sábado, 13 de dezembro de 2008

O NATAL DO PAI NATAL

PENSEI QUE NÃO SE FALAVA assim ao Pai Natal, mas o homem repetiu, para que não me restassem dúvidas:
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- Se voltas a sair daqui da porta, apanhas uma palmada!
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O Pai Natal ficou meio amuado, meio medroso, como todos os miúdos a quem se promete pancada. Segurando os três balões de cores diferentes na mão esquerda, agitou violentamente o sino com a mão direita, de modo a se fazer ouvir por cima do barulho daquela rua comercial.
Por debaixo do fato vermelho e do algodão branco das barbas, o Pai Natal não tinha para mais de doze anos e muito menos para apanhar uma palmada. Se em vez de Natal estivéssemos no Carnaval, qualquer pessoa pensaria que se tratava dum miúdo mascarado.

- Ó filho, não vês que é um Pai Natal a fingir? - disse uma mãe a um filho mais incrédulo, mas não tanto que deixasse de acreditar que todos os anos há um senhor com um trenó carregado de prendas puxado por renas, que vem do Norte despejar presentes pelas chaminés.
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A voz tonitruante, ameaçadora, do comerciante lembrava a todos os que passavam que vivíamos o auge da grande saison da paz e do amor.
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- Pago-te para estares aqui à porta não é para andares a passear por aí. Se te apanho outra vez a afastares-te, não te pago e corro-te a pontapés!
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Aquele fato era, nitidamente, maior do que o corpo que o não enchia, o que se poderia atribuir ao planeamento correcto dum comerciante moderno que vestia o seu Pai Natal com roupa suficientemente grande para permitir o seu crescimento.
Não se percebia a razão pela qual o dono da loja não havia escolhido um Pai Natal à medida, mas também isso certamente se poderia ficar a dever a uma análise e estudo aprofundados de custos e benefícios, pois sem dúvida que um Pai Natal mais pequeno deveria sair mais barato e fazia o mesmo efeito.
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- Ó mãe, deixa ver o Pai Natal.
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Nessa altura, o Pai Natal dava ao sino, olhava para o outro lado da rua e afastava-se um pouco. Ao vê-lo assim proceder, era difícil não concluir que o Pai Natal tinha vergonha.
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- Ó mãe, o Pai Natal é um menino como nós? - perguntou uma menina.
- Ó filha, não! Não vês que este é um Pai Natal a brincar?
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Debaixo das barbas, o Pai Natal teve um sobressalto e olhou espantado. A brincar?! Das nove da manhã às sete da noite, de badalo e balões nas mãos, quer chovesse quer fizesse sol, durante uma semana inteirinha, era brincar? O Pai Natal não concordava. Parou de dar ao sino, enquanto a outra mão, vermelha das guitas e do frio, deixava fugir um balão que subiu até se perder de vista por cima dos prédios, arrastado pelo vento.
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- Ó mãe, olha um balão do Pai Natal....
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A pouco e pouco, o Pai Natal estava de novo longe da porta da loja a que pertencia, e junto do cigano que vendia pistolas à cowboy, com um cesto poisado à beira do passeio.
Era um velho cigano, todo vestido de preto, com um grande bigode branco que tinha uma grande mancha amarela de tabaco. Olhou o Pai Natal, riu, e disse numa voz profunda:
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- Queres uma? Eu dou-te. Toma lá uma, para tu brincares.
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Naquela noite, quando os meninos estavam já todos de pijama, depois de tomarem banho antes do jantar, houve quem visse um Pai Natal, com a barba de algodão branco a esvoaçar, presa por um elástico ao pescoço, andar pendurado nos tróleis e nos autocarros, a dar tiros para o ar com uma pistola de fulminantes.
E os meninos, muito penteadinhos, nos seus pijaminhas quentinhos, ficaram muito assustados quando as mamãs lhes disseram:
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- Se não comes a sopa, chamo o cigano e digo ao Pai Natal para não te dar nada.
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Se os meninos conhecessem esta história, tinham rido a bandeiras despregadas e pedido para nunca mais ninguém escrever contos de Natal.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A DESPEDIDA

O homem tinha dito:
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- Seja franco, doutor!
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O médico saiu detrás da secretária, vagarosamente, pôs-lhe uma mão sobre o ombro e quase sussurrou.
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- É cancro.
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- Quanto tempo, doutor? - perguntou o homem sem o olhar, mas com aquele grau de cumplicidade no tom de voz que antecipava que ambos sabiam bem do que estava a falar.

- Um ano, ano e meio, no máximo - respondeu o médico.

Saiu do consultório devagar, numa confusão de ideias e de sentimentos, observando aqueles com quem se ia entrecruzando com uma sensação danada de inveja e, ao mesmo tempo, de raiva. «Porquê eu?!», perguntava, repetida e impessoalmente, sem ter propriamente entidade competente a quem dirigir a questão.
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Caminhou longamente, lentos e penosos quilómetros, interrogando-se sobre se devia ou não partilhar este segredo com mais alguém ou se ele devia ficar circunscrito apenas ao seu mutismo e ao segredo profissional do clínico. Esteve num café, que acabou por abandonar irritado com o ruído das vozes, e, acima de tudo, com os risos e as discussões estúpidas. «Ano e meio», pensava nessa altura, «ou antes, um ano, porque se sobrar alguma coisa faço férias». Na pequena praça onde ficava o seu prédio tomou a decisão - não diria nada a ninguém e ocuparia o tempo que lhe restava a ser aquilo que em criança desejara para quando fosse grande.

A família, ao princípio, não estranhou, nem protestou, quando vendeu a sua quota no escritório. Toda a gente pensou que decidira antecipar a reforma, gozar os rendimentos, cortar com uma vida de trabalhos e relações que lhe assegurara mais do que suficiente para viver medianamente.
A grande surpresa foi quando, algumas semanas mais tarde, anunciou que iniciava, no dia seguinte, a sua actividade de motorista de praça.
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- O teu pai ensandeceu! - comentou sua mulher para o filho do casal.
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Imperturbável, durante meses, correu pelas ruas da cidade, conheceu o que desconhecia mas adivinhava, riu, foi quase feliz e chegou mesmo a fazer uma viagem, com emigrantes, para França, num serviço que lhe apareceu.
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Um dia, sem dizer nada a ninguém, deixou-se ficar em casa.
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- Não vais trabalhar? - perguntou a mulher.

- Despedi-me - anunciou sem mais comentários.
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Durante o resto da semana leu e foi ao cinema, durante as tardes, em casa, sem palavras.
Uma manhã, ficou excitado com a leitura do jornal. Vestiu-se rapidamente e saiu. Não almoçou em casa nesse dia e, à tardinha, quando regressou, entregou seis bilhetes para o circo à mulher e disse:
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- Gostava que amanhã fosses à minha estreia como palhaço. Podes levar quem quiseres.
Nessa noite, mulher, filho e nora reuniram-se em casa destes últimos, preocupados com o que se passava.
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- Depois da vergonha do táxi, isto! - desabafava a mulher.
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- Mas que necessidade tem ele de andar a fazer estas figuras? - perguntava o filho.
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- Nenhuma, enlouqueceu! - comentava a nora.
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Só os netos riram e bateram palmas, contentes, perante o constrangimento geral.
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- Ena, pá! Bestial! O avô é palhaço...
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Enquanto a companhia esteve na cidade trabalhou todas as noites. Segurava, nos intervalos, a escadinha de corda da equilibrista sempre que esta tinha de subir ao arame e, uma vez por outra, foi-se abaixo, entre dois números - uma ocasião por causa das dores, as restantes por a falta de tempo lhe apertar o peito. Ninguém deu por nenhuma dessas crises e, embora sem talento especial, não fazia mal o seu papel de palhaço pobre, dedilhando aceitavelmente uma viola nas partes musicais.
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Por mais de uma vez, depois de o circo partir, teve de ficar de cama, pretextando achaques ligeiros, para se refazer das dores. Quando Dezembro chegou, deu fortes sinais de inquietação e, uma manhã, desembrulhou, no regresso a casa, uma peça de tecido vermelho e um rolo de pelúcia branco e, virando-se para a costureira da família, que todas as quintas-feiras costurava na saleta, ordenou.
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- Vai fazer-me um fato de Pai Natal!
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Morreu, sem se despedir, no dia 26 de Dezembro, ao princípio da tarde. Sobre a cama e a sorrir para o fato de Pai Natal! Deixou inconsolável viúva, um filho engravatado, uma nora estúpida e um par de netos que o adoravam. Deixou, também, uma conta bancária a descoberto.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O CASAMENTO

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- O que se passa é que vocês são todas umas galdérias!
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A senhora, emplumada por uma estola de raposa prateada, abriu a boca esborratada de batôn pela comezaina, fez com ela um círculo perfeito, esbugalhou os olhos e disse:
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-Oh!
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O silêncio ampliou três vezes o redondo daquele «oh!».
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Mas ninguém disse mais nada, e foi no meio de estarrecido silêncio que, pálido e muito digno, de fraque e segurando luvas amarelas de pele de porco, o noivo abalou porta fora.
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Atrás deixou apenas destroços: a noiva, de branco até aos pés mas sem grinalda, soluçava. O pai da noiva desapertava os colchetes do vestido da desmaiada esposa, que amparava. As convidadas agarravam as tresmalhadas crias, lustrosas de veludos e meias de renda e sapatinhos de polimento. Os homens erguiam os ombros em ignorante interrogação, apertando os lábios em sinal de estupefacção.
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O bolo, de diversos pisos, adornava para o lado da faca que ficara cravada, a quatro mãos, pelos nubentes. Só um miúdo, de jaquetinha e calça de fantasia, colarinho branco de goma, sapatinhos de verniz, viu da janela do primeiro andar onde ficava aquele salão de aluguer - banquetes, casamentos, baptizados - o noivo desaparecer, dobrando a esquina, impecável no seu traje, com o braço hirto empunhando o par de luvas amarelas.
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Tudo começara quando o novel casal se preparava para cortar o bolo de casamento, em pose, com o fotógrafo a pedir «um pouco mais para a direita». Embevecidas, as famílias das duas partes contratantes, as convidadas e convidados, observavam, preparados para a salva de palmas, empanturrados de peru, arroz de marisco, rissóis de camarão e leitão frio, impantes de cup e ansiosos pelo espumante que provocasse o necessário flato.
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Nessa pausa breve, destinada a sorrisos benevolentes, ao descanso da orquestra, e à saída das crianças debaixo das mesas, o noivo empurrou a sua consorte, perfilou-se e, dirigindo-se à sua fiel companheira do bem e do mal, da doença e da saúde, até a morte os separar, proclamou, alto e bom som.
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- Você é uma grandessíssima galdéria!
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Entenda-se que não foi esse o nome que utilizou. O que ele disse foi bastante mais ofensivo, ainda que muito mais económico em sílabas - apenas duas - e parco em letras, somente quatro.
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Foi então que a senhora de estola de raposa prateada, com a boca cheia de empada, arregalou os olhos e, talvez com o ouvido prejudicado pela mastigação, perguntou:
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- O quê? Mas o que é que foi?
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E o noivo, muito didáctico e generoso, logo repetiu, englobando na explicação todas as senhoras presentes:
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- Foi que vocês são todas umas galdérias!
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Ninguém contestou. Em simultâneo, a noiva soluçou, perdendo flores de laranjeira, a mãe da noiva despenhou-se com fragor, o pai da noiva rugia.
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- Dou cabo dele! Que vergonha!
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Mas, pelo sim, pelo não, sempre foi perguntando em voz baixa:
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- A Teresinha fez alguma coisa?
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Seguiu-se o pandemónio, iniciou-se a debandada, deixando no meio dos despojos das carcaças de peru e de cabeças de leitão com laranjas na boca as duas famílias destroçadas de um casal que não consumaria a noite de núpcias na data devida.
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Uma semana mais tarde, iniciava-se a romaria: casa a casa, de cada convidado, o pedido formal de desculpas e a explicação devida. Segundo a versão do jovem casal, um grupo de amigos do noivo dera-lhe a beber uma taça de espumante onde diluíra cinza de charuto, o que teria efeito alucinogénio.
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Quanto ao desfecho de todo este caso, muitos anos depois de deixar de usar jaquetinha com calça de fantasia, posso eu testemunhar: os noivos foram muito felizes e tiveram muitos meninos.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O SOBRETUDO

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ERA AMARELO-TORRADO, macio, leve e quente. No seu interior, uma discreta etiqueta garantia «100% caxemira». Caía a direito, depois de ligeiramente cintado, e, só por si, conferia distinção e estatuto a quem o vestisse. Era um belo sobretudo.
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Para além da sua função protectora e calorífica, era um distinto tapa-misérias. Não importava o que se vestisse por baixo, nem que fosse um pijama de flanela às riscas, o sobretudo garantia ao seu dono o aspecto de quem vem dum elegante night-club, o ar de quem parte para uma selecta recepção numa embaixada, o porte de quem carrega sobre os ombros importantes decisões a tomar ou de quem conhece decisivos segredos de Estado.
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Durante meses, namorara aquele sobretudo na montra da elegante alfaiataria que o oferecia ao mercado. Chegara mesmo a entrar, a tocar-lhe e a prová-lo, mirando-se frente ao espelho com pequenas piruetas e pondo uma perna à frente da outra, agora a esquerda, logo a direita.
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Desistira, no entanto, face ao preço.
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- Mas repare Vossa Excelência que é de caxemira pura.
- Eu sei! Só que não tenho dinheiro para o comprar...
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O vendedor guardou então prudente silêncio, de quem não comenta, não confirma nem desmente.
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- Quando Vossa Excelência decidir, cá está à sua disposição.
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Entretanto, o frio apertava. Os jornais falavam de «Inverno rigoroso», de «frente de vento gélido proveniente da Sibéria», de «gente a morrer de frio sob as pontes de Paris», «alemães retidos pela neve nas auto-estradas» e «velhos a tiritarem pela Europa fora».
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Fazia-se ao frio ajeitando ao pescoço a gola da sua leve gabardina. Uma noite, em casa, depois do terceiro espirro consecutivo e de mais um ataque de tosse, a mulher decretou:
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- Tens de comprar um sobretudo!
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Concordava. Mas a comprar, o sobretudo só podia ser um - aquele, o sobretudo.
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Durante o fim-de-semana, enchouriçado em camisolas de lã e uma leve gabardina a tapar misérias, passou pela montra da elegante alfaiataria. Levava a mulher e um dos filhos consigo. Mostrou-lhes o sobretudo, anunciou-lhes o preço, falou-lhes da leveza que já experimentara ao prová-lo, exagerou quanto à onda de calor que sentira, exaltou tanto as qualidades e lamentou tanto o preço que a mulher disse:
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- Homem, compra o sobretudo. Também não é uma coisa que se faça todos os dias, e já viste os anos que um bom sobretudo como este te vai durar?
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Na semana seguinte aprofundaram o tema. Discutiam agora os aspectos orçamentais. Estabeleciam prioridades, coisas que passariam para mais tarde, o carro que se trocaria só no Verão antes das férias de Setembro. Quando se chegou a sábado, estava decidido e tornara-se possível – na segunda-feira, encontrar-se-iam depois do trabalho de cada um e, às seis e meia da tarde, iriam juntos comprar o sobretudo. No seu entusiasmo, ele não resistiu a dizer:
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- A loja fecha às sete, mas meia hora chega perfeitamente. Vais ver. Assenta como uma luva, parece que foi feito por medida para mim!
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A segunda-feira passou-se vagarosamente, as horas pareciam ter mais minutos do que de costume. Saíra de manhã sem gabardina para poder à noite regressar com o sobretudo vestido, por isso fora almoçar transido. Dez minutos antes da hora marcada já estava à porta do estabelecimento. A mulher atrasara-se e isso exasperava-o. Entraram na alfaiataria eram dezoito e quarenta – vinte minutos antes do fecho.
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O sobretudo ficava-lhe, realmente, tão bem como dissera. O vendedor chamava ainda a atenção para outro factor positivo:
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- E assim solto, com este cair, o senhor se quiser ainda pode vestir colete ou pulôver.
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Realmente, uma maravilha. A mulher parecia regressar a casa com outro homem. Em casa, penduraram numa cruzeta, no guarda-fato, o precioso sobretudo. Tudo para não deformar. Ele anunciou:
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- Amanhã levo a gabardina. Estreio o sobretudo na quinta-feira, naquele almoço importante que tu sabes.
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Quinta-feira saiu impante. O sobretudo dava-lhe, efectivamente, o aspecto de um senhor, como logo um colega comentou de manhã, no elevador da companhia onde trabalhava.
Saiu com tempo e chegou ao restaurante antes dos outros participantes no almoço. Esperou no bar, bebendo um porto seco, sem despir o sobretudo. Quando os outros chegaram teve alguma dificuldade em separar-se do sobretudo, que o empregado lhe pedia.
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- Não tem chapinha?
- Não se preocupe, que não é preciso – respondeu o empregado.
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O almoço correu bem. Levantaram-se da mesa a rir e pararam a dizer graças junto ao bengaleiro, um a um vestindo os abafos. Quando chegou a sua vez, olhou assustado para a gabardina azul e sebenta na gola que o empregado lhe estendia.
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- Não é isto! O meu é um sobretudo amarelo-torrado.
- Mas... então?! Não está cá mais nada. O senhor tem a certeza?
- Homem, até lhe perguntei se não tinham chapinhas numeradas.
- Olhe que isto nunca nos sucedeu.
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Saiu no meio da indiferença dos outros. «Deixe lá que fez uma boa acção», gracejava um, «vai ver que aparece», animava outro, «homem, sobretudos há muitos», filosofava um terceiro, e o último sentenciou «a saúde é que é importante. Antes isto do que partir uma perna».
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Despediu-se, desceu pela boca do metropolitano, anónimo e insignificante, de fatinho de meia estação, com as lágrimas nos olhos e a tiritar de frio. Desde esse dia que ninguém o viu usar sobretudo, nem naquela semana em que nevou no Ribatejo, o que não sucedia desde o início do século.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

OS MANOS

OS OSSOS QUASE ROMPIAM a pele do velho. Deitado, sem mover a cabeça, fixava o tecto horas a fio, ou fechava os olhos encovados nas crateras das maçãs do rosto, convertidas em picos alpinos pela excessiva magreza.
Quando o irmão entrou no quarto, o velho, estendido na cama, disse:
- Mano, vou morrer!
Na antecâmara, que servira de quarto de vestir, um montão de velhas cochichava todo o santo dia, sempre lestas a acorrer aos gritos irados do moribundo ou a deixarem-se dormitar agora e depois, num aparente concurso de cabeçadas. Havia instantes em que o silêncio era absoluto.
O velho tinha oitenta e nove anos e parecia ainda mais magro porque lhe tinham tirado a dentadura postiça. O irmão tinha oitenta e quatro anos e ainda caminhava direito por aquela casa onde ambos haviam nascido e brincado, no início do século.
- Mano, vou morrer!
Quem pensa que os velhos querem morrer, a partir de uma certa idade, engana-se. Nem todos. Este, por exemplo, mostrava um evidente receio da morte.
- Mano, vou morrer!
Algumas das velhas espreitavam em cacho, da ombreira da porta, e choramingavam de cada vez que o moribundo lançava o grito anunciador do que ia fazer a seguir, para o outro velho, que fora chamado e se perfilava, muito direito e minúsculo, à cabeceira.
Haviam brincado juntos, tinham-se batido, atravessado juntos muitas outras mortes e alegrias, estado de relações cortadas e agora encontravam-se lado a lado pela última vez.
- Deixa lá – disse o velho que acabara de entrar para acompanhar os últimos instantes do irmão –, todos teremos de morrer. Mas pode ser que estejas enganado e não morras, pode vir aí o doutor Umbelino e curar-te.
- Mano, lembras-te do doutor Umbelino? Sabes que idade tinha quando nos obrigava a tomar o óleo de fígado de bacalhau e tratou a tia Leopoldina da pneumónica?
- O doutor Gonçalves devia ter uns quarenta anos quando nos fazia isso.
- E então como queres que venha aí? Hoje que idade teria? Cento e vinte? Não pode ser! Mano, vou morrer!
- Olha, se morreres agora eu também não demorarei muito. Já vivemos o bastante. Se morreres agora, eu morrerei a seguir. Sabes, quando se morre é como fazer uma grande viagem. Fecham-se os olhos e morre-se. Não vai doer. A gente morre assim sem dar por isso, fechamos os olhos e morremos. Li que quando se morre entra-se numa grande luz, muito forte, e ela leva-nos, devagarinho primeiro, depois com muita velocidade, vamos por aí fora com a luz, a ver coisas muito bonitas...
- Que luz é essa, mano? De que luz falas?
- Da luz que nos leva quando morremos. É como viajar, mas em vez de ser de carro ou de comboio é de luz, e quando começamos a afastar-nos o suficiente da vida entramos noutra luz ainda mais brilhante e mais forte, e a luz fica então com uma velocidade assim como a dos aviões a jacto e leva-nos finalmente para o outro mundo
- Mano, que luz é essa? Sabes quem penso que é essa luz?
- Quem? Diz lá quem?
- A Luz Fernandes!
- A Luz Fernandes? Qual Luz Fernandes?
- Mano, aquela que namorámos os dois e que morava no pátio, ali em cima, e que levantava as saias e não trazia nada por baixo e com quem fazíamos aquelas coisas na escada do Ramos da capelista, lembras-te? Até me zanguei contigo quando descobri que também lá ias... É essa Luz Fernandes, mano?
O irmão, pequenino no seu fato de linho, de corrente de ouro atravessada no ventre inflado, ficou ainda um pouco mais, mas o irmão não reagiu. A coberta subia e baixava com a respiração e as velhas espreitavam agora todas à porta, e o velho, agarrando o chapéu creme e a bengala de bambu, de castão de prata, saiu devagarinho, depois de ter pedido para o avisarem «se acontecesse alguma coisa».
As velhas mandaram-no chamar ao fim da tarde. O irmão morrera sem voltar a abrir os olhos. Mas morrera a falar. Elas não perceberam o quê. Morrera a rir e a falar numa tal Luz Fernandes...

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

CENAS DA VIDA CONJUGAL

- O que farias bem era deitar-me fora e comprares outro marido em bom estado, amanhã.
- Estás louco, põe-te bom. Vais ficar bom e vamos tentar de novo.
A cabeça parecia estalar ao homem, com dores e pressões internas que não o deixavam quase pensar, sentindo-se unicamente melhor com os olhos fechados e com a cabeça na almofada, o corpo aquecido sob as cobertas da cama.
- Para que sirvo eu, assim?
- Homem, porque estares a mortificar-te e a fazeres-me sofrer a mim?
A ideia ganhara forma na sua cabeça dorida. Apetecia-lhe ficar assim, de olhos fechados, a dor a latejar, as têmporas a estalar, o calor da cama, sozinho, sem ruídos em casa, sem crianças a fazerem barulho, sem o toque do telefone, sem os saltos altos da mulher a matraquearem o soalho envernizado. Queria que o deixassem sofredor, dorido e abandonado.
- Deita-me fora e arranja um gajo em condições, amanhã.
O dia crescia em horas desde que estava doente. As dores não permitiam que dormisse, a vida passava diante dos olhos cerrados e encovados e os dias escoavam-se inúteis, sem vida nem objectivo, sem amor nem esperança.
- Porque não me internas tu?
- Parece que não sabes como estão os hospitais.
Para o bem e para o mal, na saúde e na doença, dissera muitos anos antes o padre. Mas hoje, nada disso fazia sentido. A mulher arranjava-se de manhã, cuidadosamente, e saía para o trabalho, perfumada e atraente, depois de horas sofridas ao lado do seu corpo sem utilidade. E ele ficava a roer-se, de ciúmes e de dúvidas, de interrogações, de vontade de não ser enganado, de nada ter que ver com ela, livres os dois para o que cada um entendesse.
- Não estás melhor?
- Não, não estou melhor.
- Vamos ver o que o médico diz amanhã. É dia de consulta, amanhã.
Mas os dias e as consultas iam passando e não estava melhor. Pelo contrário – cada vez mais lhe apetecia fechar os olhos e deixar correr. «Abandonem-me aqui», pensava «deixem-me aqui a apodrecer, como um grande desgraçado, com a barba a crescer, os olhos a encovarem-se, o sorriso a rarear, os ombros a responderem cada vez mais a todas estas perguntas estúpidas que me fazem e a que não me apetece responder.»
- Amanhã arranjas um gajo em condições e deitas-me fora, tá bem?
- Homem, não me castigues assim... Sabes que te amo, que te quero bom depressa, e que vivamos os dois até ao fim dos nossos dias sempre juntos.
A ofensiva que desencadeara não resultava. A mulher não o deixava, as dores não abrandavam, o ciúme não se desvanecia, os dias arrastavam-se cada vez mais inúteis, mais estéreis, mais sem sentido ou justificação para o que quer que fosse.
- Deita-me para o caixote do lixo, arranja um gajo em condições, para ti!
Era uma insistência estúpida e sem nexo. Era uma contradição para com os desvelos quase maternais que a mulher desenvolvia, diariamente para que pudesse sentir-se melhor. Era um insulto para a mãe dos seus filhos, uma mulher de trabalho que se sacrificava desde as seis e meia da manhã, todos os dias, deixando tudo feito em casa e partindo fresca para o trabalho.
O médico veio no dia seguinte. Respirou fundo, tossiu, arregalou os olhos sob a luzinha da lâmpada, mostrou a língua e estendeu-se de novo na cama. O médico interrogou a mulher e foram os dois para a sala de jantar, passar receitas, discutir sintomas, essas coisas. Ficou deitado a apertar o pijama, os dedos a tremerem nos botões, um formigueiro na nuca, um desejo de se deitar e ficar só, de novo. Tacteou o chão com os pés, em busca dos chinelos, a fim de poder ir à casa de banho. Levantou-se trémulo, segurando-se aos móveis, sem ruído. Quando, no corredor, olhou para a sala de jantar viu a mulher e o médico. Ficaram os três a olharem-se uns para os outros, sem palavras. Acabou por ir à casa de banho e regressou à cama, apagou a luz e ficou quieto, sem mover um músculo. Olhou o tecto sem o ver. Pela primeira vez em muitos meses não sentia dores, nem pressões sobre os olhos nem a nuca a latejar.
O silêncio, na casa abandonada, era completo. Pela primeira vez em meses longos e seguidos se sentiu bem e adormeceu convencido de que ao fim do dia ninguém regressaria àquela casa onde, finalmente, poderia apodrecer em paz.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

A ESTÁTUA

A SENHORA SÓ REPAROU que eram homens que se perfilavam pela escadaria quando chegou ao primeiro patamar. Segurando o longo vestido e gozando o frufru da seda, dando o braço ao elegante cavalheiro de casaca e condecorações, estugava o passo miudinho na pressa de encontrar, finalmente, os príncipes, depois de toda a tarde se ter sujeitado aos maus tratos obsequiosos do instituto de beleza.
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Até ao primeiro patamar convenceu-se que, de um lado e de outro da passadeira, pela escadaria de mármore acima, se alinhavam preciosos jarrões. Foi um leve tilintar de esporas que lhe chamou a atenção – afinal, era pelo meio de homens perfilados, de espada desembainhada, que viera por ali fora, mantendo com o indicador um seio dentro do soutien, acertando a simetria do decote.
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Nenhum daqueles homens se movera. Dir-se-ia que estavam treinados para assistir àqueles últimos preparativos em trânsito, antes de os convidados desembocarem nos salões iluminados pelos belos candeeiros de cristal.
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Durante horas eles ficaram ali, sem um movimento, perfilados, brilhantes e emplumados, com vida apenas nos olhos e nas esporas, que espaçadamente se tocavam, sem nunca coincidirem com o bater de pestanas.
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Nos salões era a confusão da distinção e do mau gosto, misturados naquela combinação mesclada de classe média e outra assim-assim, com uns quantos aristocratas sobreviventes a darem o efeito das ginjas cristalizadas nas bebidas para menina à percentagem em bar de tenha a bondade.
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Ver os príncipes – esses reais visitantes que excitavam hormonas e arrepelavam cabelos, desencadeavam crises familiares e animavam as pálidas colunas sociais das Kekas e das Chu-Chas – era a palavra de ordem, longe de escoltas ou de guardas ou mesmo de qualquer decoro. «Ai, ela ao natural é muito mais bonita do que em fotografia», segundo umas e uns, «o pai é muito mais interessante do que ele», segundo outros.
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Cá fora, entretanto, como se diz nas histórias aos quadradinhos, os motoristas jogam às moedas no interior das limusinas, os polícias apanham chuva fininha e, pela escadaria, os guardas que pareciam jarrões continuam com escassos tilintares.
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É, normalmente, à descida, quer dizer à saída, que toda a gente dá por eles – sai-se devagar, em fila longa e paciente, requintadíssima, fatigada, aguardando pelo abafo no bengaleiro ou pelo carro à porta. E nesse momento há ocasião para trocar olhares embaraçosos com os guardas emplumados. Foi nesse instante que aconteceu o que ninguém esperava.
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Num nicho do patamar, branca, leitosa, misteriosamente sorridente, inefável e nua, estava a estátua de uma donzela, esculpida por cinzel florentino dois séculos atrás. As pessoas olhavam-na apreciativamente na descida, comentando as pregas da túnica tombada a seus pés, numa perfeição de forma e volume que, na própria pedra, quase se adivinhava a transparência.
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Três degraus acima, mas perfeitamente alinhado no campo visual, sem poder olhar para mais nada que não fosse a estátua, o soldado da guarda estava em sentido havia quatro horas, fixo naquele sorriso, naquele corpo.
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Diria ele, mais tarde, no serviço de psiquiatria do hospital militar, que não tinha dúvidas – a estátua era uma desavergonhada que o provocara todo o tempo do seu quarto. Durante quatro horas nua e a sorrir-lhe ele aguentara, mas quando a estátua lhe piscara o olho não pudera resistir. A estátua podia ser de pedra, mas a sentinela e que não é de pau.
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Foi em plena cedência que o frufru das sedas o apanhara – abraçado à estátua, capacete de plumas pelo ombro, esporas numa excitação de tlintlins. Os enfermeiros da ambulância levaram-no delicadamente. Toda a gente pôs um ar condoído e disse que não com a cabeça. Não sei porquê.
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Que a estátua lhe piscou o olho, piscou, porque eu, que vinha atrás, bem vi. que eram homens que se perfilavam pela escadaria quando chegou ao primeiro patamar. Segurando o longo vestido e gozando o frufru da seda, dando o braço ao elegante cavalheiro de casaca e condecorações, estugava o passo miudinho na pressa de encontrar, finalmente, os príncipes, depois de toda a tarde se ter sujeitado aos maus tratos obsequiosos do instituto de beleza.
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Até ao primeiro patamar convenceu-se que, de um lado e de outro da passadeira, pela escadaria de mármore acima, se alinhavam preciosos jarrões. Foi um leve tilintar de esporas que lhe chamou a atenção – afinal, era pelo meio de homens perfilados, de espada desembainhada, que viera por ali fora, mantendo com o indicador um seio dentro do soutien, acertando a simetria do decote.
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Nenhum daqueles homens se movera. Dir-se-ia que estavam treinados para assistir àqueles últimos preparativos em trânsito, antes de os convidados desembocarem nos salões iluminados pelos belos candeeiros de cristal.
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Durante horas eles ficaram ali, sem um movimento, perfilados, brilhantes e emplumados, com vida apenas nos olhos e nas esporas, que espaçadamente se tocavam, sem nunca coincidirem com o bater de pestanas.
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Nos salões era a confusão da distinção e do mau gosto, misturados naquela combinação mesclada de classe média e outra assim-assim, com uns quantos aristocratas sobreviventes a darem o efeito das ginjas cristalizadas nas bebidas para menina à percentagem em bar de tenha a bondade.
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Ver os príncipes – esses reais visitantes que excitavam hormonas e arrepelavam cabelos, desencadeavam crises familiares e animavam as pálidas colunas sociais das Kekas e das Chu-Chas – era a palavra de ordem, longe de escoltas ou de guardas ou mesmo de qualquer decoro. «Ai, ela ao natural é muito mais bonita do que em fotografia», segundo umas e uns, «o pai é muito mais interessante do que ele», segundo outros.
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Cá fora, entretanto, como se diz nas histórias aos quadradinhos, os motoristas jogam às moedas no interior das limusinas, os polícias apanham chuva fininha e, pela escadaria, os guardas que pareciam jarrões continuam com escassos tilintares.
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É, normalmente, à descida, quer dizer à saída, que toda a gente dá por eles – sai-se devagar, em fila longa e paciente, requintadíssima, fatigada, aguardando pelo abafo no bengaleiro ou pelo carro à porta. E nesse momento há ocasião para trocar olhares embaraçosos com os guardas emplumados. Foi nesse instante que aconteceu o que ninguém esperava.
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Num nicho do patamar, branca, leitosa, misteriosamente sorridente, inefável e nua, estava a estátua de uma donzela, esculpida por cinzel florentino dois séculos atrás. As pessoas olhavam-na apreciativamente na descida, comentando as pregas da túnica tombada a seus pés, numa perfeição de forma e volume que, na própria pedra, quase se adivinhava a transparência.
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Três degraus acima, mas perfeitamente alinhado no campo visual, sem poder olhar para mais nada que não fosse a estátua, o soldado da guarda estava em sentido havia quatro horas, fixo naquele sorriso, naquele corpo.
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Diria ele, mais tarde, no serviço de psiquiatria do hospital militar, que não tinha dúvidas – a estátua era uma desavergonhada que o provocara todo o tempo do seu quarto. Durante quatro horas nua e a sorrir-lhe ele aguentara, mas quando a estátua lhe piscara o olho não pudera resistir. A estátua podia ser de pedra, mas a sentinela e que não é de pau.
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Foi em plena cedência que o frufru das sedas o apanhara – abraçado à estátua, capacete de plumas pelo ombro, esporas numa excitação de tlintlins. Os enfermeiros da ambulância levaram-no delicadamente. Toda a gente pôs um ar condoído e disse que não com a cabeça. Não sei porquê.
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Que a estátua lhe piscou o olho, piscou, porque eu, que vinha atrás, bem vi.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Os gansos do silêncio

PUS DE LADO O SUPLEMENTO literário que acabara de ler e meditei, seriamente, como convém a um leitor atento de qualquer suplemento literário.
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O meu primeiro movimento foi o de agarrar num lápis e fazer um círculo ao redor da mesma palavra em três trechos diferentes, de modo a não me restar qualquer dúvida.
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O suplemento publicava excertos de livros no prelo de autores conhecidos e em três diferentes textos eu encontrava a mesma palavra, em contextos diferentes, é verdade, mas que não deixava de ser preocupante porque se tratava de um substantivo, feminino, ainda que numa das três circunstâncias fosse utilizado o diminutivo, tudo muito singular.
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Olhei os três círculos em páginas diferentes, mas sequentes, e li «ginja», «ginja», «ginjinha». Fiquei, portanto, preocupado com o peso da ginja na literatura portuguesa e decidi que tinha de comprar aqueles livros logo que chegassem aos escaparates, não só pelo apreço que nutro pelos respectivos autores, mas também para descobrir se as ginjas eram com elas, ou sem elas, questão a que os truncados nacos de prosa não respondiam.
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Fiquei, decerto, por associação de ideias, a pensar no gosto ingénuo de anos atrás em se ir aos Restauradores beber a melhor ginja de Lisboa - ao que se dizia - e a estranha experiência que era ficar a disparar caroços para o passeio, desde o balcão apinhado, no barzinho superlotado e estranhamente silencioso num fim de tarde de domingo de futebol. Esperava-se então pelas edições dominicais dos vespertinos que publicavam os resumos dos jogos, a classificação e os comentários e entretinha-se a espera com ginjinhas e «piratas» na Praça dos Restauradores, que, de repente, era despertada pelas sapatilhas ágeis dos ardinas, que, se fossem cronometrados, teriam batido o recorde dos cem metros, ainda que sem direito a homologação, porque corriam a descer pelo percurso sorna do Elevador da Glória, cuja calçada se convertia assim em zarabatana, lançando aqueles dardos humanos e gritantes pela praça fora até à porta do Cinema Condes.
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Mas a Rubi, no meio de tudo, fascinava-me. Não pela sua ginja espessa, sangue-de-boi, com o fruto ressequido e alcoolizado no fundo, mas pela sua fauna silenciosa e gesticulante. Era como se tratasse de um caçador submarino – mergulhava, entrava naquelas caras vivas, expressivas, dolorosamente expressivas de quem quer comunicar o melhor que pode - a mais de dez braças, no mundo do silêncio. E o contraste era tanto maior quanto mesmo ali ao lado, no velho Palladium se discutia apaixonadamente, pelo meio das carambolas do primeiro andar, e no lusco-fusco da Praça dos Restauradores havia gritos desencontrados e velhos amarelos da Carris de circulação apanhados em andamento, com direito a acabar a conversa antes da grande viagem, cuja partida era dada - subentendia-se, claro - por alturas do Lourenço & Santos ou, para evitar falsas partidas, logo a seguir aos gelados do Italiano.
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A Rubi era o fundo de tudo isso. A sua ginja, ou ginjinha, naqueles domingos à tarde, que se assemelhavam ao fim de um recreio, com as correrias das partidas e chegadas e a angústia dos desencontros, era o pretexto para a reunião de uma das mais curiosas e ignoradas tertúlias que este país já teve - a dos surdos-mudos, quase todos casapianos, de ganso na lapela, falando com a maior veemência que possam imaginar, de coisas que sabe Deus quais.
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Podem crer que era comovente ficar a cuspinhar caroços de ginja para o passeio, naquela bolha de silêncio na hora mais ruidosa e empenhada da Praça dos Restauradores, naqueles fins de recreio de esperanças e desesperanças sem conseguir adivinhar as paixões e os segredos daquele vocabulário gesticulante e silencioso.
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Era como viajar no interior dum batíscafo, pelo leito dum lago, agitado, sem conseguir deixar de olhar ou perder um gesto daqueles patéticos gansos do silêncio.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

A revolta de quem é de V. Exas. tanciosamente

EM PLENA CRISE DE CRIAÇÃO telefonei a uma amiga que vive em Nova Iorque e perguntei-lhe:
- Se tivesses que escrever um texto para a Eles e Elas, que é que tu escreverias?
- Contava-lhes uma boa história que se tivesse passado comigo ou simplesmente esquecia-me, metia-me no avião e vinha a Nova Iorque ouvir Woody Allen tocar clarinete na terça-feira que vem.
- Não posso - respondi eu -, tenho de acabar a preparação do Jornal das Nove no Segundo Canal da Televisão, e se fizesse isso nem crónica na revista nem notícias na televisão.
- E daí? - perguntou a minha amiga.
- Daí, nada - respondi eu -, os leitores ficavam mais tranquilos, os espectadores menos furiosos e eu mais contente comigo próprio. Esse é o drama.
- Onde está o drama?
- O drama está em quererem obrigar-me a fazer coisas que não me apetecem. Na TV tenho de escrever e dizer às pessoas as notícias do dia, na revista querem que escreva uma coluna de opinião e eu não quero saber de notícias nem ter opiniões, entendes agora?
- Okay, entendido. Por isso, mete-te no avião e vem ter connosco. Vamos jantar ao Elain's, pode ser que lá esteja o Norman Mailer, vamos a um espectáculo na Broadway, vamos ouvir o Woody e...
- ... e depois não posso voltar. A directora da revista mata-me, que é o melhor que me pode acontecer, porque se sobreviver na Televisão ficam a tratar-me abaixo de qualquer cão dum mineiro moçambicano negro que trabalhe na África do Sul.
- Então escreve uma boa história.
Mas eu não quero escrever uma boa história e, de resto, querem que eu escreva uma coluna de opinião.
- Então em vez de tudo isso o que é que gostavas de fazer?
- Justamente o que te vou dizer: gostaria de escrever diálogos para personagens de séries de TV, precisamente aquilo em que estou a transformar este texto que, definitivamente, quando acabado, não será uma coluna de opinião. Depois, em vez de ir a Nova Iorque jantar com o Norman Mailer e ouvir o Woody Allen, já ficava satisfeito de ir à Costa da Caparica tomar uns copos com o Cardoso Pires e rir-me com o Raul Solnado e, depois, voltar para Lisboa, e em vez de ler o noticiário fazer um anúncio a uma pasta de dentes disponível e, se tudo isto estivesse a sair bem, acabar por ir a Madrid ouvir a Olga Ramos, comprar a Hola em vez dos semanários de Lisboa, ler o Manuel Fraga Iribarne em vez do Francisco Lucas Pires e a Elena Flores em vez da Helena Roseta. Se queres saber o que eu gostava de fazer, era isto.
- Então porque não fazes?
- Porque não posso. Tenho de ceder às solicitações. Vou ter de dizer às pessoas as notícias da noite sem lhes contar o que aconteceu durante o dia e terei de escrever um texto que não sendo uma coluna de opinião será publicado pela Eles e Elas como uma coluna escondida com opinião de fora.
- Então, recusas?
- Não, aceito. Mas ainda há momentos a Madonna me dizia «Papa, don't Preach», e eu não vou pregar sermões, mas tenho de mostrar que sou de algum modo ajuizado porque é isso que as pessoas esperam que eu seja. Se eu não fosse ajuizado não te estava a telefonar para Nova Iorque, a pedir a tua opinião, tinha fechado os olhos e inventado para consumo próprio que fugia com a Madonna, para ela imitar só para mim a Marilyn, para dizer com aquela vozinha de rainha-cláudia «Papá, não pregues sermões» e tentaria escrever coisas mais divertidas do que a Morte de Um Caixeiro-Viajante, e quando visse essas coisas representadas no Parque Mayer convencia-me que não era o Arthur Miller e que a Madonna não é a Marilyn e que a única coisa que têm em comum é não gostarem de usar cuecas, e por fim atraiçoava a Madonna com a Hannah sem o Michael Caine e o Woody Allen saberem e...
- E estás mas é louco. Afinal, que vais fazer?
- Que remédio, vou acabar esta crónica. Vou acabá-la como um toureiro que despacha de uma estocada um touro que não presta para a muleta. Vou assegurar-me que não queiram que eu escreva mais. Vou beber um longo, longo uísque. Vou ficar sozinho em casa. Vou fechar os olhos e pôr-me a ouvir o Luciano Pavarotti e vou tentar esquecer a Madonna, enquanto posso.
- É tudo?- É tudo. Dá um beijo meu aos miúdos. E não te preocupes. Isto vai passar, como sempre aconteceu, acabo por fazer certinho aquilo que esperam que eu faça.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

O mais difícil

ANO NOVO, VIDA NOVA. É um provérbio comum a muitos países e pertença de muitos povos. Mas será, por certo, o ditado mais traído de quantos são atribuídos à sabedoria popular.
Acontece, naturalmente, assim, porque «Ano novo, vida nova» se trata de uma manifestação de intenção que, posteriormente, não encontra tradução na prática, não se consuma na vida real. Por estas e por outras, também o povo diz que «de boas intenções está o inferno cheio».
No início, um novo ano, como este agora iniciado, é uma mão-cheia de nada, que é como quem diz um espaço onde cabem todos os sonhos que gostaríamos de ver realizados.
É assim como quando andávamos na escola e começávamos um caderno novo. A perfeição das primeiras páginas não encontrava equivalência nas restantes, como se ao princípio de qualquer coisa desejássemos sempre tudo e acabássemos o que quer que fosse à medida das possibilidades.
A mudança de um ano para o seguinte é tradicionalmente assinalada pelo deitar fora de calendários, pela passagem de moradas e de números de telefone de uma agenda para outra, pelo envio de votos de felicidades postais, que valem tanto quanto uma estampilha custa, mais o valor de uma lembrança expressa em palavra amiga.
Uma crónica de princípio de ano também pode ser isso. Mas é igualmente verdade que pode não ser, constituindo apenas a continuação do ritmo de uma certa rotina, que se recusa a marcar efemérides. Procurarei, no entanto, que esta crónica, para o número correspondente a Janeiro de uma revista mensal seja, sem ser, o voto de que as coisas e as pessoas mudem, para melhor nos próximos trezentos e sessenta e cinco dias e que tudo aconteça à medida dos desejos de cada um.
Desejo-vos, portanto, um bom ano para todos, sem sininhos nem lugares-comuns, nem peditórios para os cronistas desta área, que sem dúvida não deixariam de se associar aos meus augúrios de que o ano em que entrámos seja cheio de vida, de saúde e de dinheiro suficiente à realização dos nossos sonhos. Se nada mudar, que se mantenha pelo menos o bastante à nossa dignidade, e que se aguentem a nossa capacidade de resistência e a vontade de ter esperança.
«Foi um ano para esquecer», há, infelizmente, quem diga, referindo-se a um determinado período menos afortunado que encontra correspondência na bola preta que assinala quarentenas, doenças do próprio ou de familiares, desemprego, morte, azares diversos, infortúnios avulsos. Também essa vontade de esquecer não tem sinceridade, porque semelhantes reveses não se esquecem. O que quer essa expressão significar é «Vamos lá a ver se este ano é melhor», porque o que se deseja, de facto, é uma compensação às malquerenças dos tempos aziagos.
Por falar em bola preta, recordei-me dos rebuçados dos bonecos da bola. Daqueles em que a gente furava um cartão, dividido em quadradinhos, a cada um dos quais correspondia uma bola de cor, que significava um determinado rebuçado, envolvido num cromo de um jogador de futebol. E consoante o número e o boneco, calhava o prémio - este melhor, aquele pior.
Se tomarmos aquele cartão pela nossa vida e a dividirmos em quadradinhos que são os anos que a compõem, o que eu desejo sinceramente é que não haja para ninguém bolas pretas, que normalmente não traziam nada de bom. Que cada ano para todos nós seja um boneco da bola com um bom prémio atrás, se não for mesmo o número da bola de cauchu, que era a nossa grande alegria naqueles anos de contentamento fácil e de vida difícil.
Porque a caderneta, meus amigos, essa teremos de ser nós a preenchê-la e a completá-la, com jeito nas mãos e tento na cabeça, sem que nenhuma bola preta justifique desânimo ou desistências.
Ao enfrentarmos mais um cartão, de furadouro na mão, que a sorte nos guie o gesto e nos ponha o golpe no sítio certo. Que este ano seja o ano do sorriso, da tolerância, da paz e da felicidade realizável. São estes os meus votos para todos nós, que podemos estar unidos nas coisas simples e possíveis. Mas se assim não for, paciência. Se não acerarmos no boneco da bola, no «mais difícil», podemos sempre continuar a tentar, enquanto nos imaginamos protagonistas, jogando num grande estádio, cheio por uma grande multidão entusiasmada, pensando que o nosso retrato embrulha o rebuçado mais difícil - o do número da bola.
Mesmo que tenhamos de passar mais um ano a dar chutos na trapeira.

domingo, 8 de junho de 2008

«Lisbon taxi driver»

É MAGRO como um fio de azeite. Tem, a atravessar a sua magreza, um bigode tipo escova que quase pode ser visto por trás e sobe e desce, a compasso, com a maçã-de-adão. O cabelo cobre-lhe as orelhas apenas o suficiente e cai-lhe em franja sobre a testa.
Fala compassadamente, mas com toda a malandrice congénita àqueles que nasceram em Arroios, bairro de Lisboa, cidade de galfarros e andorinhas com quem há sempre que contar, no meio de beirões sorumbáticos e minhotos-quase-galegos dos frangos assados no espeto, com gindungo ou sem gindungo, consoante a extroversão e a marotice que se deseja para depois do pudim flan.
Atravessa a cidade devagar, nunca excedendo os cinquenta quilómetros por hora, mesmo quando rola por avenidas de onda verde ou transporta passageiros. Guia como se procurasse alguém. Se em vez dum táxi, verde e preto como todos os permitidos nesta cidade de Santo António, andasse a cavalo, certamente que vestiria de negro, com os coldres baixos, e olharia da mesma maneira os tristes peões, com esta expressão que parece querer dizer: «Foge, que Pat Garrett era um franganote ao pé de mim.»
Mulher que lhe entre no carro não escapa, pelo menos a uma boa, longa mirada, de alto a baixo, com paragens embaraçosas nos pontos mais delicados, onde ficam as coisas mais caracterizantes que uma mulher tem e que nela um homem mais aprecia.
Mas é de homens que gosta mais - para transportar, é bom de ver -, porque lhe dão pé para conversa à tira larga, ou mesmo para discussões violentas. E quando pressente ou descobre que o passageiro tem as características biológicas de uma vítima aí, sem parar, vira-se para trás, põe o braço direito ao longo das costas do banco da frente e diz para o pobre e timorato transportado:
- Passei catorze anos numa tropa de elite. Já ganhei dez contos por dia para guardar figurões cá da parvalheira. Sei o que são eleições e o que é a porca da política. Sou anarca e do Belenenses. Conheço bem o bas-fond porque tenho muita pedalada. Sou um driver. Sou um Lisbon taxi driver.
A partir daí, não há hipótese. Se se tem muita pressa, corre-se o risco de se ser abatido. Se se prolonga a conversa, corre-se o mesmo perigo por, mais tarde ou mais cedo, ser garantido que se chega a um ponto de conflito insanável.
- E sabe o meu amigo? Não pago um copo em toda a Lisboa. Entro, bebo e saio sem pagar. E sabe porquê? Porque tenho uma grande pedalada, porque durante sete anos vivi de noite, conheço tudo e todos, sei histórias. Não pago. Entro e saio e ninguém me diz «É tanto.» É o dizes! Sei histórias e conheço vícios. Sou um driver, um Lisbon taxi driver.
Encontrei-o uma noite destas, num bar. Estava num grupo, ouvia com atenção outro chavalo, numa roda de mais três ou quatro. Quando me viu, dirigiu-se-me naquela passada larga, aparentemente lenta, afastando-me daquela conversa de pintores, donas-marias, maravedis, ervas e aspirinas. Agarrou-me por um braço e avisou-me, este meu amigo driver, porque quem me avisa meu amigo é:
- Não faça por ouvir nada do que a malta está a combinar. Quanto menos souberem menos morrem. Olhe, o meu pai sempre me disse que vale mais roubar do que ser roubado. O meu pai é que sabia, porque foi cinquenta anos contratador da estiva. Sabe como ele me explicava? Explicava assim. «Para roubar é preciso um grau de inteligência; para ser roubado, um grau de estupidez.» Portanto, antes roubar do que ser roubado. Beba um copo e vá-se embora, que pago eu.
Cruza a cidade vagarosamente, no seu táxi verde e preto, com a sua figura de fio de azeite e o seu bigode negro a flutuar. Pode não se reparar nele, mas ele vê-nos a todos. Sabe tudo. Conhece histórias e adivinha vícios. É um driver. Um Lisbon taxi driver.

A «buena dicha»

ENTROU NO CAFÉ arrastando o velho sobretudo amarelo que imitava pêlo de camelo. Antes de chegar ao balcão, o empregado atirou-lhe:
** - Galão e pãozinho-de-deus, não é verdade, senhor Alberto?
** Era verdade. Era, pelo menos, há vinte e sete anos, galão e pãozinho-de-deus, não é verdade, senhor Alberto?
** Não se dava, sequer, ao trabalho de responder. Ou antes, retorquia falando de outra coisa qualquer, género «parece que o tempo vai melhor» ou «você ouviu ontem aquele tipo na televisão?». Gostava de conversar enquanto mastigava e bebia pequenos goles, patatipatatá, um ouvido no ruído do trânsito, não vá o maldito autocarro pregar mais uma partida.
** Naquela manhã, de sobretudo amarelo, a imitar pêlo de camelo, desabotoado, ainda a cheirar a água-de-colónia comprada a peso, sentia-se particularmente bem-disposto.
** Não saberia dizer porquê, se lho perguntassem, mas havia qualquer coisa a fazê-lo saber que aquele não seria um dia como os outros, apesar de não se estar ainda na Primavera.
** A cigana entrou, toda veludo e ouros, para evitar confusões e suspeitas, não pense alguém que ainda é das que restam a ler sinas nas palmas das mãos, e pediu uma tosta mista e uma cerveja. O empregado nem pestanejou, mas o senhor Alberto olhou espantado: «Uma cerveja? A esta hora da manhã? Uma mulher?» - e de imediato mediu-lhe as carnes de alto a baixo.
** A cigana surpreendeu-lhe a panorâmica quando os olhos vinham para cima e, quando se olharam cara a cara, olhos nos olhos, abriu um sorriso de pérolas que deixou o senhor Alberto sem saber se comia o pãozinho-de-deus ou se apanhava o autocarro.
** - O cavalheiro gosta só, ou quer comprar?
** Frente à sua plateia, repleta de público fiel, o senhor Alberto deve ter sentido o que um toureiro sente ao ouvir «Arrimate!» da barreira sombra. E para não ficar sem dizer nada, saiu-lhe um desabafo que deve ter sido o que lhe ia na cabeça, no espírito, no coração e noutras vísceras não menos importantes para o regular funcionamento das instituições fisiológicas.
** - Vossemecê sempre me saiu um grande naco de mulher!
** A cigana atirou a cabeça para trás e largou uma gargalhada que até fez tremer as garrafas de vermute e tilintar as taças para o branco verde avulso. Nesse instante de cristal, o senhor Alberto perdeu o autocarro.
** - Homem, deixe lá que eu levo-o! Ainda há bocado estava em Évora e já aqui estou. Não se preocupe.
** O senhor Alberto não se preocupou. Não tinha, de resto, razão nenhuma para isso, pois raramente chegara atrasado, em anos e anos, e faltara menos vezes que o número de dedos de uma mão. Já que a mulher o levava, olha, deixa estar – até ficava com uma história para contar... e depois isto tudo à frente da malta toda, caramba, era melhor do que anúncio na televisão.
** Inocente, o senhor Alberto embarcou na carrinha da cigana como os meninos dantes acreditavam que podia acontecer se não comiam a sopa. Foi, e viram-no só mais uma vez ou duas. Nunca mais, ao fim daqueles anos todos, queixava-se o dono da pastelaria. Um ingrato.
** Ao que parece, encontraram o senhor Alberto, no outro dia. Dizem que foi em São João da Madeira, mas não garantem que não tenha sido em Carcavelos ou em Santo Tirso. Anda de carrinha grande, com a sua cigana, a vender malhas, fatos de treino e atoalhados, deve ter deixado o sobretudo amarelo a imitar pêlo de camelo à mulher e aos filhos daquela vidinha certa que levara até aquele dia em que a cigana perguntara se ele queria comprar. E para grande espanto e escândalo de quem possa ouvir, contam as más-línguas que o senhor Alberto anda de mão dada com a cigana, um homem já naquela idade, ora vejam lá, rapou o bigode que sempre lhe conheceram e não veste sequer fato – só usa blusões e calças de ganga, o ginja, a querer armar em acelera. E é que acelera mesmo, dizem eles – tirou a carta, nunca mais andou de autocarro, e guia a carrinha entre as fábricas e as feiras dessa estranha e paralela rota da moda «boutique Alcofa».
** Na antiga vizinhança do senhor Alberto dizem que a cigana lhe deu qualquer coisa a beber. Não pode ter sido de outra maneira. Pois se ela, nem lhe leu a sina...
** É verdade. Mas o senhor Alberto anda feliz. A cigana, cantou-lhe a buena dicha.
Lisboa, 1987

Os agás mudos são uma gaita

VIA-SE, PERFEITAMENTE, que estava a pensar enquanto esmagava meticulosamente a ponta do cigarro no cinzeiro apinhado de beatas e cinza solta. Depois, com vagar, levantou para mim os olhos míopes e, sentencioso, disse, definitivo:
- Os agás mudos são uma gaita!
Agradeci e saí, acabrunhado, depois de ouvir a sentença a que recorrera, como mulher atraiçoada que recorre a quiromante estabelecida. Tinha-me recordado de procurar este amigo, velho revisor solitário e silencioso de letra de imprensa, classe que muito prezo e respeito, depois da minha última crónica. Durante anos conhecera-o num jornal em que trabalhei, lendo prosa avulsa de dezenas de homens e mulheres, entre a qual muita por mim produzida, e sempre mantivéramos, no decorrer dos tempos, vigorosas e interessantes discussões sobre sintaxe e semântica. Depois de me reler em letra de forma, quedei suspeitoso e intrigado, concluindo que algo de estranho se abatera sobre o que escrevo nestas crónicas, nas últimas semanas, a ponto de me sentir vítima de maldição faraónica.
Reli, uma vez mais, o que escrevera e, de reflexão em reflexão, envergonhado, confirmei a presença sistemática, ostensiva, mesmo ofensiva, de todos aqueles agás. Geralmente, agás fora de onde devem estar não fazem mal, porque são mudos e nunca aspirados na língua portuguesa, e desde que não combinados com outras consoantes que os costumam acompanhar são facilmente atribuíveis a erros tipográficos e o leitor não se preocupa com eles. Quando o leitor dá por eles diz. «Olha um agá mal acompanhado.» E, nas letras como em tudo, as companhias têm muita influência. Mas aqueles agás eram decididamente contra mim, porque deixariam seguramente no espírito de qualquer leitor a ideia de que entre mim e a gramática existe um conflito insanável, o que, em boa verdade, não corresponde aos factos, tanto quanto me é dado julgar.
Quero eu dizer, para me explicar melhor: todos aqueles agás se tinham ardilosamente perfilado atrás da vogal «O» da palavra «ouve», que correspondia naquele caso ao imperativo do verbo que traduz o acto de sentir as vibrações do tímpano captadas pelo ouvido externo, e que descodifica os sons em vocabulário para ser lido pelo cérebro.
Como se compreende, o resultado foi o mais grosseiro que se pode imaginar - a percepção auditiva ficou confundida com o pretérito perfeito do acto de ter ou do facto de existir, o que, além de confundir o leitor, atribui inadmissível ignorância ao autor.
E as suspeitas sobre a intenção criminosa ou da rogação de uma praga avolumaram-se quando, tudo bem conferido, não havia dúvida de que um único daqueles extemporâneos agás não estivesse perfilado atrás daquela mesma palavra com a qual se pretendia representar um vício de linguagem de um personagem ali caricaturado através desse próprio tique de oralidade.
Tirei de cuidados e fui ver um amigo que tenho na Judiciária, na esperança de que me poderia ajudar a deslindar o mistério. Desenganou-me: colegas que percebessem de letras só os que lidavam com cheques carecas e letras protestadas e eu agradeci e saí melancólico, por entre máquinas de escrever e cabo-verdianos a serem ouvidos em auto que eram traduções literais do crioulo para português-de-às-folhas-tantas. Mesmo assim, recomendou-me que arranjasse um detective particular.
Fiquei cá fora, encostado a um balcão, saboreando uma cerveja à pressão e matutando em tudo isto. Detective particular para língua só um linguista e não me ocorreu de repente nenhum que desse explicações. Foi por isso que recorri ao velho revisor, já reformado, mas um sólido investigador apoiado numa experiente brigada de prontuários.
E como bom polícia da língua, que passou a vida a meter as letras no seu sítio, perguntou-me:
- E o móbil? Quem ganha com este crime?
- Quem quiser desacreditar o autor - respondi-lhe.
- Homem, não tens acordo que te valha.
Foi este desabafo que me lançou uma pista. Precipitei-me para a dominical página das crónicas e reli com atenção redobrada o meu companheiro lisboeta. E logo, nas suas primeiras linhas, lá estava, despudorada, a palavra «excrever», que como sabe se soletra «escrever».
Também ele era atingido por esta maldição do erro tipográfico, que só atinge oficiais deste ofício, sem prejuízo para qualquer explorador de arcas perdidas.
E então o mistério ficou deslindado.
Semanas atrás, o meu amigo Bastos lançou o mais belo e lancinante apelo a favor da língua portuguesa, desde que pharmácia passou a farmácia, ao escrever contra o malfadado acordo «não me tirem, o p de Baptista». Com esta mania da solidariedade e de alinhar com os velhos amigos, logo eu, pumba, noutro periódico, me atirei como gato ao bofe ao linguicídio anunciado.
É a nossa perdição. Daqui para a frente só nos espera o morticínio. Expliquei tudo isto ao meu amigo revisor. Disse que sim com a cabeça, fumando em silêncio, para concluir, subitamente:
- Já assisti a muitos casos como este.
Explicou-me, então, que a maldição dos burocratas da língua só é igual às maldições de todos os outros burocratas. Num caso como noutros, são eles, burocratas, quem se encarrega de nos pôr pimenta na língua.
- Então, eu... – tartamudeei.
- Tu estás lixado. Os agás mudos são uma gaita.
-
NOTA - Esta crónica vem no seguimento de uma outra, já aqui afixada, intitulada «O caçador de cabeças».

Retrato do poeta sempre jovem

É UM VELHO À DESFILADA, num automóvel que corre junto ao mar.
Pergunto-lhe:
- Rafael, porquê sempre o mar nos poemas?
Responde-me:
- Não é o mar nos poemas. É esta baía. Nem nos mais de trinta anos que me obrigaram a levar fora deste país deixou de ser esta baía. Está aqui tudo. Passaram por aqui todos. Romanos, Fenícios, Cartagineses, Árabes. Está tudo escrito nesta baía. Não é o mar nos poemas. É esta baía.
Vamos à desfilada, eu e o Rafael Alberti, oitenta e quatro anos de andaluz, de cidadão do mundo, de guerra pela liberdade, oitenta e quatro anos de poesia. Fisicamente, está cada vez mais parecido com José Gomes Ferreira, longa cabeleira branca a cair-lhe amarelada sobre os ombros, mil rugas na pele escura. Minutos antes, ao entrarmos no carro, fora rodeado por um bando de adolescentes que lhe pedira autógrafos, como é normal os adolescentes pedirem a um cantor de rock, a um futebolista, actor de cinema ou toureiro. Não havia papel, ninguém tinha papel, e Rafael Alberti escreveu o seu nome e desenhou o seu peixe, que sempre acompanha o nome que assina, juntamente com uma estrela, na pele morena daquelas jovens e daqueles jovens.
Ficaram como tatuagens, nas costas e palmas de mãos e nos antebraços de todos aqueles jovens, que um dia mostrarão as mãos estendidas para os filhos, quando estes descobrirem os poemas de Rafael, e dir-lhes-ão:
- ... E sorriu para mim e escreveu aqui o nome. E depois desenhou um peixe, como os cristãos no tempo de Roma, e uma estrela de cinco pontas e voltou a sorrir para mim. Era um poeta, era um raio de um andaluz.
Olhou-me de esguelha e disse:
- Tens aqui três mil anos de história escrita. Está no papel. Por isso, não há que ter dúvidas. Quando se tem dúvidas vem-se aqui, a esta baía, e ela responde a tudo. Estiveram cá todos, à procura da resposta: Fenícios, Cartagineses, Romanos, Árabes e agora nós e os Americanos.
E com um orgulho nacionalista de quem resiste ao invasor:
- Estiveram cá todos. Todos menos os Franceses. Esses andaram pela Península, mas aqui não os deixámos pôr os pés. Por isso, homem, é que se tem de entender as Cortes e a Constituição de Cádis.
Viajamos à desfilada, junto ao mar, entre Cádis e Puerto de Santa Maria. Estamos próximos de Jerez de la Frontera, corremos ao longo da baía e antes faláramos de Buñuel e de Picasso, seus companheiros de exílio em Paris, de Piazzola e do que cada um de nós conhecia de Buenos Aires e de Roma. E disse-lhe eu:
- Homem, tens tantos anos que pudeste gastar muitos deles por todos esses sítios e com toda essa gente.
Eu sabia que só a um homem fresco de corpo e de espírito se pode falar de anos. Mas este é um jovem com oitenta e quatro anos de gozo e de guerras, as duas coisas que penso que se devem fazer, cada uma no intervalo da outra. Sei que não se deve magoar um velho falando-lhe de anos, mas este é um jovem com muitos anos. Ou não será um jovem com muitos anos aquele que já com mais de oitenta se apaixona e desperta paixões em mulheres frescas?
Além do mais, falámos destas e de outras coisas, bebericando goles de xerez e conversámos também da importância do vinho e da respectiva rota no conhecimento e na amizade dos povos.
E ele desse-me:
- Vê tu o meu nome, Alberti. Não é espanhol. É italiano. Aqui na baía há apelidos de todas as nacionalidades. Eles vinham buscar o xerez, e as nossas mulheres prendiam-nos e eles ficavam por cá. Está tudo nesta baía. A baía responde a tudo.
E conversámos sobre os Ingleses, o vinho do Porto e o seu primo afastado que é o xerez e de muitos nomes que à volta desta baía de facto existem, e ela de facto a tudo isto respondia, mesmo nas picantes histórias de mulheres.
O automóvel continua a correr junto ao mar. Vamos deixar o velho em mais uma das suas sessões: cartolina gasta com poemas debaixo do braço, a declamá-los de xerez e de uísque por todos os lados. Vira-o fazer isso outra vez, momentos antes. Digno, distante, afável sempre que o interessavam. E antes tivéramos ainda o nosso mano-a-mano de conferências, em sala apropriada a recordar as grandezas dos impérios desaparecidos.
Para mim, recordo um amigo comum que fascinado me descrevia o regresso de Alberti a esta Espanha democrática e o seu itinerário fantasmagórico, calcorreado por Madrid, entrecortado de exclamações «aqui era...» e de descrições detalhadas e rigorosas do que hoje não existe mais.
Vejo-o agora neste salão a ler poemas seus, dactilografados e belos, e penso que devia ser proibido pensar-se que pode haver poetas amestrados. Há muitos anos, conversei também com Ungaretti a bordo de um cruzeiro italiano que ele distinguia de convidado, apenas com a sua presença. E recordei também Jorge Amado, frequentemente exibido à mesa do Estoril-Sol. E vejo agora este velho, que chegou a ser vice-presidente das Cortes, e passeou em ombros pela Andaluzia, não como toureiro ou artista de outro género, mas com herói da liberdade. Olho-o a recitar poemas seus, por entre presunto, queijo, sardinhas alimadas, xerez e uísque e abandono-o assim, especado sob os flashes dos fotógrafos e os projectores do cinema e da TV, a ler poemas avulsos, belos e dignos.
E para minha consolação, ou talvez antes para minha vingança, dou pela minha voz a dizer a mim próprio, sozinho:«É como a baía. Passaram todos por ela. Romanos, Fenícios, Cartagineses, Árabes, e, agora também os Americanos, mas, tal como a baía, não pertence a ninguém.»

Uma carta de amor

VESTE SEMPRE UMA CAMISOLA DE LÃ, mesmo de Verão, o que, além de inevitavelmente ter de lhe fazer calor, lhe dá um ar de refugiado de alguma parte, acabado de chegar, sem bagagem e sem destino.
Está sentado, quase imóvel, no banco de lona articulado, sem mover a cabeça numa ou noutra direcção, acompanhando apenas com os olhos este ou aquele que por ali passam, com a pressa dos selos fiscais, das fotos á là minute, ou de mais um impresso que sempre falta à boca dos guichés.
Repousa as mãos afiladas, de dedos longos e postura delicada, numa prancheta de cartão prensado, cor verde-garrafa, e os olhos observam desinteressados o que acontece em cem graus de visão, os quais se recusa a aumentar, aconteça o que acontecer.
Passou o suficiente e calcorreou o bastante para ter a prata no cabelo e os sulcos na pele que só o arado da vida abre no coiro de cada um. Distinto e distante, sabe construir a sua superioridade da altura daquele mocho quase rasteiro, e quem nele atenta ou com ele fale fica com a sensação de ter à sua frente alguém a quem a vida pregou uma partida, mas que nada tem a ver com o sítio onde se posta, as pessoas que lhe falam, o dinheiro que lhe pagam ou a roupa que veste. Tem aquela idade indefinida que vai aos quarenta aos sessenta, sem que ninguém possa dizer ao certo quantos anos tem, e cumpre religiosamente um horário quer chova ou taça sol, debaixo da arcada onde vende os seus serviços, com ar de inspector de polícia ou de chefe de gabinete ou, melhor ainda, pela sua distinção, com ar de embaixador.
Preenche impressos a cinquenta escudos, escreve cartas a setenta e os analfabetos são o seu mercado. Mas, principalmente, preenche impressos, postado que está em posição fronteira ao Arquivo de Identificação, onde mesmo os analfabetos têm de ter uma identidade e um cartão que a prove com um número, uma cara e uma impressão digital. As cartas são menos frequentes, mas todos os dias tem pelo menos uma que escrever, o que faz sem emendas e em silêncio, após alguns minutos de conversa com o remetente para conhecer o conteúdo e o destinatário. Mostra-se, mais do que insensível, impermeabilizado aos assuntos que lhe sugerem para tema das relações que alinha em letra pontiaguda e agressiva, consoante a sintaxe que conhece e a vulgaridade das vidas sem história, ou das dificuldades sem grandeza de que lhe dão conta.
Pedem-lhe, normalmente, para escrever que tudo vai bem, que as crianças estão na escola, que vivem numa parte de casa mas que em breve se vão mudar, que arranjaram um andar só para eles ou que em breve começarão num emprego muito melhor. Quase sempre as coisas estão difíceis mas todos dizem que vão melhorar.
Outras vezes, nem isso. Apenas quinze linhas a dizer que tudo bem e que no Natal os não esperem, mas que na Páscoa vamos a ver. São cartas tristes, não por anunciarem algo de dramático, mas por reflectirem a desesperança de quem as encomenda. Começam, quase sempre, por «Maria», ou por «Querida Mãe», ou ainda por «Queridos Pais», e quem é que vai escrever à mulher ou aos pais, a dizer o que realmente lhes vai na alma? São meros registos de «nós por cá todos bem», o que raramente é verdade mas que serve para tranquilizar, e até dar orgulho a quem os recebe.
Muitas vezes pensa em quem vai ler o que está a escrever. Naturalmente que os analfabetos escrevem cartas uns aos outros. Não faria muito sentido um analfabeto escrever uma carta a um pai ou a uma mãe que sabem ler. Portanto, tem quase sempre a preocupação de as suas cartas manterem a oralidade que faz sentido não a quem as vai ler, mas a quem as vai escutar. Tem consciência que, no meio, há um codificador de sentimentos, que é ele, que escreve sinais num papel que alguém no destino descodificará em voz alta, soletrando o mais depressa que pode aquela caligrafia inclinada e ossuda.
Mas a maioria do seu trabalho é, já se sabe, com os impressos, nome, apelido, morada, nome do pai, nome da mãe, profissão, estado. É com isto que, aparentemente, se governa, escrevendo maiúsculas em quadradinhos verdes do computador, que regista tudo o que nós, Portugueses, somos ou, as mais das vezes, o que deixámos de ser.
No outro dia teve um sobressalto. Pediram-lhe para escrever uma carta de amor. Não lhe pediram assim. Foi um freguês, um homem ainda novo, de pele escura, com um endereço e código postal para o Sul, que lhe disse.
- Tenho uma carta para vossemecê escrever. Quanto é?
- Setenta escudos até duas páginas. O que é que quer dizer na carta?
- É para uma rapariga. Não quero dizer nada de especial. Não tenho nada para dizer. Quero só mandar-lhe dizer que gosto dela e penso nela todos os dias. Pode ser?
Sorriu, olhando demoradamente a cara morena que tinha à sua frente e que o olhava com ansiedade, e respondeu:
- Volte daqui a uma hora que já deve estar pronta. Vamos ver se sou capaz.
Depois, agarrou num velho bloco cujas páginas já iam em metade e tirou uma velha caneta de tinta permanente da pasta, guardando a esferográfica que usava nos impressos, e pôs-se à escrita, começando: «Meu amor.» Escreveu uma página e outra e outra, dos dois lados das folhas, até a caligrafia saía diferente, com a letra menos inclinada e mais arredondada até acabar «...custa-me viver assim, longe de ti, a pensar no que estarás a fazer em cada momento. Não me sais do pensamento. Quando estivermos juntos não nos separaremos mais. Amo-te».
Quando o rapaz voltou, perguntou-lhe o nome e assinou a carta. Escreveu cuidadosamente o envelope, com destinatária e remetente, e entregou-lho, sem o fechar, com um sorriso feliz:
- Pronto. Meta no correio. A mim, você não deve nada.
E quem por ali estivesse a observá-lo, na sua camisola de lã, as mãos delicadas repousando na prancheta de cartão verde-garrafa, sobre os joelhos dobrados pela posição no banco de lona articulado, descobrir-lhe-ia, na cara quase sem expressão, e nos olhos aparentemente desinteressados, um sorriso e um brilho que, sendo quase indecifráveis, se poderia apostar que eram de felicidade.

Uma carta de amor

VESTE SEMPRE UMA CAMISOLA DE LÃ, mesmo de Verão, o que, além de inevitavelmente ter de lhe fazer calor, lhe dá um ar de refugiado de alguma parte, acabado de chegar, sem bagagem e sem destino.
Está sentado, quase imóvel, no banco de lona articulado, sem mover a cabeça numa ou noutra direcção, acompanhando apenas com os olhos este ou aquele que por ali passam, com a pressa dos selos fiscais, das fotos á là minute, ou de mais um impresso que sempre falta à boca dos guichés.
Repousa as mãos afiladas, de dedos longos e postura delicada, numa prancheta de cartão prensado, cor verde-garrafa, e os olhos observam desinteressados o que acontece em cem graus de visão, os quais se recusa a aumentar, aconteça o que acontecer.
Passou o suficiente e calcorreou o bastante para ter a prata no cabelo e os sulcos na pele que só o arado da vida abre no coiro de cada um. Distinto e distante, sabe construir a sua superioridade da altura daquele mocho quase rasteiro, e quem nele atenta ou com ele fale fica com a sensação de ter à sua frente alguém a quem a vida pregou uma partida, mas que nada tem a ver com o sítio onde se posta, as pessoas que lhe falam, o dinheiro que lhe pagam ou a roupa que veste. Tem aquela idade indefinida que vai aos quarenta aos sessenta, sem que ninguém possa dizer ao certo quantos anos tem, e cumpre religiosamente um horário quer chova ou taça sol, debaixo da arcada onde vende os seus serviços, com ar de inspector de polícia ou de chefe de gabinete ou, melhor ainda, pela sua distinção, com ar de embaixador.
Preenche impressos a cinquenta escudos, escreve cartas a setenta e os analfabetos são o seu mercado. Mas, principalmente, preenche impressos, postado que está em posição fronteira ao Arquivo de Identificação, onde mesmo os analfabetos têm de ter uma identidade e um cartão que a prove com um número, uma cara e uma impressão digital. As cartas são menos frequentes, mas todos os dias tem pelo menos uma que escrever, o que faz sem emendas e em silêncio, após alguns minutos de conversa com o remetente para conhecer o conteúdo e o destinatário. Mostra-se, mais do que insensível, impermeabilizado aos assuntos que lhe sugerem para tema das relações que alinha em letra pontiaguda e agressiva, consoante a sintaxe que conhece e a vulgaridade das vidas sem história, ou das dificuldades sem grandeza de que lhe dão conta.
Pedem-lhe, normalmente, para escrever que tudo vai bem, que as crianças estão na escola, que vivem numa parte de casa mas que em breve se vão mudar, que arranjaram um andar só para eles ou que em breve começarão num emprego muito melhor. Quase sempre as coisas estão difíceis mas todos dizem que vão melhorar.
Outras vezes, nem isso. Apenas quinze linhas a dizer que tudo bem e que no Natal os não esperem, mas que na Páscoa vamos a ver. São cartas tristes, não por anunciarem algo de dramático, mas por reflectirem a desesperança de quem as encomenda. Começam, quase sempre, por «Maria», ou por «Querida Mãe», ou ainda por «Queridos Pais», e quem é que vai escrever à mulher ou aos pais, a dizer o que realmente lhes vai na alma? São meros registos de «nós por cá todos bem», o que raramente é verdade mas que serve para tranquilizar, e até dar orgulho a quem os recebe.
Muitas vezes pensa em quem vai ler o que está a escrever. Naturalmente que os analfabetos escrevem cartas uns aos outros. Não faria muito sentido um analfabeto escrever uma carta a um pai ou a uma mãe que sabem ler. Portanto, tem quase sempre a preocupação de as suas cartas manterem a oralidade que faz sentido não a quem as vai ler, mas a quem as vai escutar. Tem consciência que, no meio, há um codificador de sentimentos, que é ele, que escreve sinais num papel que alguém no destino descodificará em voz alta, soletrando o mais depressa que pode aquela caligrafia inclinada e ossuda.
Mas a maioria do seu trabalho é, já se sabe, com os impressos, nome, apelido, morada, nome do pai, nome da mãe, profissão, estado. É com isto que, aparentemente, se governa, escrevendo maiúsculas em quadradinhos verdes do computador, que regista tudo o que nós, Portugueses, somos ou, as mais das vezes, o que deixámos de ser.
No outro dia teve um sobressalto. Pediram-lhe para escrever uma carta de amor. Não lhe pediram assim. Foi um freguês, um homem ainda novo, de pele escura, com um endereço e código postal para o Sul, que lhe disse.
- Tenho uma carta para vossemecê escrever. Quanto é?
- Setenta escudos até duas páginas. O que é que quer dizer na carta?
- É para uma rapariga. Não quero dizer nada de especial. Não tenho nada para dizer. Quero só mandar-lhe dizer que gosto dela e penso nela todos os dias. Pode ser?
Sorriu, olhando demoradamente a cara morena que tinha à sua frente e que o olhava com ansiedade, e respondeu:
- Volte daqui a uma hora que já deve estar pronta. Vamos ver se sou capaz.
Depois, agarrou num velho bloco cujas páginas já iam em metade e tirou uma velha caneta de tinta permanente da pasta, guardando a esferográfica que usava nos impressos, e pôs-se à escrita, começando: «Meu amor.» Escreveu uma página e outra e outra, dos dois lados das folhas, até a caligrafia saía diferente, com a letra menos inclinada e mais arredondada até acabar «...custa-me viver assim, longe de ti, a pensar no que estarás a fazer em cada momento. Não me sais do pensamento. Quando estivermos juntos não nos separaremos mais. Amo-te».
Quando o rapaz voltou, perguntou-lhe o nome e assinou a carta. Escreveu cuidadosamente o envelope, com destinatária e remetente, e entregou-lho, sem o fechar, com um sorriso feliz:
- Pronto. Meta no correio. A mim, você não deve nada.
E quem por ali estivesse a observá-lo, na sua camisola de lã, as mãos delicadas repousando na prancheta de cartão verde-garrafa, sobre os joelhos dobrados pela posição no banco de lona articulado, descobrir-lhe-ia, na cara quase sem expressão, e nos olhos aparentemente desinteressados, um sorriso e um brilho que, sendo quase indecifráveis, se poderia apostar que eram de felicidade.