domingo, 8 de junho de 2008

O príncipe incógnito

DESCERAM OS TRÊS pelas escadas exteriores do prédio de apartamentos sobre a praia. O mais pequeno adiantou-se, alargando o passo, segurando uma pequena bolsa de couro, e afastou-se na rua, para o lado esquerdo, onde havia um pequeno largo sem saída, em que havia estacionado o grande Mercedes azul-metálico, com matrícula espanhola de turismo. O segundo virou para o lado direito, para o fim da rua, onde parou junto à cabina telefónica, enquanto o terceiro esperou, sozinho, em frente ao prédio que juntos acabavam de abandonar.
O carro avançou pela rua, recolhendo um, primeiro, depois o outro, e acelerando ao chegar junto à ponte, com os vidros escuros cerrados e os três homens dentro, todos de óculos escuros, sem uma palavra, e muito menos um sorriso, entre si.
O dono do prédio, que alugava à semana aqueles apartamentos de Verão, viu-os passar quando comprava melões de uma camioneta estacionada no princípio da rua. Ao vê-los, comentou para uma dona de casa, já de fato de banho e um roupão aberto no fresco da manhã que sempre faz àquela, hora, muito antes das oito:
- É um príncipe estrangeiro. Alugou-me uma semana. Anda incógnito. Vem só com o secretário e um guarda-costas.
A fazer fé nas palavras do senhorio, o príncipe era o mais alto dos três Não teria ainda cinquenta anos, mostrava uma aparência distinta, era esguio e moreno, tinha bigode, usava o cabelo puxado para trás com creme, vestia uma elegante goiabera e segurava uma pasta de couro fino e cantos de metal dourado. Não sorrira, parado no passeio, nem quando observara atentamente duas meninas de dez anos que andavam já por ali de bicicleta.
O Mercedes tomou agora a estrada principal, ganhando velocidade nos quinhentos metros de recta, visíveis sem qualquer outro veículo à sua frente. No seu interior, o príncipe olhava pela janela, enquanto os outros dois homens também não proferiam palavra nos assentos da frente.
Entraram vagarosamente na cidade até abrandarem num largo sem movimento. Sem uma palavra, o príncipe saiu, continuando a segurar a pasta elegante de cantos dourados, e dirigiu-se a um pequeno carro utilitário, de matrícula portuguesa, ali estacionado, pondo-o em marcha. Ao rodar pelo largo, certificou-se pelo retrovisor de que o Mercedes o seguia com os dois homens dentro. Acelerou então e, saindo da cidade, voltou à estrada que haviam abandonado para irem buscar mais aquela viatura. Voltaram a ganhar velocidade, ainda que sempre conduzindo os dois carros cuidadosamente, respeitando até o uso dos indicadores luminosos sempre que tinham de fazer uma qualquer ultrapassagem.
Ainda não eram oito e meia quando lentamente os dois carros estacionaram cada um em sua direcção, virados para os dois extremos da rua, numa urbanização de grande luxo, próximo do mar, com árvores a ensombrarem belas casas escondidas em jardins bem tratados.
O portão verde devia abrir-se electronicamente, porque não se ouviram vozes nem se viu ninguém quando o grande Volvo branco saiu da casa que os dois carros estacionados flanqueavam, apontados em direcções diferentes, de modo a que qualquer deles pudesse seguir um carro que abandonasse aquela propriedade, fosse para que lado fosse. Havia dois homens no Volvo, ambos sentados à frente, e viraram para onde o Mercedes estava apontado, pelo que este se pôs silenciosamente em marcha, acelerando quando deixaram de ver o carro que perseguiam. Quando ambos os carros desapareceram, o príncipe pôs também em marcha o pequeno utilitário, fez inversão de sentido e, sem pressas, seguiu o mesmo caminho.
Avistou os outros dois carros ainda na estrada secundária, a seguir a uma curva em cotovelo, e notou que o Mercedes já ia à frente do Volvo. Nesse momento acelerou. Foi quando o Mercedes travou, atravessando-se na estrada e obrigando o Volvo a fugir para a berma e a travar precipitadamente. O passageiro do Mercedes saiu do seu lado e correu para o utilitário, o qual, com serenidade, aparentando lentidão, o príncipe abandonara, caminhando até chegar à janela do condutor do Volvo com o braço estendido. A mão estremeceu-lhe várias vezes, na ponta do braço estendido, ao mesmo tempo que meia dúzia de «pofs» se escutavam, tão baixo que não chegaram a espantar nenhuma ave das árvores. Quando o príncipe voltou ao pequeno carro, o outro homem, já ao volante, arrancou e passaram pelo Mercedes, que os seguia. O Volvo ficou quieto, sobre a berma da sua mão, sem movimentos no interior muito antes da estrada principal e a cerca de dois quilómetros da casa do portão verde, que abria electronicamente.
A poucos minutos das nove horas, os dois homens arrumaram cuidadosamente o pequeno automóvel no sector de carros alugados do parque de estacionamento do aeroporto de Faro. Depois de tirar um saco do porta-bagagens, o príncipe dirigiu-se à aerogare, e pôs-se, pacientemente e aparentando despreocupação, atrás de dois únicos passageiros que faziam o check-in no balcão da classe executiva, do voo para Lisboa. Entretanto, o outro homem certificava-se de que tudo estava normal no aeroporto e entrava depois no Mercedes, segurando a elegante pasta do príncipe.
Às nove e trinta, o Mercedes atravessava a fronteira sul com a Espanha com os seus dois passageiros, o príncipe sorria à hospedeira e preparava-se para aterrar dentro de minutos em Lisboa. Ninguém havia passado pelo Volvo branco, aparentemente vazio e estacionado na berma da estrada secundária, e, em frente ao pequeno prédio de apartamentos sobre a praia, uma senhora em fato de banho dava as torradas ao marido, a quem perguntava com ar de triunfo:
- Sabes que temos aqui mesmo em frente um príncipe incógnito?
Na rua, duas meninas de dez anos andavam de bicicleta passando tangentes à camioneta do homem dos melões.
Lisboa, 1987

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