sexta-feira, 20 de junho de 2008

O mais difícil

ANO NOVO, VIDA NOVA. É um provérbio comum a muitos países e pertença de muitos povos. Mas será, por certo, o ditado mais traído de quantos são atribuídos à sabedoria popular.
Acontece, naturalmente, assim, porque «Ano novo, vida nova» se trata de uma manifestação de intenção que, posteriormente, não encontra tradução na prática, não se consuma na vida real. Por estas e por outras, também o povo diz que «de boas intenções está o inferno cheio».
No início, um novo ano, como este agora iniciado, é uma mão-cheia de nada, que é como quem diz um espaço onde cabem todos os sonhos que gostaríamos de ver realizados.
É assim como quando andávamos na escola e começávamos um caderno novo. A perfeição das primeiras páginas não encontrava equivalência nas restantes, como se ao princípio de qualquer coisa desejássemos sempre tudo e acabássemos o que quer que fosse à medida das possibilidades.
A mudança de um ano para o seguinte é tradicionalmente assinalada pelo deitar fora de calendários, pela passagem de moradas e de números de telefone de uma agenda para outra, pelo envio de votos de felicidades postais, que valem tanto quanto uma estampilha custa, mais o valor de uma lembrança expressa em palavra amiga.
Uma crónica de princípio de ano também pode ser isso. Mas é igualmente verdade que pode não ser, constituindo apenas a continuação do ritmo de uma certa rotina, que se recusa a marcar efemérides. Procurarei, no entanto, que esta crónica, para o número correspondente a Janeiro de uma revista mensal seja, sem ser, o voto de que as coisas e as pessoas mudem, para melhor nos próximos trezentos e sessenta e cinco dias e que tudo aconteça à medida dos desejos de cada um.
Desejo-vos, portanto, um bom ano para todos, sem sininhos nem lugares-comuns, nem peditórios para os cronistas desta área, que sem dúvida não deixariam de se associar aos meus augúrios de que o ano em que entrámos seja cheio de vida, de saúde e de dinheiro suficiente à realização dos nossos sonhos. Se nada mudar, que se mantenha pelo menos o bastante à nossa dignidade, e que se aguentem a nossa capacidade de resistência e a vontade de ter esperança.
«Foi um ano para esquecer», há, infelizmente, quem diga, referindo-se a um determinado período menos afortunado que encontra correspondência na bola preta que assinala quarentenas, doenças do próprio ou de familiares, desemprego, morte, azares diversos, infortúnios avulsos. Também essa vontade de esquecer não tem sinceridade, porque semelhantes reveses não se esquecem. O que quer essa expressão significar é «Vamos lá a ver se este ano é melhor», porque o que se deseja, de facto, é uma compensação às malquerenças dos tempos aziagos.
Por falar em bola preta, recordei-me dos rebuçados dos bonecos da bola. Daqueles em que a gente furava um cartão, dividido em quadradinhos, a cada um dos quais correspondia uma bola de cor, que significava um determinado rebuçado, envolvido num cromo de um jogador de futebol. E consoante o número e o boneco, calhava o prémio - este melhor, aquele pior.
Se tomarmos aquele cartão pela nossa vida e a dividirmos em quadradinhos que são os anos que a compõem, o que eu desejo sinceramente é que não haja para ninguém bolas pretas, que normalmente não traziam nada de bom. Que cada ano para todos nós seja um boneco da bola com um bom prémio atrás, se não for mesmo o número da bola de cauchu, que era a nossa grande alegria naqueles anos de contentamento fácil e de vida difícil.
Porque a caderneta, meus amigos, essa teremos de ser nós a preenchê-la e a completá-la, com jeito nas mãos e tento na cabeça, sem que nenhuma bola preta justifique desânimo ou desistências.
Ao enfrentarmos mais um cartão, de furadouro na mão, que a sorte nos guie o gesto e nos ponha o golpe no sítio certo. Que este ano seja o ano do sorriso, da tolerância, da paz e da felicidade realizável. São estes os meus votos para todos nós, que podemos estar unidos nas coisas simples e possíveis. Mas se assim não for, paciência. Se não acerarmos no boneco da bola, no «mais difícil», podemos sempre continuar a tentar, enquanto nos imaginamos protagonistas, jogando num grande estádio, cheio por uma grande multidão entusiasmada, pensando que o nosso retrato embrulha o rebuçado mais difícil - o do número da bola.
Mesmo que tenhamos de passar mais um ano a dar chutos na trapeira.

domingo, 8 de junho de 2008

«Lisbon taxi driver»

É MAGRO como um fio de azeite. Tem, a atravessar a sua magreza, um bigode tipo escova que quase pode ser visto por trás e sobe e desce, a compasso, com a maçã-de-adão. O cabelo cobre-lhe as orelhas apenas o suficiente e cai-lhe em franja sobre a testa.
Fala compassadamente, mas com toda a malandrice congénita àqueles que nasceram em Arroios, bairro de Lisboa, cidade de galfarros e andorinhas com quem há sempre que contar, no meio de beirões sorumbáticos e minhotos-quase-galegos dos frangos assados no espeto, com gindungo ou sem gindungo, consoante a extroversão e a marotice que se deseja para depois do pudim flan.
Atravessa a cidade devagar, nunca excedendo os cinquenta quilómetros por hora, mesmo quando rola por avenidas de onda verde ou transporta passageiros. Guia como se procurasse alguém. Se em vez dum táxi, verde e preto como todos os permitidos nesta cidade de Santo António, andasse a cavalo, certamente que vestiria de negro, com os coldres baixos, e olharia da mesma maneira os tristes peões, com esta expressão que parece querer dizer: «Foge, que Pat Garrett era um franganote ao pé de mim.»
Mulher que lhe entre no carro não escapa, pelo menos a uma boa, longa mirada, de alto a baixo, com paragens embaraçosas nos pontos mais delicados, onde ficam as coisas mais caracterizantes que uma mulher tem e que nela um homem mais aprecia.
Mas é de homens que gosta mais - para transportar, é bom de ver -, porque lhe dão pé para conversa à tira larga, ou mesmo para discussões violentas. E quando pressente ou descobre que o passageiro tem as características biológicas de uma vítima aí, sem parar, vira-se para trás, põe o braço direito ao longo das costas do banco da frente e diz para o pobre e timorato transportado:
- Passei catorze anos numa tropa de elite. Já ganhei dez contos por dia para guardar figurões cá da parvalheira. Sei o que são eleições e o que é a porca da política. Sou anarca e do Belenenses. Conheço bem o bas-fond porque tenho muita pedalada. Sou um driver. Sou um Lisbon taxi driver.
A partir daí, não há hipótese. Se se tem muita pressa, corre-se o risco de se ser abatido. Se se prolonga a conversa, corre-se o mesmo perigo por, mais tarde ou mais cedo, ser garantido que se chega a um ponto de conflito insanável.
- E sabe o meu amigo? Não pago um copo em toda a Lisboa. Entro, bebo e saio sem pagar. E sabe porquê? Porque tenho uma grande pedalada, porque durante sete anos vivi de noite, conheço tudo e todos, sei histórias. Não pago. Entro e saio e ninguém me diz «É tanto.» É o dizes! Sei histórias e conheço vícios. Sou um driver, um Lisbon taxi driver.
Encontrei-o uma noite destas, num bar. Estava num grupo, ouvia com atenção outro chavalo, numa roda de mais três ou quatro. Quando me viu, dirigiu-se-me naquela passada larga, aparentemente lenta, afastando-me daquela conversa de pintores, donas-marias, maravedis, ervas e aspirinas. Agarrou-me por um braço e avisou-me, este meu amigo driver, porque quem me avisa meu amigo é:
- Não faça por ouvir nada do que a malta está a combinar. Quanto menos souberem menos morrem. Olhe, o meu pai sempre me disse que vale mais roubar do que ser roubado. O meu pai é que sabia, porque foi cinquenta anos contratador da estiva. Sabe como ele me explicava? Explicava assim. «Para roubar é preciso um grau de inteligência; para ser roubado, um grau de estupidez.» Portanto, antes roubar do que ser roubado. Beba um copo e vá-se embora, que pago eu.
Cruza a cidade vagarosamente, no seu táxi verde e preto, com a sua figura de fio de azeite e o seu bigode negro a flutuar. Pode não se reparar nele, mas ele vê-nos a todos. Sabe tudo. Conhece histórias e adivinha vícios. É um driver. Um Lisbon taxi driver.

A «buena dicha»

ENTROU NO CAFÉ arrastando o velho sobretudo amarelo que imitava pêlo de camelo. Antes de chegar ao balcão, o empregado atirou-lhe:
** - Galão e pãozinho-de-deus, não é verdade, senhor Alberto?
** Era verdade. Era, pelo menos, há vinte e sete anos, galão e pãozinho-de-deus, não é verdade, senhor Alberto?
** Não se dava, sequer, ao trabalho de responder. Ou antes, retorquia falando de outra coisa qualquer, género «parece que o tempo vai melhor» ou «você ouviu ontem aquele tipo na televisão?». Gostava de conversar enquanto mastigava e bebia pequenos goles, patatipatatá, um ouvido no ruído do trânsito, não vá o maldito autocarro pregar mais uma partida.
** Naquela manhã, de sobretudo amarelo, a imitar pêlo de camelo, desabotoado, ainda a cheirar a água-de-colónia comprada a peso, sentia-se particularmente bem-disposto.
** Não saberia dizer porquê, se lho perguntassem, mas havia qualquer coisa a fazê-lo saber que aquele não seria um dia como os outros, apesar de não se estar ainda na Primavera.
** A cigana entrou, toda veludo e ouros, para evitar confusões e suspeitas, não pense alguém que ainda é das que restam a ler sinas nas palmas das mãos, e pediu uma tosta mista e uma cerveja. O empregado nem pestanejou, mas o senhor Alberto olhou espantado: «Uma cerveja? A esta hora da manhã? Uma mulher?» - e de imediato mediu-lhe as carnes de alto a baixo.
** A cigana surpreendeu-lhe a panorâmica quando os olhos vinham para cima e, quando se olharam cara a cara, olhos nos olhos, abriu um sorriso de pérolas que deixou o senhor Alberto sem saber se comia o pãozinho-de-deus ou se apanhava o autocarro.
** - O cavalheiro gosta só, ou quer comprar?
** Frente à sua plateia, repleta de público fiel, o senhor Alberto deve ter sentido o que um toureiro sente ao ouvir «Arrimate!» da barreira sombra. E para não ficar sem dizer nada, saiu-lhe um desabafo que deve ter sido o que lhe ia na cabeça, no espírito, no coração e noutras vísceras não menos importantes para o regular funcionamento das instituições fisiológicas.
** - Vossemecê sempre me saiu um grande naco de mulher!
** A cigana atirou a cabeça para trás e largou uma gargalhada que até fez tremer as garrafas de vermute e tilintar as taças para o branco verde avulso. Nesse instante de cristal, o senhor Alberto perdeu o autocarro.
** - Homem, deixe lá que eu levo-o! Ainda há bocado estava em Évora e já aqui estou. Não se preocupe.
** O senhor Alberto não se preocupou. Não tinha, de resto, razão nenhuma para isso, pois raramente chegara atrasado, em anos e anos, e faltara menos vezes que o número de dedos de uma mão. Já que a mulher o levava, olha, deixa estar – até ficava com uma história para contar... e depois isto tudo à frente da malta toda, caramba, era melhor do que anúncio na televisão.
** Inocente, o senhor Alberto embarcou na carrinha da cigana como os meninos dantes acreditavam que podia acontecer se não comiam a sopa. Foi, e viram-no só mais uma vez ou duas. Nunca mais, ao fim daqueles anos todos, queixava-se o dono da pastelaria. Um ingrato.
** Ao que parece, encontraram o senhor Alberto, no outro dia. Dizem que foi em São João da Madeira, mas não garantem que não tenha sido em Carcavelos ou em Santo Tirso. Anda de carrinha grande, com a sua cigana, a vender malhas, fatos de treino e atoalhados, deve ter deixado o sobretudo amarelo a imitar pêlo de camelo à mulher e aos filhos daquela vidinha certa que levara até aquele dia em que a cigana perguntara se ele queria comprar. E para grande espanto e escândalo de quem possa ouvir, contam as más-línguas que o senhor Alberto anda de mão dada com a cigana, um homem já naquela idade, ora vejam lá, rapou o bigode que sempre lhe conheceram e não veste sequer fato – só usa blusões e calças de ganga, o ginja, a querer armar em acelera. E é que acelera mesmo, dizem eles – tirou a carta, nunca mais andou de autocarro, e guia a carrinha entre as fábricas e as feiras dessa estranha e paralela rota da moda «boutique Alcofa».
** Na antiga vizinhança do senhor Alberto dizem que a cigana lhe deu qualquer coisa a beber. Não pode ter sido de outra maneira. Pois se ela, nem lhe leu a sina...
** É verdade. Mas o senhor Alberto anda feliz. A cigana, cantou-lhe a buena dicha.
Lisboa, 1987

Os agás mudos são uma gaita

VIA-SE, PERFEITAMENTE, que estava a pensar enquanto esmagava meticulosamente a ponta do cigarro no cinzeiro apinhado de beatas e cinza solta. Depois, com vagar, levantou para mim os olhos míopes e, sentencioso, disse, definitivo:
- Os agás mudos são uma gaita!
Agradeci e saí, acabrunhado, depois de ouvir a sentença a que recorrera, como mulher atraiçoada que recorre a quiromante estabelecida. Tinha-me recordado de procurar este amigo, velho revisor solitário e silencioso de letra de imprensa, classe que muito prezo e respeito, depois da minha última crónica. Durante anos conhecera-o num jornal em que trabalhei, lendo prosa avulsa de dezenas de homens e mulheres, entre a qual muita por mim produzida, e sempre mantivéramos, no decorrer dos tempos, vigorosas e interessantes discussões sobre sintaxe e semântica. Depois de me reler em letra de forma, quedei suspeitoso e intrigado, concluindo que algo de estranho se abatera sobre o que escrevo nestas crónicas, nas últimas semanas, a ponto de me sentir vítima de maldição faraónica.
Reli, uma vez mais, o que escrevera e, de reflexão em reflexão, envergonhado, confirmei a presença sistemática, ostensiva, mesmo ofensiva, de todos aqueles agás. Geralmente, agás fora de onde devem estar não fazem mal, porque são mudos e nunca aspirados na língua portuguesa, e desde que não combinados com outras consoantes que os costumam acompanhar são facilmente atribuíveis a erros tipográficos e o leitor não se preocupa com eles. Quando o leitor dá por eles diz. «Olha um agá mal acompanhado.» E, nas letras como em tudo, as companhias têm muita influência. Mas aqueles agás eram decididamente contra mim, porque deixariam seguramente no espírito de qualquer leitor a ideia de que entre mim e a gramática existe um conflito insanável, o que, em boa verdade, não corresponde aos factos, tanto quanto me é dado julgar.
Quero eu dizer, para me explicar melhor: todos aqueles agás se tinham ardilosamente perfilado atrás da vogal «O» da palavra «ouve», que correspondia naquele caso ao imperativo do verbo que traduz o acto de sentir as vibrações do tímpano captadas pelo ouvido externo, e que descodifica os sons em vocabulário para ser lido pelo cérebro.
Como se compreende, o resultado foi o mais grosseiro que se pode imaginar - a percepção auditiva ficou confundida com o pretérito perfeito do acto de ter ou do facto de existir, o que, além de confundir o leitor, atribui inadmissível ignorância ao autor.
E as suspeitas sobre a intenção criminosa ou da rogação de uma praga avolumaram-se quando, tudo bem conferido, não havia dúvida de que um único daqueles extemporâneos agás não estivesse perfilado atrás daquela mesma palavra com a qual se pretendia representar um vício de linguagem de um personagem ali caricaturado através desse próprio tique de oralidade.
Tirei de cuidados e fui ver um amigo que tenho na Judiciária, na esperança de que me poderia ajudar a deslindar o mistério. Desenganou-me: colegas que percebessem de letras só os que lidavam com cheques carecas e letras protestadas e eu agradeci e saí melancólico, por entre máquinas de escrever e cabo-verdianos a serem ouvidos em auto que eram traduções literais do crioulo para português-de-às-folhas-tantas. Mesmo assim, recomendou-me que arranjasse um detective particular.
Fiquei cá fora, encostado a um balcão, saboreando uma cerveja à pressão e matutando em tudo isto. Detective particular para língua só um linguista e não me ocorreu de repente nenhum que desse explicações. Foi por isso que recorri ao velho revisor, já reformado, mas um sólido investigador apoiado numa experiente brigada de prontuários.
E como bom polícia da língua, que passou a vida a meter as letras no seu sítio, perguntou-me:
- E o móbil? Quem ganha com este crime?
- Quem quiser desacreditar o autor - respondi-lhe.
- Homem, não tens acordo que te valha.
Foi este desabafo que me lançou uma pista. Precipitei-me para a dominical página das crónicas e reli com atenção redobrada o meu companheiro lisboeta. E logo, nas suas primeiras linhas, lá estava, despudorada, a palavra «excrever», que como sabe se soletra «escrever».
Também ele era atingido por esta maldição do erro tipográfico, que só atinge oficiais deste ofício, sem prejuízo para qualquer explorador de arcas perdidas.
E então o mistério ficou deslindado.
Semanas atrás, o meu amigo Bastos lançou o mais belo e lancinante apelo a favor da língua portuguesa, desde que pharmácia passou a farmácia, ao escrever contra o malfadado acordo «não me tirem, o p de Baptista». Com esta mania da solidariedade e de alinhar com os velhos amigos, logo eu, pumba, noutro periódico, me atirei como gato ao bofe ao linguicídio anunciado.
É a nossa perdição. Daqui para a frente só nos espera o morticínio. Expliquei tudo isto ao meu amigo revisor. Disse que sim com a cabeça, fumando em silêncio, para concluir, subitamente:
- Já assisti a muitos casos como este.
Explicou-me, então, que a maldição dos burocratas da língua só é igual às maldições de todos os outros burocratas. Num caso como noutros, são eles, burocratas, quem se encarrega de nos pôr pimenta na língua.
- Então, eu... – tartamudeei.
- Tu estás lixado. Os agás mudos são uma gaita.
-
NOTA - Esta crónica vem no seguimento de uma outra, já aqui afixada, intitulada «O caçador de cabeças».

Retrato do poeta sempre jovem

É UM VELHO À DESFILADA, num automóvel que corre junto ao mar.
Pergunto-lhe:
- Rafael, porquê sempre o mar nos poemas?
Responde-me:
- Não é o mar nos poemas. É esta baía. Nem nos mais de trinta anos que me obrigaram a levar fora deste país deixou de ser esta baía. Está aqui tudo. Passaram por aqui todos. Romanos, Fenícios, Cartagineses, Árabes. Está tudo escrito nesta baía. Não é o mar nos poemas. É esta baía.
Vamos à desfilada, eu e o Rafael Alberti, oitenta e quatro anos de andaluz, de cidadão do mundo, de guerra pela liberdade, oitenta e quatro anos de poesia. Fisicamente, está cada vez mais parecido com José Gomes Ferreira, longa cabeleira branca a cair-lhe amarelada sobre os ombros, mil rugas na pele escura. Minutos antes, ao entrarmos no carro, fora rodeado por um bando de adolescentes que lhe pedira autógrafos, como é normal os adolescentes pedirem a um cantor de rock, a um futebolista, actor de cinema ou toureiro. Não havia papel, ninguém tinha papel, e Rafael Alberti escreveu o seu nome e desenhou o seu peixe, que sempre acompanha o nome que assina, juntamente com uma estrela, na pele morena daquelas jovens e daqueles jovens.
Ficaram como tatuagens, nas costas e palmas de mãos e nos antebraços de todos aqueles jovens, que um dia mostrarão as mãos estendidas para os filhos, quando estes descobrirem os poemas de Rafael, e dir-lhes-ão:
- ... E sorriu para mim e escreveu aqui o nome. E depois desenhou um peixe, como os cristãos no tempo de Roma, e uma estrela de cinco pontas e voltou a sorrir para mim. Era um poeta, era um raio de um andaluz.
Olhou-me de esguelha e disse:
- Tens aqui três mil anos de história escrita. Está no papel. Por isso, não há que ter dúvidas. Quando se tem dúvidas vem-se aqui, a esta baía, e ela responde a tudo. Estiveram cá todos, à procura da resposta: Fenícios, Cartagineses, Romanos, Árabes e agora nós e os Americanos.
E com um orgulho nacionalista de quem resiste ao invasor:
- Estiveram cá todos. Todos menos os Franceses. Esses andaram pela Península, mas aqui não os deixámos pôr os pés. Por isso, homem, é que se tem de entender as Cortes e a Constituição de Cádis.
Viajamos à desfilada, junto ao mar, entre Cádis e Puerto de Santa Maria. Estamos próximos de Jerez de la Frontera, corremos ao longo da baía e antes faláramos de Buñuel e de Picasso, seus companheiros de exílio em Paris, de Piazzola e do que cada um de nós conhecia de Buenos Aires e de Roma. E disse-lhe eu:
- Homem, tens tantos anos que pudeste gastar muitos deles por todos esses sítios e com toda essa gente.
Eu sabia que só a um homem fresco de corpo e de espírito se pode falar de anos. Mas este é um jovem com oitenta e quatro anos de gozo e de guerras, as duas coisas que penso que se devem fazer, cada uma no intervalo da outra. Sei que não se deve magoar um velho falando-lhe de anos, mas este é um jovem com muitos anos. Ou não será um jovem com muitos anos aquele que já com mais de oitenta se apaixona e desperta paixões em mulheres frescas?
Além do mais, falámos destas e de outras coisas, bebericando goles de xerez e conversámos também da importância do vinho e da respectiva rota no conhecimento e na amizade dos povos.
E ele desse-me:
- Vê tu o meu nome, Alberti. Não é espanhol. É italiano. Aqui na baía há apelidos de todas as nacionalidades. Eles vinham buscar o xerez, e as nossas mulheres prendiam-nos e eles ficavam por cá. Está tudo nesta baía. A baía responde a tudo.
E conversámos sobre os Ingleses, o vinho do Porto e o seu primo afastado que é o xerez e de muitos nomes que à volta desta baía de facto existem, e ela de facto a tudo isto respondia, mesmo nas picantes histórias de mulheres.
O automóvel continua a correr junto ao mar. Vamos deixar o velho em mais uma das suas sessões: cartolina gasta com poemas debaixo do braço, a declamá-los de xerez e de uísque por todos os lados. Vira-o fazer isso outra vez, momentos antes. Digno, distante, afável sempre que o interessavam. E antes tivéramos ainda o nosso mano-a-mano de conferências, em sala apropriada a recordar as grandezas dos impérios desaparecidos.
Para mim, recordo um amigo comum que fascinado me descrevia o regresso de Alberti a esta Espanha democrática e o seu itinerário fantasmagórico, calcorreado por Madrid, entrecortado de exclamações «aqui era...» e de descrições detalhadas e rigorosas do que hoje não existe mais.
Vejo-o agora neste salão a ler poemas seus, dactilografados e belos, e penso que devia ser proibido pensar-se que pode haver poetas amestrados. Há muitos anos, conversei também com Ungaretti a bordo de um cruzeiro italiano que ele distinguia de convidado, apenas com a sua presença. E recordei também Jorge Amado, frequentemente exibido à mesa do Estoril-Sol. E vejo agora este velho, que chegou a ser vice-presidente das Cortes, e passeou em ombros pela Andaluzia, não como toureiro ou artista de outro género, mas com herói da liberdade. Olho-o a recitar poemas seus, por entre presunto, queijo, sardinhas alimadas, xerez e uísque e abandono-o assim, especado sob os flashes dos fotógrafos e os projectores do cinema e da TV, a ler poemas avulsos, belos e dignos.
E para minha consolação, ou talvez antes para minha vingança, dou pela minha voz a dizer a mim próprio, sozinho:«É como a baía. Passaram todos por ela. Romanos, Fenícios, Cartagineses, Árabes, e, agora também os Americanos, mas, tal como a baía, não pertence a ninguém.»

Uma carta de amor

VESTE SEMPRE UMA CAMISOLA DE LÃ, mesmo de Verão, o que, além de inevitavelmente ter de lhe fazer calor, lhe dá um ar de refugiado de alguma parte, acabado de chegar, sem bagagem e sem destino.
Está sentado, quase imóvel, no banco de lona articulado, sem mover a cabeça numa ou noutra direcção, acompanhando apenas com os olhos este ou aquele que por ali passam, com a pressa dos selos fiscais, das fotos á là minute, ou de mais um impresso que sempre falta à boca dos guichés.
Repousa as mãos afiladas, de dedos longos e postura delicada, numa prancheta de cartão prensado, cor verde-garrafa, e os olhos observam desinteressados o que acontece em cem graus de visão, os quais se recusa a aumentar, aconteça o que acontecer.
Passou o suficiente e calcorreou o bastante para ter a prata no cabelo e os sulcos na pele que só o arado da vida abre no coiro de cada um. Distinto e distante, sabe construir a sua superioridade da altura daquele mocho quase rasteiro, e quem nele atenta ou com ele fale fica com a sensação de ter à sua frente alguém a quem a vida pregou uma partida, mas que nada tem a ver com o sítio onde se posta, as pessoas que lhe falam, o dinheiro que lhe pagam ou a roupa que veste. Tem aquela idade indefinida que vai aos quarenta aos sessenta, sem que ninguém possa dizer ao certo quantos anos tem, e cumpre religiosamente um horário quer chova ou taça sol, debaixo da arcada onde vende os seus serviços, com ar de inspector de polícia ou de chefe de gabinete ou, melhor ainda, pela sua distinção, com ar de embaixador.
Preenche impressos a cinquenta escudos, escreve cartas a setenta e os analfabetos são o seu mercado. Mas, principalmente, preenche impressos, postado que está em posição fronteira ao Arquivo de Identificação, onde mesmo os analfabetos têm de ter uma identidade e um cartão que a prove com um número, uma cara e uma impressão digital. As cartas são menos frequentes, mas todos os dias tem pelo menos uma que escrever, o que faz sem emendas e em silêncio, após alguns minutos de conversa com o remetente para conhecer o conteúdo e o destinatário. Mostra-se, mais do que insensível, impermeabilizado aos assuntos que lhe sugerem para tema das relações que alinha em letra pontiaguda e agressiva, consoante a sintaxe que conhece e a vulgaridade das vidas sem história, ou das dificuldades sem grandeza de que lhe dão conta.
Pedem-lhe, normalmente, para escrever que tudo vai bem, que as crianças estão na escola, que vivem numa parte de casa mas que em breve se vão mudar, que arranjaram um andar só para eles ou que em breve começarão num emprego muito melhor. Quase sempre as coisas estão difíceis mas todos dizem que vão melhorar.
Outras vezes, nem isso. Apenas quinze linhas a dizer que tudo bem e que no Natal os não esperem, mas que na Páscoa vamos a ver. São cartas tristes, não por anunciarem algo de dramático, mas por reflectirem a desesperança de quem as encomenda. Começam, quase sempre, por «Maria», ou por «Querida Mãe», ou ainda por «Queridos Pais», e quem é que vai escrever à mulher ou aos pais, a dizer o que realmente lhes vai na alma? São meros registos de «nós por cá todos bem», o que raramente é verdade mas que serve para tranquilizar, e até dar orgulho a quem os recebe.
Muitas vezes pensa em quem vai ler o que está a escrever. Naturalmente que os analfabetos escrevem cartas uns aos outros. Não faria muito sentido um analfabeto escrever uma carta a um pai ou a uma mãe que sabem ler. Portanto, tem quase sempre a preocupação de as suas cartas manterem a oralidade que faz sentido não a quem as vai ler, mas a quem as vai escutar. Tem consciência que, no meio, há um codificador de sentimentos, que é ele, que escreve sinais num papel que alguém no destino descodificará em voz alta, soletrando o mais depressa que pode aquela caligrafia inclinada e ossuda.
Mas a maioria do seu trabalho é, já se sabe, com os impressos, nome, apelido, morada, nome do pai, nome da mãe, profissão, estado. É com isto que, aparentemente, se governa, escrevendo maiúsculas em quadradinhos verdes do computador, que regista tudo o que nós, Portugueses, somos ou, as mais das vezes, o que deixámos de ser.
No outro dia teve um sobressalto. Pediram-lhe para escrever uma carta de amor. Não lhe pediram assim. Foi um freguês, um homem ainda novo, de pele escura, com um endereço e código postal para o Sul, que lhe disse.
- Tenho uma carta para vossemecê escrever. Quanto é?
- Setenta escudos até duas páginas. O que é que quer dizer na carta?
- É para uma rapariga. Não quero dizer nada de especial. Não tenho nada para dizer. Quero só mandar-lhe dizer que gosto dela e penso nela todos os dias. Pode ser?
Sorriu, olhando demoradamente a cara morena que tinha à sua frente e que o olhava com ansiedade, e respondeu:
- Volte daqui a uma hora que já deve estar pronta. Vamos ver se sou capaz.
Depois, agarrou num velho bloco cujas páginas já iam em metade e tirou uma velha caneta de tinta permanente da pasta, guardando a esferográfica que usava nos impressos, e pôs-se à escrita, começando: «Meu amor.» Escreveu uma página e outra e outra, dos dois lados das folhas, até a caligrafia saía diferente, com a letra menos inclinada e mais arredondada até acabar «...custa-me viver assim, longe de ti, a pensar no que estarás a fazer em cada momento. Não me sais do pensamento. Quando estivermos juntos não nos separaremos mais. Amo-te».
Quando o rapaz voltou, perguntou-lhe o nome e assinou a carta. Escreveu cuidadosamente o envelope, com destinatária e remetente, e entregou-lho, sem o fechar, com um sorriso feliz:
- Pronto. Meta no correio. A mim, você não deve nada.
E quem por ali estivesse a observá-lo, na sua camisola de lã, as mãos delicadas repousando na prancheta de cartão verde-garrafa, sobre os joelhos dobrados pela posição no banco de lona articulado, descobrir-lhe-ia, na cara quase sem expressão, e nos olhos aparentemente desinteressados, um sorriso e um brilho que, sendo quase indecifráveis, se poderia apostar que eram de felicidade.

Uma carta de amor

VESTE SEMPRE UMA CAMISOLA DE LÃ, mesmo de Verão, o que, além de inevitavelmente ter de lhe fazer calor, lhe dá um ar de refugiado de alguma parte, acabado de chegar, sem bagagem e sem destino.
Está sentado, quase imóvel, no banco de lona articulado, sem mover a cabeça numa ou noutra direcção, acompanhando apenas com os olhos este ou aquele que por ali passam, com a pressa dos selos fiscais, das fotos á là minute, ou de mais um impresso que sempre falta à boca dos guichés.
Repousa as mãos afiladas, de dedos longos e postura delicada, numa prancheta de cartão prensado, cor verde-garrafa, e os olhos observam desinteressados o que acontece em cem graus de visão, os quais se recusa a aumentar, aconteça o que acontecer.
Passou o suficiente e calcorreou o bastante para ter a prata no cabelo e os sulcos na pele que só o arado da vida abre no coiro de cada um. Distinto e distante, sabe construir a sua superioridade da altura daquele mocho quase rasteiro, e quem nele atenta ou com ele fale fica com a sensação de ter à sua frente alguém a quem a vida pregou uma partida, mas que nada tem a ver com o sítio onde se posta, as pessoas que lhe falam, o dinheiro que lhe pagam ou a roupa que veste. Tem aquela idade indefinida que vai aos quarenta aos sessenta, sem que ninguém possa dizer ao certo quantos anos tem, e cumpre religiosamente um horário quer chova ou taça sol, debaixo da arcada onde vende os seus serviços, com ar de inspector de polícia ou de chefe de gabinete ou, melhor ainda, pela sua distinção, com ar de embaixador.
Preenche impressos a cinquenta escudos, escreve cartas a setenta e os analfabetos são o seu mercado. Mas, principalmente, preenche impressos, postado que está em posição fronteira ao Arquivo de Identificação, onde mesmo os analfabetos têm de ter uma identidade e um cartão que a prove com um número, uma cara e uma impressão digital. As cartas são menos frequentes, mas todos os dias tem pelo menos uma que escrever, o que faz sem emendas e em silêncio, após alguns minutos de conversa com o remetente para conhecer o conteúdo e o destinatário. Mostra-se, mais do que insensível, impermeabilizado aos assuntos que lhe sugerem para tema das relações que alinha em letra pontiaguda e agressiva, consoante a sintaxe que conhece e a vulgaridade das vidas sem história, ou das dificuldades sem grandeza de que lhe dão conta.
Pedem-lhe, normalmente, para escrever que tudo vai bem, que as crianças estão na escola, que vivem numa parte de casa mas que em breve se vão mudar, que arranjaram um andar só para eles ou que em breve começarão num emprego muito melhor. Quase sempre as coisas estão difíceis mas todos dizem que vão melhorar.
Outras vezes, nem isso. Apenas quinze linhas a dizer que tudo bem e que no Natal os não esperem, mas que na Páscoa vamos a ver. São cartas tristes, não por anunciarem algo de dramático, mas por reflectirem a desesperança de quem as encomenda. Começam, quase sempre, por «Maria», ou por «Querida Mãe», ou ainda por «Queridos Pais», e quem é que vai escrever à mulher ou aos pais, a dizer o que realmente lhes vai na alma? São meros registos de «nós por cá todos bem», o que raramente é verdade mas que serve para tranquilizar, e até dar orgulho a quem os recebe.
Muitas vezes pensa em quem vai ler o que está a escrever. Naturalmente que os analfabetos escrevem cartas uns aos outros. Não faria muito sentido um analfabeto escrever uma carta a um pai ou a uma mãe que sabem ler. Portanto, tem quase sempre a preocupação de as suas cartas manterem a oralidade que faz sentido não a quem as vai ler, mas a quem as vai escutar. Tem consciência que, no meio, há um codificador de sentimentos, que é ele, que escreve sinais num papel que alguém no destino descodificará em voz alta, soletrando o mais depressa que pode aquela caligrafia inclinada e ossuda.
Mas a maioria do seu trabalho é, já se sabe, com os impressos, nome, apelido, morada, nome do pai, nome da mãe, profissão, estado. É com isto que, aparentemente, se governa, escrevendo maiúsculas em quadradinhos verdes do computador, que regista tudo o que nós, Portugueses, somos ou, as mais das vezes, o que deixámos de ser.
No outro dia teve um sobressalto. Pediram-lhe para escrever uma carta de amor. Não lhe pediram assim. Foi um freguês, um homem ainda novo, de pele escura, com um endereço e código postal para o Sul, que lhe disse.
- Tenho uma carta para vossemecê escrever. Quanto é?
- Setenta escudos até duas páginas. O que é que quer dizer na carta?
- É para uma rapariga. Não quero dizer nada de especial. Não tenho nada para dizer. Quero só mandar-lhe dizer que gosto dela e penso nela todos os dias. Pode ser?
Sorriu, olhando demoradamente a cara morena que tinha à sua frente e que o olhava com ansiedade, e respondeu:
- Volte daqui a uma hora que já deve estar pronta. Vamos ver se sou capaz.
Depois, agarrou num velho bloco cujas páginas já iam em metade e tirou uma velha caneta de tinta permanente da pasta, guardando a esferográfica que usava nos impressos, e pôs-se à escrita, começando: «Meu amor.» Escreveu uma página e outra e outra, dos dois lados das folhas, até a caligrafia saía diferente, com a letra menos inclinada e mais arredondada até acabar «...custa-me viver assim, longe de ti, a pensar no que estarás a fazer em cada momento. Não me sais do pensamento. Quando estivermos juntos não nos separaremos mais. Amo-te».
Quando o rapaz voltou, perguntou-lhe o nome e assinou a carta. Escreveu cuidadosamente o envelope, com destinatária e remetente, e entregou-lho, sem o fechar, com um sorriso feliz:
- Pronto. Meta no correio. A mim, você não deve nada.
E quem por ali estivesse a observá-lo, na sua camisola de lã, as mãos delicadas repousando na prancheta de cartão verde-garrafa, sobre os joelhos dobrados pela posição no banco de lona articulado, descobrir-lhe-ia, na cara quase sem expressão, e nos olhos aparentemente desinteressados, um sorriso e um brilho que, sendo quase indecifráveis, se poderia apostar que eram de felicidade.

Onde a carta ao director passa a crónica de última página

Senhor Director

Juro que esta é uma vez sem exemplo, palavra que eu não torno. Vosselência sabe bem que eu não me meto na política, que a minha política é o trabalho. Mas esta semana, vez sem exemplo, palavra que eu não torno, sinto este irresistível apelo de escrever sobre política.
Não pretendo, creia-me, substituir-me a Vosselência, nem competir com V. ilustres confrades desse género difícil e ingrato que é análise política, tanto mais que tal tarefa exige muitos conhecimentos, excelsa perspicácia, grande isenção e informação actualizada (à qual nem sequer disponho de acesso).
O meu impulso, esta semana, seria contribuir através do espaço que Vosselência me concede para fazer uma sugestão que provavelmente pode não ter ainda ocorrido a quem de direito. Não queria, portanto, alinhar na crítica a este Governo do professor Cavaco, nem tão-pouco fazer coro com aqueles que, por razões igualmente respeitáveis, o apoiam. O que eu gostaria, Senhor Director, era que Vosselência me autorizasse a fazer aqui a minha sugestão para o bem do nosso querido Portugal.
É certo que o Executivo actual pode muito bem arranjar um novo fôlego neste intervalo que vai até ao fim do campeonato do Mundo de Futebol. Poderão o professor Cavaco e seus rapazes fazer o que entenderem, que as pessoas só vão dar por isso em Outubro. E nessa altura vão ficar entretidas com o entra-não-entra do general Eanes no PRD e o Governo poderá dar uma segunda demão na sua maquilhagem para disfarçar as rugas que hoje já começam a aparecer.
No entanto, não é nada disto que quero dizer. Em política não me meto, a minha política é o trabalho. Eu só pretendo fazer uma sugestão a quem de direito, para bem do nosso querido Portugal. E palavra que é uma ideia que me ocorre há muito, mas que, face ao Campeonato do Mundo, ganhei coragem de apresentar a Vosselência.
Já reparou, Senhor Director, em quem treina a selecção de Marrocos? Anotou, Vosselência, quem diz ao Abder Karim como deve rematar? Pois claro que Vosselência reparou - é o meu amigo José Faria, um brasileiro, que em árabe nem é capaz de dizer «Salaam alekum».
E notou também, Senhor Director, quem treina a selecção do México? Claro que sabe que é um jugoslavo.
E pensou Vosselência onde jogam o Platini da França, o Boniek da Polónia, o Madjer da Argélia e o polaco dos bigodes que é guarda-redes, além dos dinamarqueses todos da Dinamarca?
É evidente que Vosselência sabe. Eles jogam na Itália, na Bélgica, em França e no Porto e em tudo que é sítio menos nos países deles.
Claro que aqui podia haver críticas, inspiradas na Administração Reagan, que não poupa aos cubanos que jogam em Angola, ou aos soviéticos que reforçam a equipa em Cabul no Afeganistão. Mas não há. Para disfarçar, estes jovens futebolistas vão de cooperantes para outros países, mas com contratos melhores do que aqueloutros pagos pelo PNUD, pela UCTAD, UNICEF, UNESCO, FAO e outros organismos internacionais.
Portanto, deste modo, estão afastadas as suspeitas de internacionalismo proletário, que ficam só para os cubanos e soviéticos, e é bem feito, para eles não se meterem onde não são chamados.
Mas de política eu cá não percebo nada, nem quero perceber, a minha política é o trabalho. O que eu quero é fazer uma sugestão a quem de direito para bem do nosso querido Portugal.
Reparou também o Senhor Director que nós por cá vamos buscar estrangeiros para nos ajudarem no desporto. Temos americanos no basquetebol, todas as nacionalidades no futebol, exportamos hoquistas, enfim, aderimos com naturalidade a esta prática universal.
A minha ideia, portanto, Senhor Director, para Vosselência aproveitar como melhor entender e fazer chegar a quem de direito, é a seguinte:
Se importamos quem nos faz falta no desporto, porque não fazemos o mesmo na política?
Com um bom contrato, por dois anos, que os governos também não duram mais do que isso, nós podíamos cá ter quem nos ajudasse a superar as nossas dificuldades, e trabalhasse para o bem do nosso querido Portugal.
Dependeria da Assembleia da República limitar, ou não, o número de estrangeiros. Mas poderíamos assim permitir ao professor Cavaco Silva que, quando os Portugueses acordassem, em Outubro, encontrassem um novo elenco.
Quero eu dizer - que não percebo de política, a minha política é o trabalho - que, se o professor Cavaco aproveitasse esta ideia, poderia estar a preparar-se para a próxima época.
Que me diz o Senhor Director a uma remodelação que metesse no Governo, como vice-primeiro-ministro, Adolfo Suárez, de Espanha, e como ministro dos Negócios Estrangeiros Henry Kissinger, dos Estados Unidos, tendo o ministro das Finanças e do Plano Helmut Schmidt, da RFA?
Ou se preferir, porque não poderíamos abusar do número de estrangeiros, Giscard D' Estaing vice-primeiro-ministro - o primeiro-ministro seria sempre o professor Cavaco, bem entendido -, Pierre Trudeau nos Negócios Estrangeiros, Willy Brandt na Cooperação, James Carter na Agricultura?
Não acha o Senhor Director que esta é uma boa ideia?
É ou não é uma ideia construtiva, que só poderia beneficiar o nosso querido Portugal? Cá por mim não hesitava. Mas isto é com quem de direito. Eu destas coisas não percebo nada. A minha política é o trabalho.

Mesa para dois

SENTA-SE MUITO DIREITO, raramente sorri quando o servem, sejam empregados ou mesmo o patrão. Alisa com grande cuidado o casaco, puxa as calças no sentido de proteger os vincos irrepreensíveis e, com um toque, certifica-se de que o nó da gravata está no seu sítio. Estuda a descrição dos pratos do dia com a atenção de um general a analisar uma ordem de batalha, apesar de almoçar naquele restaurante vai bem para trinta anos. Lê a lista dos vinhos, embora sempre queira o mesmo, determinada meia garrafa de branco, e faça sempre a mesma recomendação:
- Gelado, mesmo muito gelado.
E depois de dizer essas palavras sábias, encosta-se ao espaldar da cadeira com a força de quem espera que alguém venha tentar arrancá-lo dali.
- Duas pessoas, não é verdade, senhor Domingos?
- Duas pessoas, evidentemente. Mas eu não espero.
Há quase trinta anos que almoça neste restaurante todos os dias úteis. Sozinho, hirto, saboreando pequenos goles do vinho, maduro no Inverno, verde no Verão. À sua direita, jaz sempre um talher, um copo e um guardanapo que em todo este tempo nunca foram utilizados.
- Podemos servir, senhor Domingos? Senão o peixe arrefece...
- Amigo não empata amigo. Sirva, que, se entretanto chegar as desculpas são-me devidas.
Quando um empregado começa a trabalhar naquele restaurante explicam-lhe, invariavelmente, quem é o Sr. Domingos, o que come, que é sempre ou linguado grelhado ou filetes de pescada. E explicam-lhe que bebe sempre branco, maduro no Inverno, verde no Verão. E baixando a voz pedem ao novo empregado que não preste demasiada atenção ao talher que o Sr. Domingos exige vai para trinta anos, naquela mesa para seis pessoas, junto à janela, onde acaba sempre por comer sozinho.
Invariavelmente às doze e quarenta, o Sr. Domingos entra no restaurante. É uma hora estratégica, pois cinco minutos mais tarde a casa começa a encher-se e deixa de haver mesas vagas. O Sr. Domingos nunca fez uma reserva.
- Um aperitivo, senhor Domingos?
- Pode ser o costume. Um porto seco
- Duas pessoas, senhor Domingos?
- Duas pessoas, evidentemente.
Pode pensar-se que gosta de comer sozinho. Mas se esse é o caso, já não se entende que não recorra a um jornal, livro ou revista para afastar os importunos.
Poderia explicar o dono do restaurante, onde há quase trinta anos o Sr. Domingos almoça, que este é o dono de uma ourivesaria. Foi o Sr. Domingos, aliás, quase engenheiro. Estudava no Instituto Superior Técnico, quando o pai, fundador da ourivesaria que se dizia pertencer ao Sr. Domingos, se finou. Segundo a mesma fonte, ou seja, o dono ao restaurante, na sua crónica para entreter secos e molhados diz à boca pequena que o pai do Sr. Domingos, o ourives, teria falecido no supremo esgotamento de um coito pós-cozido à portuguesa, portanto a uma quinta-feira, num escândalo logo abafado, como a moral impõe, ao qual terá sobrevivido uma extrovertida manicura de uma barbearia da Baixa.
Instado pela mãe («E agora, filho, quem toma conta do negócio, o que vai ser de nós?»), o Sr. Domingos deitou as propinas às malvas, nunca mais pôs os pés no Instituto Superior Técnico e atirou-se às escravas, medalhas, anéis, correntes de relógio, brincos e outros pequenos objectos que são minúsculos sinais exteriores de desafogo, ou títulos de aforro, e que ele pacientemente também vende através de pequenos pagamentos mensais.
Ninguém se atreve a falar ao Sr. Domingos.
Todos se ficam pelo cumprimento de cabeça e só quem trabalha naquele restaurante ou crianças que vendem pensos ou lotaria ousam dirigir a palavra ao Sr. Domingos.
- Duas pessoas, senhor Domingos?
- Duas pessoas, evidentemente.
Um dia passou pelo restaurante um empregado que ali pouco tempo trabalhou mas que deixou uma dúvida profunda, que permaneceu para além da sua efémera estada.
Um dia de calor, às quatro e meia da tarde, à mesa com todos os seus colegas, incluindo as carnes distendidas e suadas das cozinheiras, servindo-se de mais grão, esse ladino empregado lançou inquietações que sobreviveram anos. Referindo-se ao Sr. Domingos, a quem pela primeira vez servira nesse dia, o jovem perguntou:
- Mas afinal o gajo está à espera de um homem ou de uma mulher?
Naquele calor húmido, à volta dos restos concentrados do bacalhau com todos, do chispe à transmontana e do arroz de tomate, pairou uma grande inquietação. Nunca ninguém pensara nisso, e logo ali as opiniões se dividiram. Para uns, o desprendimento com que O Sr. Domingos dizia não esperar mais levava-os a ter a certeza, nascida naquele instante, de que se tratava de um homem. Para outros, que julgavam por suspiros que garantiam ter escutado, era irremediavelmente uma donzela quem há perto de trinta anos faltava, todos os dias, ao almoço com o Sr. Domingos.
Esta semana, o mistério ficou deslindado. E, ainda ontem, os empregados e até o proprietário do restaurante sorriam para o Sr. Domingos.
A descoberta ficou a dever-se à entrada de uma velha senhora, que, muito digna, mas envergonhadamente, procurava vender pequenas rosas vermelhas aos homens que ali almoçavam acompanhados por mulheres. Mas nem a doçura da companhia lhes adoçava o gesto seco e sem apelo com que afastavam a velha senhora que vendia pequenas rosas, digna mas envergonhadamente, no restaurante onde o Sr. Domingos almoça, todos os dias úteis há perto de trinta anos.
No meio de um silêncio súbito e de muitos olhares cruzados, o Sr. Domingos disse alto e bom som:
- Deixe ver uma rosa dessas para a minha amiga que pode ser que apareça hoje.
E ontem já o empregado perguntou ao Sr. Domingos:
- Mesa para si e para a sua amiga, não é verdade senhor Domingos?
- Claro, como sempre. Nunca se sabe quando ela vai aparecer. E dois copos para o branco gelado. Mesmo muito gelado.

Pela hora da morte

TODA A GENTE DIZ que a vida já não é o que era. Mesmo aqueles que vivem bem, na abastança, assim o entendem, o que impede que este desabafo possa constituir privilégio dos humildes.
A vida já não é o que era. É um facto. Mas a morte também não.
Quer nos confortos e nos pormenores que nos dão os mimos da vida, quer nas alegrias e nas dores que nos temperam a existência, ou nas pompas e nas circunstâncias com que antecedemos o fatal desenlace, que será o «grande final» de todos e cada um, se perdeu, irrecuperavelmente, a qualidade.
Morrer, hoje em dia, além de estar pela hora da morte, já não é o que era.
Morremos mal e depressa. Os nossos amigos nem sabem bem do que morremos e os nossos inimigos lançam facilmente insidiosos boatos na maior impunidade, por meio de melífluos sorrisos que parecem querer dizer tudo e não dizem nada, mas que são mortíferas certidões de óbito da nossa virilidade, da dignidade dos nossos herdeiros. Definitivamente, não se pode morrer em paz.
Os testamentos são raros. Essa celebração hipócrita, de negro irrepreensível à volta de um notário de voz trémula e solene, de olhar perscrutador perseguindo todas as reacções da assembleia, praticamente desapareceu.
Resta aos vivos a emoção instantânea e sem glória do totoloto ou a pinderiquice de um carro no «Um, dois, três». Resta aos mortos deixarem dívidas sem honra ou andares de juro bonificado.
Amigos do peito, daqueles para todas as ocasiões a ponto de porem gravata preta no dia em que nos acompanham à última morada, já não há. Hoje, o traje para um funeral ou é ditado pelo acaso ou envergado em consonância com a caracterização dos acompanhantes.
Morre um amigo, pintor de arte. Vai-se de camisa branca, dois botões abertos, fio de ouro grosso, blazer azul-marinho, jeans, sapatos de pala, de preferência com elástico verde e vermelho, a imitar Gucci.
Morre um amigo, gestor de empresa pública. Vai-se de príncipe-de-gales cinzento, camisa azul Oxford, gravata azul-escura a contrastar, preferivelmente de seda pura e adamascada.
Morre a mãe de um amigo. Não se vai. Manda-se telegrama e espera-se junto à pia da água benta a saída da família em missa do sétimo dia.
Morre uma actriz que se admirava. Vai-se para que toda a gente pense que teria havido coisa em que se não deve pensar, muito menos em tal momento, e envia-se um bouquet de rosas Baccarat.
De flores, nem falar se deve. Dispendiosas e importadas, quase inodoras, não deixam mais aquele cheiro típico de enxerto em cera de círio que se consumia lentamente nos tempos dos velórios a sério.
Coroas. É bom nem referir. Toda a gente sabe que quase não há.
Os necrófilos foram extintos como libelinhas. A necrofilia erradicada, como a varíola, e nem se manifesta nas formas mais suaves e benignas, cujos sintomas eram facilmente detectáveis nos olhos gordos que escorriam para o negro acanalhante de um vestido de viúva, ou para o brilho cintilante e convidativo de um par de alianças ostentado no mesmo dedo branco e leitoso de carnuda viúva, ou de esguio e austero viúvo.
O respeito de um cortejo automóvel, de marcha pesada, longo comboio negro reluzente a atravessar a cidade que respeitosamente tirava o chapéu à sua passagem, que silenciosamente encomendava almas ao Criador, cedeu lugar à buliçosa gincana de carros vermelhos ou cinzento-metálicos, japoneses, com prova de perícia final junto ao cemitério, onde as badaladas se confundem em ritmo alucinante de última volta de corrida de atletismo. As três badaladas e o balde de cai converteram-se em imagem literária, reduziram-se ao pó da liberdade poética.
As carretas puxadas por três parelhas de cavalos ajaezados de negro e prata, de grandes palas sobre os olhos com cocheiros e trintanário, mestre-de-cerimónias e carpideiras, são recordações nostálgicas de meninos dos anos 40, a embaciarem com o bafo húmido as vidraças das tardes de Novembro, trémulos de medo do quarto escuro.
Hoje, viaja-se para a última morada em Mercedes panorâmico, com rádio-telefone e bancos de autopullman tipo familiar.
Da promiscuidade post mortem é melhor nem falar.
Quem se lembra do tempo em que também na morte todos sabiam o lugar que lhes pertencia? Onde vai o tempo em que, nos jazigos, as prateleiras de cima se deixavam para os avós, as do meio para os pais, as rés ao chão para os filhos, que deveriam morrer em seu tempo, e no subsolo havia sempre lugar para um velho criado sem família, ama de leite ou caseiro dedicado?
Como se pode ser indiferente a esses mausoléus que albergavam urnas de bom: mogno incrustado, com fotografias sorridentes em molduras de laca, madrepérola e prata, anjinhos de canteiro, ou mesmo de escultor, tocando trombetas dos dois lados do nome de família honrada, de preferência soletrado com duas consoantes, e tudo isto dominando as classes mais desfavorecidas, alinhadas onde lhes competia, no pó a que regressavam, cruz, sim, cruz sim?!
Sobretudo, como se pode não fazer o sinal da cruz perante a promiscuidade em que cada um cai hoje, depois de morto, esse festim de urnas acolchoadas em jazigos onde já nem se respeita a tia morta no Caramulo, de tuberculose; onde se tem dúvidas sobre qual é a urna do pai, onde se chega sem que a opinião pública, aqueles que contam, leiam uma coluna necrológica como deve ser, como as de outros tempos, em que havia extintos benfazejos, famílias beneméritas e senhoras muito esmoleres?
Na impossibilidade quase certa de, no que respeita à liturgia da morte e suas indústrias subjacentes, acompanharmos o que de bom se pratica lá por fora, onde os cemitérios parecem greens sem golfistas e cuidadosos caracterizadores nos maquilham extremadamente para que repousemos sem olheiras; na certeza de que os bons tempos ora aqui evocados não voltarão para todos nós que ainda não fomos a Deus chamados a servir em Sua presença, resta-nos a reconfortante conclusão, reconfirmada na paz deste domingo, que a única coisa a fazer é viver o mais e o melhor possível. Ainda que saibamos que a vida já não é o que era.

O crucifixo da tia Alícia

ADORAVA IR LANCHAR a casa da minha tia Alícia. Patinava no corredor, jogava hóquei em patins com a bengala dela, bebia chocolate quente até me doer a barriga e, no regresso a casa, enquanto esperava o eléctrico no Largo do Carmo, enchia os pulmões de cheiro a cavalo, que, a partir do quartel da GNR, me dava a sensação de que as ruínas do convento eram despojos de batalha acabada de travar.
Eram poucas as vezes, no entanto, que ia àquele casarão pombalino, cheio de sombras, de rangidos e estalidos. Talvez por lá ir muito espaçadamente, ficaram gravados na minha memória todos os momentos que ali passei.
Tudo me era permitido por aquele anjo protector que sempre foi a minha tia. Recordo-me da tarde em que, numa jogada fulminante, entrei na área dos espanhóis e rematei, imparável, a «stickada» que deu a Portugal o golo da vitória no Campeonato do Mundo. Foi um estrépito enorme que acolheu aquela minha triangulação com Jesus Correia e Correia dos Santos. Em cacos, o bengaleiro de louça de Coimbra desfez-se, no tapete de Arraiolos.
- Deixem lá, coitadinho - dizia sempre a minha tia -, se ele não faz estas coisas agora, quando querem vocês que ele as faça?
Só a vi triste quando lhe deixei cair da janela das águas-furtadas, de onde tentava ver um par de pombos a acasalar, os binóculos prismáticos que tinham pertencido ao meu defunto tio Alfredo. Pesados, longos, negros e frios, os binóculos com que o meu tio se munia para assistir às regatas, despenharam-se nas pedrinhas da calçada, transformados em inúteis caleidoscópios a preto e branco e que, na queda, podiam, ter morto alguém.
- Pronto, não se fala mais nisso - dizia a minha tia -, isto são coisas que acontecem.
Mas não conseguia disfarçar a tristeza que devia sentir quando acariciou o corpo, frio e inútil, do instrumento que a velha criada fora apanhar à rua, trazendo-o na mão como um par de maracas, chá-chá-chá, abanando a cabeça e suspirando «Ai, menino, ai menino.»
A minha tia e a criada pareciam duas meninas, embora ligadas entre si por mais de quatro décadas de doenças e de mortes, de cautelas de penhor clandestinas, de encontros sub-reptícios e saídas furtivas, de ave-marias e padre-nossos em comum, a duas vozes, na penumbra do oratório.
O oratório era uma pequena antecâmara do quarto da minha tia. Tinha um enorme Cristo na cruz, quase em tamanho natural, e eu não resisti, um dia, a ir estudar-lhe as chagas das lanças dos romanos, encarrapitando-me numa pilha de almofadas de cetim amontoadas no veludo do genuflexório.
Dessa vez, a minha tia Alícia foi de extrema severidade para comigo. Agarrou-me por uma orelha e, com uma crueldade contida que ainda hoje recordo, disse, batendo as sílabas uma a uma:
- O menino nunca mais ali entra. Se volto a vê-lo naquele quarto, nunca mais põe os pés nesta casa!
Nessa noite, na escuridão do meu quarto, apanhando a renda do travesseiro, não consegui descortinar qual poderia ser a relação secreta entre Alícia, a minha tia, e aquele Cristo que me fascinava em tamanho natural, nu e cor de carne, com chagas a sangrarem e que dava a sensação de ter acabado de expirar ou de estar à beira do último suspiro. Já homem, viria a descobrir que esse era o fascínio daquele belo crucifixo: a proximidade da morte, pouco importava se ocorrida ou prestes a acontecer.
Foi nessa altura, muitos anos passados sobre a ameaça gélida da minha tia, à luz da lamparina de azeite do oratório que decifrei também a razão da sua crueldade contida.
Ao contrário da imagem generalizadamente conhecida de Jesus, aquele Cristo não tinha barba. Não só não tinha barba como era a cara do jovem que jazia em sépia, no florão de cobre da moldura que segurava um naperão sujas pontas tombavam, como um xaile, sobre o teclado cor de marfim velho do piano vertical, de quatro pedais que, mudo, enfeitava a sala de visitas.
- Queres ficar com o Cristo como recordação da tua tia? - perguntaram-me com a cerimónia desinteressada de um inventário post mortem.
- Não – respondi. - Quero apenas um pequeno objecto pessoal, que seja realmente uma mera recordação.
Nunca mais vi aquele Cristo nem sei o que foi feito de Jesus. Guardei apenas uma pequena pistola niquelada, de coronha de madrepérola, que me recorda uma senhora que cresci a venerar como uma santa, incapaz de fazer mal a uma mosca.

Ai coração, coração

ANDAMOS JÁ A VIVER com os corações uns dos outros. Devíamos deixar de correr por aí, voltar a poder fumar vários maços de cigarros por dia e beber sem restrições. Quando o nosso coração começasse a dar sinais de querer estoirar, a gente encomendava um bom coração, com pouco uso, para aí de dezoito, vinte anos, no máximo, e quando o «berro» viesse aí a gente trocava.
Ganhávamos assim, sem alardes, sem campanhas, sem sacrifícios nem correrias, um coração jovem.
Por mim, estou totalmente de acordo. Põe-se-me apenas uma única questão, e esta é a dos sentimentos.
Eu explico.
Desde pequenino que ouço dizer que Fulano tem bom coração, que ouço murmurar «trago-te no coração», que ouço afirmar que Sicrana tem «um coração de pomba», e que a mãe dela tem «um coração do tamanho desta casa». Portanto, a questão é realmente esta - vai-me custar a acreditar que o coração é só uma bomba que, pumba-pumba, nos põe o sangue a correr pelas veias Desde que o sul-africano Christian Barnard começou a trocar corações que espero que alguém me esclareça. Falou-se em anticorpos, em aceitação, mas quanto a sentimentos, nada...
Quero dizer na minha: a gente fica com um coração novo, deitam o nosso para o balde, e depois?!
Ficarmos com as paixões do dador, os seus bons ou maus sentimentos, passamos a ficar apaixonados por quem aquele coração novo sempre bateu, passamos a odiar quem aquele coração não perdoa?
Ninguém me explica...
Pejo sim pelo não, penso que é melhor reformular pelo menos o fado e o tango, que são as canções mais cardiológicas que conheço. Mas a sério: já pensaram nisto com certeza. Como será? Já alguém perguntou a um receptor de coração transplantado:
- Ainda gosta da sua mulher? Sente a mesma coisa pelos seus filhos?
Ninguém teve coragem de perguntar isto. E deve haver uma razão para isso. Porque naturalmente que o entrevistado não responderia com sinceridade. Já imaginaram alguém, ligado aos tubos, cheio de fios, depois de tanto ter sofrido, agradecer o apoio dado por toda a família com uma declaração brutal, mas sincera, do tipo:
- Vocês não significam nada para mim. O meu amor agora é outro.
Devia ser o bom e o bonito.
Desta forma, creio que a única maneira de saber o que se passa, depois do transplante de um coração, é um repórter submeter-se a essa experiência. Se eu ainda fosse jornalista de redacção, com agenda a cumprir, e visse que me tinham marcado «Letria - coração novo», metia-me num automóvel, chegava ao hospital e dizia ao cirurgião.
- Doutor, faz favor. Mas deixe-me saber antes, com precisão, de quem é o meu coração novo.
E preparava-me. Pedia nomes de namoradas, de pai e de mãe, de patrões, de colegas e camaradas, de amigos e inimigos. E tentava perceber o que se iria passar quando acordasse. E verificaria se, de facto, tinha perdoado tudo aos meus inimigos, se já não amava quem amei, se tinha amores novos. E escrevia tudo isso numa reportagem que o jornal classificaria de sensacional e em grande exclusivo, contava tudo com muito cuidado e rigor, ainda quente, quer dizer, ligado ainda à máquina do bip-bip.
Depois, dava uma conferência de Imprensa. Reunia autores de letras, trovadores e poetas e dizia-lhes:
- Meus amigos, deixem-se disso. Não digam mais «o meu coração bate por ti». Não escrevam mais sobre o coração. O coração, meus amigos, é uma bomba hidráulica. Faz pumba-pumba e nada mais. Essa coisa da dor de corno, musical ou poética, está mas é toda na cabeça, aliás apropriadamente.
Se calhar, desligavam-me a máquina. Ou alguém indignado me pisava o tubo. Não seria de estranhar, porque se ainda ninguém falou destas coisas é porque deve haver uma razão de peso, possivelmente um contrato que se eu o denunciasse, me despedaçava o coração. Mas juro que faria de tudo isto uma campanha, nem que tivesse de transmitir em morse, com os bip-bip da máquina:
- O que o Dom Pedro mordeu foi uma bomba hidráulica, nada mais.
Possivelmente, nessa altura, faziam-me novo transplante e punham-me um coração de plástico, acabando-se tudo. Ficava vivo, mas teso que nem um carapau, com um bip-bip muito certinho.
Pelo sim pelo não, o melhor é utilizar o método dos dois corações. Porque ou nada disto é verdade e sempre é melhor ter um coração sobressalente e continuar ligado ao nosso coração de origem, ou então é mesmo verdade e a gente deve pedir ao médico que, já que nos vai substituir o músculo cardíaco, faça o favor de nos arranjar um coração com pêlos, que a vida e este mundo não estão para corações fracos.
Ninguém me diz se isto acontece de uma maneira ou de outra. Portanto, não tomem estas minhas palavras para além daquilo que elas verdadeiramente representam: um cronista de jornal a escrever em voz alta, desinibidamente, com sinceridade, de todo o coração.

Laranja amarga

METEM POEMAS DEBAIXO DOS NOSSOS PÉS. Com a discrição de quem não sabe escrever e só fala quando tem coisas importantes a dizer.
Curvados sobre os joelhos, sentados sobre os calcanhares, escrevem poemas a preto e branco nas calçadas da cidade que, esventrada, se abre e entrega aos devaneios deles.
De martelo e pedras escolhidas nas mãos, cobrem a pele da cidade com uma tatuagem fina, filigranada. É a sua forma de escrita, resistente e pesada como o calcário que manuseiam, com o qual dizem flor, amor, barco, corvo, curva, cálice, verdade.
São bandos silenciosos e rasteiros, olhando pedra a pedra, estudando a rua onde se sentam, com os olhos a um nível nunca superior aos calcanhares indiferentes que se afastam. Vêm de fora, com a pele curtida e as mãos duras, que volteiam calhau após calhau. E levam-nos, em camionetas, em bandos silenciosos e encarrapitados nas caixas abertas, sem nunca olharem para trás, para aquilo que deixaram escrito para ser pisado pelos pés indiferentes a poemas figurados, com rima em amor, flor, barco, arco, corvo, curva, cálice, verdade.
Enfeitam a cidade que não é deles. E silenciosos se vão embora, assim calados e sem remetente, para as suas terras sem pedras no chão a enfeitarem o caminho dos passos desencontrados.
Nas ruas das terras deles, o enfeite é, normalmente, outro. Quase todas têm apenas por adorno filas de laranjeiras amargas, coloridas e cheirosas para os tristes e frios dias de Inverno.
Sempre que alguém quer um poema de pedra escrito nas ruas de uma cidade, a preto e branco, certo, de caligrafia regular (a única que conhecem no território calcário que é o seu) vão buscá-los. E lá ficam, rasteiros e silenciosos, de pedras e martelo nas mãos, a fazerem a caligrafia que aprenderam em meninos e que nunca conheceu reformas ortográficas nem grafismos electrónicos.
É um trabalho paciente, pedra a pedra, peça a peça, um bordado meticuloso, certo, combinado, escrito com a lentidão de quem escolhe as palavras que ali vão ficar mudas, em figuras silenciosas, a dizerem-nos coisas simples e belas que vão de laranja amarga a amor, flor, barco, arco, corvo, curva, cálice, verdade.
Por vezes, mais parece um difícil quebra-cabeças, destinado à indiferença das solas-para-que-vos-queremos de quem tem destino certo, ou simplesmente vagueia num mosaico a preto e branco, desenhado a calcário por estes homens que chegam, e partem, silenciosos, no seu cotim, cinzentos, em caixas abertas de camionetas escuras e sorumbáticas, que os aguardam enquanto trabalham.
A exposição dos seus trabalhos não tem vernissage possível. Quando muito, uma mangueira possante, a atirar para longe restos de areia que serviu de leito às pedras colocadas depois de partidas com ponderação, para encherem a parte do desenho que lhes compete.
Sentam-se em pequenos tacos, ou caixas, de madeira, quase nos próprios calcanhares, e olham o que fazem por entre os joelhos, sem levantarem os olhos a não ser com grande indiferença, às vezes até com uma certa vergonha, para os poucos que acidentalmente param, mirando com apreciação o que fazem.
Engolem ali mesmo o almoço, entre pedras por partir, fios de nível para alisar o chão futuro dos nossos pés. Falam pouco, mesmo entre si, e quanto a rir é bom nem pensar.
Só se ocupam de ruas e calçadas nobres, onde normalmente há mais pés e mais pressa do que em outras, onde há mais tempo e mais olhos para admirarem os desenhos que podem deixar.
Metem poemas debaixo dos nossos pés. Com a discrição de quem não sabe escrever e só fala quando tem coisas importantes a dizer. Com a humildade de quem espera não ser entendido, com a tristeza de quem muito menos pensa vir a ser apreciado.
Tecem, pois, com as suas pedrinhas, que partem na mão com a delicadeza de quem liberta uma noz da casca, tapetes que ninguém nos pode puxar. Deixam-nos, belo, um chão sólido que podemos pisar com firmeza, sem receio de alçapões ou outras falsidades. E depois, cinzentos de cotim, ignorados e silenciosos, partem sem um olhar para o que deles ali deixaram.
Normalmente, só os avós os entendem. Seguram, aos domingos, as mãos dos netos, e apontam-lhes o chão que estes homens nos vão deixando, mostrando e explicando cada coordenada destes mapas desprezados da geografia citadina. E devagar, com muita paciência, como aquela que só os avós sabem ter para os netos, mostram-lhes a rima do poema, a sua métrica, escrito à mão, pedra a pedra, a preto e branco, com desenhos e riscos que nos falam, nos versos certos de amor, flor, barco, arco, corvo, curva, cálice, verdade.
Certamente que todos os que me lêem já há muito que perceberam que vos falo dos calceteiros da minha cidade de Lisboa, das nossas vilas e cidades, poetas ignorados das nossas pedras lascadas, cinzentos e calados, sem que saibamos de onde vêm ao certo, para onde vão realmente, e de que vivem, quando cada vez menos nos metem poemas debaixo dos nossos pés.
No outro dia, quieto e com falsidade aparentando indiferença, ouvi dois a falarem entre si. Escreviam com as pedras que iam escolhendo e juntando, na sua gloriosa caligrafia pesada de calcário, palavras que não sabem dizer por letras.
- Manel, achas que os advogados sabem todos ler?
- Ora, hão-de ser como nós. Uns sabem, outros não.
Deixei-os a escreverem, por pedras, amor, flor, arco, barco, corvo, curva, cálice, verdade.
Já vinha longe e, palavra de honra, senti de repente o cheiro a laranja amarga.

Pat Boone na Castellana

APONTARAM-ME O PROTAGONISTA. Estava encostado a um gradeamento e olhava desinteressado o passeio feérico dos travestis na avenida de Madrid, por onde eu caminhava com amigos, entre os quais haveria um que era conhecedor da história que me proponho escrever-vos, actualizando um pouco o mister do orelheiro, que escuta e reconta as histórias que andam por aí.
Fá-lo-ei, no entanto, com inteiro respeito pelos personagens e com todas as reservas pelas fontes, pelo que não deverão esperar quaisquer revelações sensacionais nem levianas; tão-pouco exporei ao esperado ridículo aqueles que assumem com bravura a sua diferença da maioria. Mas a história, essa, acho-a tão bela que, mesmo correndo o risco de não ser totalmente verdadeira, não resisto a contá-la. E agora, em pleno acto da escrita, eu próprio quedo na dúvida se não a terei inventado do princípio ao fim, buscando em figuras reais a veracidade necessária a que me acreditem.
Dizia eu que me apontaram o protagonista. E que ele olhava desinteressado os travestis que se coqueteavam por uma bela avenida de Madrid. Mas embora desinteressado, a verdade é que se posicionava num ponto onde não podia deixar de fazer parte do cenário da peça cujos intérpretes eram os travestis.
Confesso, igualmente, que estes últimos foram também o motivo da passagem por aquele ponto de Madrid. Curiosamente, acho que os homens têm algum fascínio por eles. Eu tenho, confesso, apesar de não ter travado conhecimento mais íntimo com nenhum para além daquele que vai da distância da fala. Mas, sem saber bem como me explicar, e correndo riscos de ser mal interpretado, acho que é difícil encontrar muitas mulheres tão femininas como um travesti. Por isso cedi à sugestão desses amigos, portugueses, residentes em Madrid: «Vamos à Castellana ver os travestis.»
A juntar à sua inegável feminilidade, os travestis têm aquela maldadezinha interior de que só os homossexuais são portadores e com a qual caricaturam cruelmente as mulheres no que estas podem exteriorizar de mais desprezível, o que tem sido muito apreciado em espectáculos de cabaré, dos quais não sou, infelizmente, frequentador. A tudo isto acresce que os amigos que me propuseram desportivamente esta espécie de safari me acicataram a curiosidade com a sentença: «São quase todos portugueses»
E eu não resisti à dose de nacionalismo de ver belos exemplares do macho lusitano a desfilar em salto alto e a piscar o olho aos Pacos como, nos meus bons velhos tempos as Lolas nos excitavam nos cabarés de Lisboa e do Porto. E mais, confesso que, ao vê-los, me senti orgulhoso: ora digam lá se há na Europa travesti que pise com mais garbo do que o travesti lusitano?!
Mas o protagonista não se movia. Teria talvez cinquenta e cinco ou sessenta anos, vestia classicamente, quero dizer fato completo e gravata, e fumando, absorto, não se movia.
Mas, afinal, o que mais chamava a atenção era que os travestis não o tomavam por alvo, não o convidavam provocadoramente como faziam com todos os outros transeuntes, em especial os que estavam motorizados. Parecia, assim, o protagonista desta minha história, na sua imobilidade, o mestre-de-cerimónias, ou se preferirem o ringmaster, daquele circo de travestis amestrados.
E foi então que ouvi - ou imaginei? - a história. O meu protagonista era notário forçado, porque a família a isso o obrigava, casado e pai de filhos, e estava ali porque se tomara de amores por um jovem travesti, ao qual, aliás nada de carnal o ligava, pois ele nem bissexual era, tudo se passando, portanto, no plano platónico.
Só que o efebo, cuja diferença de uma mulher é só a daquele pormenor que todos conhecem, porque em tudo o mais é uma mulher perfeita, é exactamente igual a uma menina que fora brutalmente afastada dos sonhos de adolescente do meu protagonista.
Daí, todas as noites, o meu protagonista jazer imóvel entre as idas e vindas da figurinha loira, delicada, de biscuit que, de táxi ou em grande turismo anda a edulcorar a virilidade do macho peninsular.
E nos intervalos encontram-se e falam, trocam presentes e dão as mãos e falam do Pat Boone e do Billy Halliday, que eram os temas favoritos do meu protagonista e da sua bem-amada, naquele amor proibido de trinta anos atrás antes de a família transformar um rapazinho sonhador e apaixonado num triste tabelião, cuja única alegria é a de hoje, às escondidas, a coberto da noite, ter a inocente aberração de namorar, como os adolescentes da sua juventude, com um travesti que é igual à namorada que foi forçado a abandonar, e com quem fala de Pat Boone e de outros temas que os jovens de há trinta anos tinham para conversar quando namoravam em festas, no cinema ou quando se esperavam às portas dos liceus ou à saída da missa.

Banda desenhada

FOI GANHANDO SUCESSIVOS COMBATES. Para cada um deles entregava-se a uma longa preparação, suava dentro de plásticos, saltava a corda, corria, dava murros no ar. Depois, descansava, lia ou cortava lenha como um doido, agarrando com as duas mãos cavacas, do tamanho que a cozinheira gostava para o fogão.
Travava quase diariamente longos combates de catorze assaltos, contra os mais díspares adversários, brancos ou pretos, que invariavelmente não chegavam ao fim. KO, KO técnico, abandono - era o registo quase constante da sua carreira, feita a murro, quase sempre na América.
Um alemão, uma vez, resistira-lhe até ao fim, mas a diferença de pontos deu-lhe, na mesma, uma vitória confortável.
A avó, normalmente, dizia que ele havia enlouquecido.
«Não sei onde este rapaz vai buscar estas coisas Ele lá sabe, é assim que se entretém.»
E ele, saltitando da ponta de um pé para a do outro, com um enigmático sorriso, pensava. «Hei-de chegar ao Madison Square Garden. Hei-de ser campeão. E a minha namorada e a minha avó hão-de estar na plateia, e a vizinha que é muito gira estará sentada, sozinha, sofrendo com os golpes que eu apanho, muito bem vestida, com um casaco de peles que eu lhe comprei.»
Imaginava essa vizinha igual à namorada do Mandrake, enquanto a sua própria namorada era a mesma do Luís Euripo. O treinador é que já não pertencia aos quadradinhos - era o senhor Adolfo, do Café Pérola, que sabia de boxe, fora campeão quando era novo e que ele decidira que passava a ser polaco.
Tinha, depois, longos monólogos a duas vozes. Normalmente eram longos diálogos com o seu manager, desabafos com o seu «segundo», confidências de homenzinho à namorada, propostas desonestas à vizinha. No fundo, era a representação do mundo adulto tal qual os quadradinhos lho mostravam, sob a forma de monólogo, com trabalho, ambição, amor, lealdade, pecado e infidelidades.
De uma semana para a outra, fizera quase uma temporada. Viajara nos comboios de costa a costa, combatera uma vez em Paris, descansara, vestido de branco, uns dias de Inverno em Miami, partira lenha como um doido cada vez mais impaciente pelas quintas-feiras, dia de semana em que se publicava a revista dos quadradinhos, onde lia histórias, via bonecos, mas, sobretudo, de onde copiava estilos, apanhava tiques e decorava frases inteiras.
Foi na pesagem para um dos seus combates, pesagem e apresentação à imprensa, que a grande oportunidade lhe surgiu: «Queres combater para o título mundial, com uma bolsa de um milhão de dólares?»
Dissera que sim, sem hesitar, sem consultar ninguém, sem esperar por coisa nenhuma. Afinal, era a primeira e a única grande oportunidade: os avós iam ao cinema, ficava apenas a velha empregada na cozinha, a passar a ferro e a ouvir rádio.
Despachou rapidamente o adversário que tinha que despachar, porque há coisas que têm que ser feitas, partiu para a quinta onde fazia a sua preparação física, deu duas entrevistas, tudo isto das sete às nove da noite, fechado no quarto, onde esperou que os avós saíssem para jantar fora e irem ao cinema, para, depois, ele poder enfrentar o combate que era o desafio da sua vida.
Deu a volta à chave da vetusta sala de jantar, que permanecia encerrada na penumbra ou nas trevas, apenas se animando nas grandes datas, com o seu lustre de mil e uma lâmpadas, os seus cristais, os seus espelhos, as suas pratas - um templo. O único local que poderia para ele representar o Madison Square Garden.
Acendeu apenas uma parte do pesado lustre, tocou devagarinho o gongo de chamar a criada, apenas para verificar se o seu som servia, de facto, para separar cada assalto e foi equipar-se. Voltou com uma cadeirinha algarvia minúscula, de assento de palha e flores amarelas pintadas em fundo vermelho, a qual colocou sobre um dos cantos da mesa de carvalho. Foi para a casa de banho, onde vestiu os calções de ginástica do liceu, pôs as velhas luvas do avô forradas a pele de coelho, calçou um par de meias e pôs pelas costas um roupão turco.
Foi nessa altura que um gangster lhe fez uma oferta para ele perder.
Furtivamente, partiu para a sala de jantar, onde, ao acender todas as luzes do lustre, uma multidão gritou o seu nome. Viu a namorada e sorriu à vizinha, as duas em sítios diferentes na plateia, olhou de esguelha o adversário antes de subir ao ringue e, quando subiu, a grande mesa de carvalho empinou-se lentamente do outro lado, muito lentamente para acelerar de súbito, e ele, numa náusea de quem leva um directo no fígado, já em desequilíbrio, a agarrar-se ao lustre e o lustre a despenhar-se em milhares de vidrinhos, e a mesa a estrondear ao voltar à sua posição, e a instalação eléctrica a estoirar, e a casa nas trevas, e a criada a gritar, na cozinha: «Ai valha-nos Deus!»
Quando o avô voltou do cinema, apanhou uma tareia monumental. Foi a sua primeira derrota: perdeu a bolsa e nunca seria campeão. Fora derrotado por KO, ao primeiro assalto.

O chofer de praça

FICAVA MUITO CONTENTE sempre que no seu táxi apanhava alguém de quem gostasse. Fazia por isso, imaginando o tipo de pessoa que lhe convinha transportar, em conformidade com o diálogo que gostaria de travar no trajecto seguinte e o itinerário que fazia questão em percorrer.
Era delicado. Antes de colocar o taxímetro em funcionamento, de espreitar se poderia acelerar de junto do passeio e perder-se no meio do tráfego, cumprimentava quem se tivesse sentado no banco de trás, perguntava se a música não incomodava, fazia um comentário ao estado do tempo e arrancava.
Guiava sempre com suavidade. Entendia, de resto, que da delicadeza e da economia dos seus gestos beneficiava ele próprio e imaginava que um dia uma jovem haveria de lhe perguntar:
- Porque é que você é chofer de praça?
Tinha tudo estudado para a eventualidade de isso lhe suceder. A resposta e aquilo que seria a sua parte do diálogo estavam firmemente memorizadas. Quando ele desejasse que essa situação se materializasse sabia que isso sucederia.
John, Chauffeur Russo impressionara-o muito quando o lera, e seria assim que gostaria de dar a volta a uma mulher. A alguém que nada soubesse a seu respeito, que o visse num estatuto inferior e a quem pudesse vir a conquistar primeiramente pelo seu aspecto e maneiras, depois pela sua educação e cultura, finalmente pelos seus atributos inquestionáveis.
Desistiria depressa, receando a rotina de dia após outro a trabalhar para a mesma família, o patrão ao escritório, a patroa a casa de amigas, os dois à ópera e os filhos à escola e aos concursos hípicos. Decidira não ser nunca chofer particular.
A praça fascinara-o. A possibilidade de correr toda a cidade, as hipóteses de ouvir conversas interessantes, as oportunidades de conhecer permanentemente gente nova e diferente, de ser livre nos seus percursos fizeram-no decidir-se pela praça, definitivamente. E foi com entusiasmo que uma tarde preparou o carro que sempre imaginara e, aproveitando não estar ninguém em casa a quem tivesse de dar satisfações, partiu para as suas aventuras avulsas, como vingador solitário de banda desenhada ou herói romântico de fotonovela.
Como todos os motoristas de táxis de Lisboa, adorava serviços para o Estoril. Para ele era o destino que contava, pouco importava a rentabilidade do serviço ou o pagamento do retorno.
Adorava correr pela Marginal, preferia fazê-lo com sol, os olhos nas curvas suaves da estrada, por vezes a despistarem-se para o rio até ao Bugio, quando havia pouco tráfego.
«Um dia», pensava consigo próprio, «aparece-me uma judia rica, de Nova Iorque, que veio jogar no Casino, ficamos noivos, casamos e vamos viver no estrangeiro.»
Não sabia explicar a razão, mas sempre que pensava numa mulher que valesse a pena tratava-se sempre de uma Judia de Nova Iorque.
O carro entrou na subida ligeira para Caxias e Paço de Arcos.
Transportava um inglês idoso que apanhara na Baixa, bem vestido de tweed verde-oliva. Sorriu, o comboio corria com ele, paralelo, às vezes desaparecia para voltar a aparecer mais próximo, como se brincasse às escondidas e ao toca-e-foge. Meteu uma mudança e acelerou, deixando a composição para trás, condenada a seguir o capricho dos carris, por entre alas de casas e de árvores. Do outro lado, do seu lado, como se estivesse parado na água, enorme e preocupante sob a chapada de sol que o deixava em contraluz, um petroleiro de grande porte parecia perigosamente próximo de terra.
- Quando chegar ao Estoril, eu indico-lhe o resto do caminho - disse-lhe lá de trás o inglês, envolto numa nuvem de John Players e de alfazema.
- Okay! Eu abrando para não me enganar. Não conheço as ruas do Estoril.
Imaginou o seu passageiro nos anos da guerra a beber vinho do Porto no bar do Hotel Palácio. Podia ter sido um agente ao serviço de Sua Majestade e ter regressado agora de férias ou para recuperar uma arca de barras de ouro que enterrara num quintal. Abrandou e encostou-se bem ao passeio para ser ultrapassado por um grande Mercedes bege. Reduziu ainda mais a velocidade, sorrindo para o petroleiro gigantesco e disse com o melhor sotaque que ouvira no cinema:
- Lovely day!
- Yes, lovely day - respondeu o inglês, que não disse mais nada até chegarem às palmeiras do Estoril.
Foi no regresso, já depois de largar o passageiro, que a sua vida profissional sofreu um estrago irreparável, que teve consequências nefastas que se prolongaram até hoje.
Ouviu um pequeno ruído atrás de si. O retrovisor não assinalou nada que não devesse. No entanto, de repente, num fragor muito maior do que qualquer desastre, num rompante que não chegara a imaginar sequer em qualquer operação stop:
- Salte já daí!!! Que julga você que está a fazer? Logo, vamos conversar!!
O jantar foi pior do que o auto de apreensão de carta.
A mesma voz acusava, por entre garfos e pratos e copos, testemunhas mudas daquele julgamento sem defensor oficioso:
-... E imagina que o apanhei, com as pernas dentro da cristaleira, onde guardamos o serviço de Limoges, sentado numa de quatro cadeiras muito juntinhas, duas à frente e duas atrás, a olhar para o espelho do alçado, a fingir que guiava com uma tampa de marmita de tupperwear e a fazer mudanças com o desentupidor da retrete!!!
Todo o seu sonho desabara. Deixara de soprar ali a brisa fresca da Marginal, o esconde-esconde com o comboio, os mistérios insondáveis dos seus passageiros, o petroleiro perigosamente próximo da terra.
Antes que a mesa toldada e trémula desaparecesse por completo dos seus olhos e o prato se desvanecesse da sua frente, de modo a que a colher nada encontrasse, decidiria que, não podendo fazer mais alegres corridas com o comboio do Estoril, iria dar rumo novo à sua vida: apanharia o próximo paquete, com destino a Nova Iorque.
E foi antes que as primeiras lágrimas lhe caíssem na canja que resolveu qual seria a sua próxima profissão.
Uma vez chegado a Nova Iorque, iria ser barman. E jurou a si próprio que, quando fosse grande, teria um bar, um táxi e uma jovem judia.