo não se abafa facilmente, olhou um velho cliente e, orgulhosa que só visto, disse:
- Sabe o que aconteceu ao meu filho? Está no Governo! - E um longo sorriso silencioso respondeu à estupefacção.
E ao lhe ser perguntado sobre quem era o filho, apenas declarou:
- Ora, não interessa. Ele tem vergonha de ser o filho da senhora do WC.
(*) Esta história é pura ficção. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.
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