domingo, 8 de junho de 2008

A rosa púrpura do adro

QUANDO ME SENTEI em frente da máquina de escrever onde enrolara alva folha de papel foi naquela sensação ambígua de todos os que escrevem – ignorava se me ia entregar, de imediato, ao «prazer literário de soltar a pena sobre a brancura convidativa do papel», se me iria confrontar com aquela angústia, debater-me com esse desafio do espaço branco que costuma assaltar, assim eles o dizem, os torturados da forma e os vermes da caneta quando se entregam ao solitário exercício da escrita. Por tudo isto não podia eu ficar mais surpreendido ao verificar que tinha companhia. Muito sério, com os olhos em baixo, olhando-me apenas por segundos essenciais, Woody Allen inspeccionava as unhas da sua mão esquerda, a qual escondeu atrás das costas quando levantou os olhos e me dirigiu a palavra, sentado no canto esquerdo da folha de papel:
- Preciso de um bom argumento. Estou a dar uma oportunidade a guionistas desconhecidos como tu. Começo por ti porque nos conhecemos. Em contrapartida, se me forneceres um bom argumento, pago-te o preço justo e ganhas uma boa viagem ao meu Manhattan.
Conhecêramo-nos anos atrás em Nova Iorque, no Michael's Pub, onde às segundas à noite Woody aparafusa o seu clarinete e com os olhos no chão ataca bons temas do ragtime perante uma sala repleta de jovens casais do Ilinóis, de Iowa, ou mesmo do Colorado. Uma multidão apinhava-se no bar enquanto uma longa fila se alinhava atrás dum cordão, pacientemente à espera de ocupar um lugar. Nas mesas era obrigatório comer-se, chegávamos a uma mesa e dizíamos o nosso nome e, polidamente, acrescentávamos boa noite e ouvíamos os nomes dos parceiros de ocasião, seguidos das cidades de origem. Esta regra social ianque sempre complicava as coisas porque envolvia uma posterior, superficial mas cuidadosa explicação histórica e geográfica de cujos resultados sempre desconfiámos mas que eram verdadeiramente excitantes para os circunstantes como se tivéssemos dito «Joaquim, do terceiro anel de Júpiter, tenho o disco voador no parque de estacionamento e podemos ir todos dar uma volta quando isto acabar».
Aqueles casais inclinavam-se para outras mesas e diziam com o aspecto de quem mostra um premiado cachorro da raça sharp-mei:
- Apresento-te Joaquim, de Portugal, um pequeno país com novecentos anos, mesmo ao lado da Espanha, na Europa.
Era gratificante ver um casal de agricultores de Iowa não responder «Muchas gracias, olé» como invariavelmente fazem os pobres ingleses quando não são cultos e viajados ao ponto de confessarem que conhecem Albufeira.
A noite foi avançando pela madrugada, os casais e a multidão do bar foram desistindo até ficarmos eu, Woody, os rapazes do conjunto e um par de casais tão envolvidos em si próprios que conseguiam ouvir os violinos de Mantovani mesmo quando o pequeno judeu soprava forte o tema mais quaternário que inventaram em Chicago.
Foi nessa altura que me enchi de coragem e da minha mesa, colada ao estrado da orquestra, me atrevi a bater à porta da timidez de Allen e a dizer-lhe:
- Woody, posso pedir-lhe para tocar All in the night?
Ele pestanejou, desatarraxou o clarinete, verteu envergonhadamente a saliva na madeira do estrado, voltou a enroscar o instrumento, olhou para mim muito sério, sempre sem dizer uma palavra, pôs os dedos nas teclas cromadas, olhou para o pianista e disse baixinho:
-Um, dois, três, quatro...
Atacaram certinhos All in the night. Quando acabaram, dei por mim a aplaudir, de pé, sem mais acompanhamento de palmas. Um empregado punha já algumas cadeiras em cima das mesas e outro preparava-se para varrer o resto dos casalinhos pela porta fora.
Saímos juntos, Woody Allen e eu, para lhe mostrar que conhecia Nova lorque, propus:
- Estou com fome. Podíamos ir comer um spaghetti ao Elaine's.
- Detesto spaghetti e tenho de dar um salto ao Harlém porque combinei com uns amigos tocarmos juntos esta noite. Se queres, podes vir comigo e comes um hamburger por lá. Fiquei triste por não ir ao Elaine's, porque na véspera tinha lá encontrado Norman Mailer, o escritor, num belo fato de três peças a mostrar a nova Mrs. Mailer, num belo vestido de uma só peça que deixava à vista desarmada o cromado dos pára-choques e, se tapava os cilindros, deixava adivinhar todos os sobressalentes da bela carroçaria.
Woody levava consigo o estojo do clarinete, não fechara o sobretudo e quase tropeçava num cachecol tão longo que lhe chegava aos pés. Parecia saído de um dos seus filmes e, nesse instante, eu senti-me actor de outra película que encontra um amigo nos estúdios da Universal Pictures, no intervalo das filmagens.
O táxi deixou-nos em frente a um prédio que não estava tão degradado como o resto da vizinhança e que tinha a particularidade de o rés-do-chão estar iluminado com uma luz púrpura que nos deixava a camisa branca a brilhar como uma lâmpada fluorescente. Quando abri a porta e dei passagem a Woody Allen pensei que um coro de Verdi esperava por aquela ocasião:
- Woooooody! Meu querido filho da mãe, estás atrasado e nós cheios de vício!...
Era um preto tão grande que Woody encostou a cara ao seu estômago quando ele o abraçou. Prudentemente fiz-lhe uma vénia vienense, à distância, mas fui assaltado por aquela terrível inquietação que se traduz em «De onde conheço eu este tipo?». Sem dúvida que o conhecia, mas não me lembrava de onde. Sentei-me tão discretamente quanto pode um branco sentar-se numa mesa de pretos do Harlém e não pude deixar de mostrar uma expressão agradecida por ainda estar vivo e ninguém me ter batido até aquele instante. Woody e os rapazes tocaram, tocaram furiosamente, espantei-me como aquele pequeno corpo podia ter tanta energia e como apesar das rugas e das sardas Woody podia estar fisicamente tão bem, embora falando constantemente nos seus cinquenta anos quando se encontrava a sós comigo.
Quando acabaram de tocar, vieram todos para a mesa onde eu me encontrava sentado com cara de refém francês em Beirute.
- Vocês conhecem o meu amigo Joaquim? - perguntou Woody e nenhum dos negros se incomodou a olhar para mim.
- Donde és? - quis saber o pretalhão -, és do Sul?
- Sou do Sul, mas do Sul da Europa – disse eu como quem diz vim só cá para ver o futebol.
- Joaquim é de Portugal – explicou Woody Allen.
- Ah, és um desses colonialistas de Angola? - insistiu o pretalhão que continuava a ser o único a dirigir-me a palavra.
«Bom, aqui vamos nós», pensei eu, «no velho número do português, desta vez para negro analfabeto com consciência política e rudimentos de ciências político-sociais. A última vez que me tinham chamado colonialista foi há mais de vinte anos em Roterdão, onde eu fora de propósito ver o Benfica de Eusébio jogar contra os holandeses do Feyenoord.»
- Hmmmhmmm – respondi eu concordando que era um desses colonialistas de Angola, porque achei ser muito complicado explicar a um Pantera Negra reformado o que é ser português, mesmo que essa explicação fosse tão resumida como as dos guias do Arthur Frommer ou dos manuais da Fodor. Pensei até que seria uma excelente sugestão a fazer ao Vasco Graça Moura, pôr a Imprensa Nacional a publicar um daqueles livrinhos de cem escudos «O essencial de se ser português», traduzido em inglês e espanhol. Em francês não vale a pena, porque eles têm lá portugueses que chegam para lhes explicar tudo, julgo eu.
- És colonialista, tu? - insistiu o pretalhão e, de repente, estas coisas acontecem sempre de repente, quase desmaiei como o Gregory Peck, atacado de amnésia no Spellbound de Hitchcock, ao descobrir, no interior do meu cérebro, donde conhecia o pretalhão. O filho da mãe, leia-se S.O.B, devia ser aquele preto tão grande, tão grande, que os botões do casaco pareciam bolas de golfe, como me tinha sido apresentado pelo Raymond Chandler numa das suas histórias.
Apesar de quase desmaiar, como o Gregory Peck, ao retomar o conhecimento não encontrei ao meu lado a Ingrid Bergman e, por associação de ideias, como sempre se expiam os complexos de culpa, pus-me a procurar na sala o Humphrey Bogart que foi o melhor Philip Marlowe que eu conheci e que, entre aquela distinta assembleia era a única pessoa que me poderia confirmar se o pretalhão, era ou não era, o do Raymond Chandler.
O Woody veio em meu socorro:
- Não, o Joaquim não é colonialista. Ele é um amigo meu.
Pôs-se então a explicar o que eu fazia e porque ali estava.
Disse que eu tinha um filho a estudar na América e que, com esse pretexto, fazia constantes viagens àquele país, para sentir o que estava na onda, e percorrendo itinerários e encontrando gente que pertencia às referências que eu tinha nos planos cultural, histórico e político e no mais que houvesse no raio que me partisse. Woody falava de mim com um entusiasmo que era um misto de amizade e de persuasão de agente artístico.
Os negros olhavam, incrédulos, para mim, como se estivessem a ver o Buffalo Bill, e só me apeteceu ir lá fora tomar ar, mas tive medo de que algum preto que andasse pela rua estivesse à procura de uma bola de basquete e acabei por não me atrever a sair, porque achei que o pior sítio que podia haver para passar o resto da noite seria um caixote do lixo e resolvi então esperar pelo Woody Allen que, apesar do físico que todos lhe conhecem, era a melhor protecção que eu podia encontrar. Para matar o tempo, influenciar as pessoas e fazer amigos, como diria Carneggie, comecei a falar das minhas viagens à América:
- É uma ideia que eu tenho e não percebo porque ninguém mais a teve ainda neste país das oportunidades disse.
- Assim como há viagens para miúdos à Disneilândia, devia haver viagens organizadas para adultos. Quero dizer, os miúdos vão ver o Mickey, o rato, o Pato Donald, a Minnie, o Pluto; comem gelados e andam de comboio de feira. Os adultos, como eu, deviam vir ver o Richard Widmark, ouvir o Frank Sinatra, a Ella Fitzgerald, ver e ouvir o Woody Allen, comer spaghetti a olhar para o Norman Mailer, assistir a uma partida entre a Chris Evert e a Navratilova e, se possível, ouvir o Pavarotti no Metropolitan e ainda ver um bom combate no Madison Square Garden. Não andam de comboio, andam de avião, não comem gelados mas comem pipocas e bebem bourbon e se, depois de um musical da Broadway, sobrar algum dinheiro, compra respondedores automáticos para o telefone, relógios japoneses que fazem contas e dizem pi-pi, e raquetas de ténis, tudo isto comprado de preferência na Berta Brasil. Podem também ir ao Clube 21, às massagens, às corridas de cavalos e tentar um pick-up no Area.
Vi que Woody Allen ficou inquieto quando falei no Area.
O Area é um clube que está na moda e se estende por vários andares e onde, com alguma paciência, tudo pode acontecer sob aquela aparência de Los Angeles, de que nada acontece. O Woody estava cada vez mais inquieto, com o estojo do clarinete atravessado no colo.
- Joaquim, vamos embora.
- Ok.
Apanhámos mais um táxi amarelo.
- Tenho de ir ao Area, foste tu que me lembraste. Esta lá a Mia Farrow com uns amigos e combinei ir lá buscá-la. Vou confiar-te um segredo. Eu e a Mia Farrow andamos os dois. No entanto, ninguém pode saber, por enquanto. Isto porque o rumor pode chegar à Diane Keaton ou ao Frank Sinatra e eu não quero magoar a Diane nem quero que o Frank me mande magoar a mim.
Saímos à porta do Area e, durante uma hora, no meio de uma pequena multidão que pretendia entrar, satisfizemos o ego de dois directores de sala e de cinco gorilas entregues ao gozo do exercício discricionário do poder. Só entrava quem eles apontavam e quando se era escolhido passava-se a grande porta negra com uma alegria parecida. à dos judeus a entrarem o portão onde se lia «Arbeit Frei», dos campos de concentração. Lá dentro fingi que não conhecia O Woody Allen e deixei-o beijar à vontade a Mia Farrow contra uma parede junto aos toiletes, os dois encobertos por um numeroso grupo de criadores de moda todos vestidos no estilo do Jasmim e da Ana Salazar. Foi a última vez que vi o Woody Allen até me aparecer agora, sem aviso, sentado no canto esquerdo da folha branca de papel, que eu havia metido na máquina de escrever na varanda face ao mar, trezentos quilómetros a sueste de Lisboa.
Saí da estupefacção para olhar o Woody.
Ele insistiu:
- Preciso de bom argumento. Acho que podes consegui-lo. Pago bem e organizo uma viagem daquelas que tu inventaste tipo Disneilândia para adultos, e de que falaste naquela noite no Harlém.
- Lembro-me. Portanto, pagas-me em dólares e levas-me numa dessas viagens que eu exijo que inclua a travessia da Chinatown de S. Francisco segundo os passos do Dashiell Hammett. Correcto?
- Correcto. Li os vossos autores do último século para cá e há coisas muito boas mas nada dá o que eu quero. Vi alguns dos vossos filmes mas também não é isso. Quero uma coisa moderna, com nervo, graça e exotismo. Convém também que seja inteligente, mas se não conseguires eu depois trato disso nas artes finais.
- Woody, tenho um grupo que dava um filme excelente. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Mas imagina um pequeno que quer ser jornalista quando for grande desde que viu o Lelouch criar um jornalista em África como protagonista daqueles filmes que metem jornalistas, modelos fotográficos e hospedeiras de avião. Imagina tudo isto vestido de caqui e passado em Lisboa com uma atmosfera de Casablanca, 1941.
Woody deu mostras de visível excitação:
- Bom, bom. Isso pode dar, mais, diz mais, estou a gostar.
- Ok, imagina agora um outro pequeno que quer ser jornalista para poder ser espião quando for grande. Veste blusão de cabedal, anda de moto, aprende a falar com os rapazes dos serviços secretos, sublinha passagens do Le Carré e fuma cigarros negros sem filtro. Mas como anda de moto, passa a vida a fazer recados.
- Great, isso dá! Personagens dessas dão – disse o Woody cada vez mais excitado.
- Imagina agora um advogado, tipo italiano, que faz de comentador político e imagina um bar onde se guardam garrafas e onde se diz mal de toda agente e onde é indispensável ir todas as noites ouvir tipos destes e aquelas meninas que, assustadas pela Sida só falam agora em ter filhos, em ecografias, em amniocenteses e bebem longos copos verdes com raminhos de hortelã e uma cereja de lata.
Woody Allen não escondia o seu contentamento.
- É isso mesmo que eu quero. É esse exotismo. Manhattan já não dá mais. O que quero agora é Lisboa. Uma cidade como a vossa, com palmeiras no aeroporto, mas sem camelos. Personagens, muitas personagens, roídas de frustrações como vocês, e a viverem e a imitarem tudo o que vêem nos filmes. E isso mesmo que eu quero! Joaquim, não vamos perder mais tempo. Vais ficar a trabalhar, quando tiveres uma sinopse telefonas-me, metes-te num avião e vamos discutir e trabalhar nisso tudo em Nova Iorque. Combinado?
- Combinado – respondi eu.
Durante uma semana trabalhei dez horas por dia nesta ideia. Quando acabei, telefonei ao Woody Allen. Nunca chegámos a acabar a ideia em conjunto e dela, que eu saiba, não nasceu ainda nenhum filme. Julgo que a única razão foi a de o Superconstellation, ou DC-6, não estou bem certo, da TWA, em que me meti, se ter perdido numa tempestade sobre o Atlântico Norte. Aos comandos ia o Van Johnson e a hospedeira era a Jennifer Jones. Dizem-me deste lado da história que todos os dias, no aeroporto de JFK, em Nova Iorque, Woody Allen, de gabardina e chapéu à Humphrey Bogart, pergunta ansiosamente pelo avião de Lisboa, como no Casablanca. Nunca irei chegar e num cantinho da aerogare, Ingrid Bergman chora por trás dum lencinho de renda.

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