sexta-feira, 27 de julho de 2012

CAFÉ-CONCERTO


DESCOBRI o café ideal através de um conhecido que sofre de angústia existencial
- Vamos ao café, que hoje estou para implicar - disse-me, e, quinze minutos depois, ele estava felicíssimo.
Quando entrámos, não se sentou. Dirigiu-se ao criado mais próximo e disse alto à boa maneira dos saloons nos westerns:
- Você é uma besta-quadrada. Sai à família, não é verdade?
- Tem Vossa Excelência toda a razão. Desejam mesa? - retorquiu sorridente o empregado.
Pouco depois de estarmos sentados, esse meu conhecido passou a mais bela rasteira que jamais vi a outro pobre funcionário que corria com dois tabuleiros, carregando catorze bicas, vinte e seis brandes, sete sandes, quatro copos de leite, três garotos e seis galões. Ainda o homem não havia caído e já tinha gritado:
- Desculpe, senhor, a culpa é inteiramente minha.
E ainda não se tinha levantado quando o patrão trovejou:
- Você vai pagar tudo isto, ó Silva.
Ao que ele retorquiu:
- Evidentemente, senhor Lopes.
Cenas como estas tornam o café que vos falo no café ideal. É de facto o café mais reconfortante da cidade e não me admiro nada que os psicanalistas em voga o recomendem mesmo sem receber comissão. Mas o mérito todo está no letreiro. Naquele enorme letreiro que se reflecte no grande espelho frontal e nas caras dos habitués.
De outra vez que lá voltei, uma senhora pediu a um empregado que fosse dar uma volta ao quarteirão com o caniche que a acompanhava enquanto ela telefonava a uma amiga. O homenzinho voltou alegremente meia hora mais tarde sem uma perna das calças, uma meia rota e os dedos a sangrar. Esperou doze minutos pelo fim da conversa telefónica e inquiriu delicadamente, apontando o bichinho:
- Não tem raiva, pois não?
- Raiva?! O meu amorzinho com raiva, seu animal?
- Bem me queria parecer que não – disse ele afastando-se sorridente.
Na minha quarta ida àquele café, eu próprio não resisti: fui à vitrina, tirei um pastel dos maiores e esmaguei-o na cara do empregado mais próximo.
- Muito obrigado. Até que enfim que aparece um cliente original – respondeu.
Fiquei evidentemente todo satisfeito. Mas o mérito está no letreiro.
É uma pena os criados dirigirem-se aos clientes em fala normal. Se cantassem quando fazem as encomendas ou chamam os «senhores» ao telefone, aquilo era uma opereta completa ou, se os saudosistas preferirem, um verdadeiro café-concerto. Mas o mérito está, todo, no enorme letreiro:

«O CLIENTE TEM SEMPRE RAZÃO!»

sábado, 21 de janeiro de 2012

O PASSEIO DA VELHA SENHORA

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A VELHA SENHORA arrastava os pés com dificuldade e os seus olhos eram todo o outro movimento, que não o das pernas, no frio pôr-do-sol de Outono-lnverno centro-lisboeta.

Eram uns olhos negros que pareciam não pertencer à cara empoada, de palhaço rico, com que a velha senhora furava a multidão.
A sua figura negra, feita de velhas roupas, de bom mas antiquado corte, parecia afastar a multidão à medida que ela se perdia no meio dos habitantes do fim de tarde centro-lisboeta.

Quem passasse junto da velha senhora ouviria, de quando em quando, como que num bocejo: «É o doze mil, cento e vinte e três.» Mas ninguém tinha tempo para ouvir fosse o que fosse na lufa-lufa de um fim de tarde comercial centro-lisboeta.

E a velha senhora continuou o seu caminho em círculos, passando sempre pelos mesmos pontos da praça, dizendo de vez em quando, como num bocejo enfastiado: «É o doze mil, cento e vinte e três.»

À terceira volta à praça, quando esta já voltara a ter contornos precisos e as suas luzes saltavam nos salpicos dos lagos, a velha senhora parou na porta quente, onde a luz era mais forte. Disse uma vez ainda «É o doze mil cento e vinte e três», esperou, e então foi até ao balcão, naquele movimento só-olhos-só-pernas, Aí, pediu «Um galão e um croissant», numa bonita voz requebrada e de excelente pronúncia francesa. E depois substituiu o seu movimento único só-pernas-só-olhos pelo da dentadura estranha na face escalavrada. Pagou sem uma palavra, no final, como se aquilo fosse um velho hábito: o de substituir um jantar por um galão e um croissant pedido com excelente pronúncia francesa.

À saída, demorou-se de novo. Os dentes saltaram-lhe no buraco negro da face escalavrada que resultava terrivelmente crua sob o néon antes de, sub-repticiamente, aquele murmúrio rabiar de novo por entre a multidão: «É o doze mil, cento e vinte e três».

Só depois de os seus olhos, quase independentes da face branca, terem feito o percurso, as pernas se dispuseram a outra, outra e outra volta à praça, no princípio da noite centro-lisboeta, Naquela noite, qualquer pessoa podia ter comprado no Rossio, de Lisboa, o bilhete de lotaria número 12 123 àquela sombra negra, de movimento só-pernas-só-olhos, que fingia fazer o passeio de uma velha senhora.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

SONHOS ADIADOS

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«Nesta época do ano, Lisboa está cheia de homens com aspecto feliz», observaram-me há dias. E eu quis saber porquê.

- Homem, estás mais novo uns dez anos! - disse ao encontrar um amigo.

- Tenho a mulher e as miúdas fora de Lisboa - respondeu-me ele com um sorriso de totalista solitário do totobola.

Comecei então a trabalhar.

«Que vantagem encontra no facto de estar sozinho em Lisboa?», perguntei a diversos casados, temporariamente solteiros, em virtude das férias das consortes.

«Bom, compreende, não é... um homem sempre pode... percebe? Não é verdade?...», responderam oitenta por cento dos entrevistados.

«A principal vantagem é poder estar-se só, em casa, ir nu da sala para a casa de banho, não ouvir o ruído das crianças e... gastar menos dinheiro no cinema», declararam-me doze vírgula um por cento.

«Não vejo qual seja a vantagem», afirmaram seca e inquietadoramente um vírgula quatro por cento.

Os restantes seis e meio por cento foram categóricos: «Ter a família fora é uma maçada! O pó acumula-se, a casa desarruma-se mesmo com uma empregada a cuidar dela, as refeições dos restaurantes estão cada vez mais caras e dão cabo do estômago a uma pessoa e, ainda por cima, temos que estar em casa a horas certas para receber o telefonema da mulher. Fartos! Estamos fartos!!!»

Informaram-me, entretanto, que se está a pensar, algures, na criação da Associação dos Homens Pacatos com Família em Férias (AHPFF), a qual teria por principal objectivo distrair os espíritos e arrefecer os ânimos com filmes culturais, saraus literários, livros morais, capilé, salsaparrilha e cigarros mentolados.

Quem foi que disse que estes homens são felizes? Parece-me antes que estes homens de cara alegre são, pelo contrário, profundamente infelizes. Saem de casa com a alegria de todos os momentos disponíveis, mas quando voltam para o lar vazio e se deitam, sozinhos, ainda com menos dinheiro, cansados, os pés a doer, devem murmurar: «Amanhã à noite vou fazer as coisas mais bonitas que um homem...»

Sonhos. Sonhos antecipadamente adiados.

sábado, 17 de julho de 2010

ÁLIBIS

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Por Joaquim Letria

UM AMIGO meu, que é tipógrafo, diz que leva sempre um exemplar do jornal onde trabalha «para mostrar em casa à mulher que esteve a trabalhar durante o dia».
Um pescador, que conheço, também costuma passar pelo mercado, não para se gabar das suas façanhas, mas para a mulher não desconfiar de que não foi à pesca.
Um calceteiro, com quem falei há tempos, confessou-me que leva diariamente uma dor de rins para casa a fim de a mulher lhe não fazer cenas de ciúmes.

Aquele provador de vinhos, que encontrei, explicou-me também que nunca lavava os dentes antes de a mulher ter a certeza do volume do trabalho que diariamente o avassala.

Outro que tal, era aquele noticiarista que antes de ler as notícias ao microfone dizia: «Olá, querida!»

Não há dúvida que há mulheres ciumentas e maridos que não querem problemas em casa. Penso, no entanto, que os homens abusam.
Os casos que citei são bons exemplos de homens felizes. O seu trabalho faculta-lhes o álibi que as respectivas mulheres exigem.
Agora, se vocês são meus amigos, digam-me: Acham, francamente, que a minha mulher vai acreditar que levei todo o dia para escrever isto?

sexta-feira, 9 de julho de 2010

AS REGATAS DO RISSOL

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COCKTAILS E RECEPÇÕES são, em regra, boas fontes de notícias. Frequentei-os sempre por prazer, uns, por dever de ofício, outros. Mas quer num caso quer noutro encontrei sempre grande motivo de interesse na observação daquilo que chamo «as regatas do rissol».

Figuras simpáticas sulcam as salas a uma velocidade de cruzeiro constante, extremamente manobráveis, com braços e sorrisos sincronizados, respectivamente para o uísque e para as pessoas, quer dizer, sorrindo à direita enquanto o braço esquerdo apanha na passagem um copo do tabuleiro que vem em sentido contrário.

Sabem conviver telegraficamente: sete palavras a este antes de arrancar para aquele, passando pelos croquetes, com respectiva pausa posterior para deglutir o primeiro e engolir o segundo com tempo no caminho para limpar os dedos ao cortinado.

São perfeitos e eficientes. Trata-se, sem dúvida, duma arte difícil: sorrir enquanto se mastiga, gargalhar enquanto o caviar desliza pelo esófago e principalmente conseguir comer relativamente bem sem que se dê por isso. Parece evidente que escrevo estas linhas por despeito, mas, no fundo, trata-se duma inveja que não consigo esconder.

E sabem porquê. É fácil, nos cocktails só consigo comer pinhões, o que para além de engordar reconheço não ser maneira de estar em sociedade.

As mais das vezes, uma pessoa chega cansada, atrasada, contrariada, apressada. Metem-lhe um copo na mão, um bolinho de camarão no outro, acertam-lhe com um sorriso e desaparecem duma forma que é como quem diz «governa-te!».

Uma pessoa penetra em todo aquele abafado ruído dentário, navega à bolina por entre pãezinhos de leite e olhares acusadores. Quando a confiança começa a regressar, invariavelmente a dona de casa diz.

- Ainda não o vi comer. Não faça cerimónia. Faz favor de estar à sua vontade.

E lá se vai essa confiança, na eloquência dos nossos «hum, hum», com o folhado a saltar-nos da boca para a carpeta, com o sorriso transformado em esgar violáceo, com a consciência a perguntar sobre quem vai pensar e acreditar que aquela era a primeira empada?

- É por causa destas e doutras que admiro e invejo a actuação de quem pratica com à-vontade as regatas do rissol.

E é com tristeza que só consigo comer pinhões descascados. Minto: às vezes também como amendoins ou castanhas de caju.

sábado, 27 de março de 2010

O CARNAVAL DE «OLHOS TRISTES»

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AS PESSOAS DENTRO daquele automóvel parado junto do autocarro que o sinal vermelho imobilizara fizeram «Olhos Tristes» lembrar-se da Velha e sorrir.

As pessoas estavam mascaradas e gesticulavam no interior escuro do carro e riam-se muito e atiravam-se para cima umas das outras, mas nada se ouvia por causa dos vidros do carro e do autocarro e tudo aquilo parecia um filme mudo, com muitos gestos e bocas abertas a gritarem um riso mímico.

«Olhos Tristes» esteve todo o tempo a olhar e a lembrar-se da Velha que já devia estar à sua espera junto da paragem onde desceria dali a pouco, a cerca de duzentos e cinquenta metros da sua porta. Viu as horas e pensou que vinte e duas e trinta de véspera de Terça-Feira de Carnaval era uma boa hora para as pessoas estarem a fazer tudo o que lhes apetecia para se divertirem e devia ser essa a razão por que no autocarro só havia sete pessoas quando nos outros dias à mesma hora quase andava cheio.

«Dez e vinte é uma boa altura para um homem voltar para casa mas quando já está jantado. Para os outros, a noite já começou há um grande bocado e para tipos como eu é sempre mais pequena», pensou.

Quando a luzinha se passou para o verde, o autocarro arrancou mas o carro dos mascarados depressa o ultrapassou porque era mais leve e também por o motor ser mais potente em proporção.

O autocarro dava agora a volta apertada à esquina, e, sem saber porquê, ficou aborrecido com a Velha no pensamento.

«É uma boa mulher. Ainda hoje, com cinquentas, é uma boa mulher. Trabalhou à brava - caramba, se trabalhou! - e nem por isso ficou desfeada», pensou.

Na paragem anterior àquela em que saltaria, o homem perguntou-se: «Que me fará hoje a Velha para jantar?» E ficou a saber que lhe apetecia uma boa perna de frango, embora tivesse a certeza de que isso não aconteceria.

Quando desceu, não viu a Velha e parou na montra do costume onde há quase um ano mostravam aqueles pijamas de flanela às riscas e as camisas de nylon apenas a setenta e cinco escudos que ele cobiçava, mas que não tinha número que lhe servisse.

A Velha segurava nos netos pelas mãos, coçava uma perna na outra e esticava para a frente a barriga, quando ele a viu uns metros mais abaixo.

Os miúdos fizeram «Olhos Tristes» pensar que Alexandrina tinha lá ido jantar e voltou então a recordar-se que estava na véspera de Terça-Feira de Carnaval. O neto mais pequeno veio a correr e pendurou-se na lancheira em que sempre gostara de mexer.

- A tua mãe?
- Saiu. Jantámos e ela saiu. O avô fica connosco ou vai à taberna.
- Porquê? O avô vai mas é jantar.
- E depois?
- Depois logo se vê.

A Velha já ia junto dele e tinha aquele ar igual de todas as ocasiões. Era um ar que parecia dizer «paciência, já sabia que era assim que ia acontecer». Talvez por causa da cara da Velha, ele pensou outra vez no Carnaval.

- Já jantaste?

Esta era uma pergunta diária embora soubesse que ela esperava sempre por ele. Por isso não se preocupou com a resposta e perguntou:

- A Alexandrina onde foi?
- Não sei. Não me disse. Pediu só para ficarem cá hoje os miúdos e saiu.

Em casa foi directamente ao vaso da janela e viu como de costume se a planta precisava de água. Ficou-se a olhá-la enquanto o rádio aquecia, ouvindo a Velha mexer na louça.
«A Alexandrina, é uma boa rapariga, às direitas. Aqui todos falaram por os miúdos não terem pai, mas a Alexandrina é fixe e trabalhadeira», outra ideia que de súbito lhe veio à cabeça.

- Queres molho?
- Hum...
- Perguntei se queres molho, parece que estás a dormir, hoje.
- Pouco.

«Lá fez bife, a Velha... ela come sempre os restos do almoço mas cá para o rapaz faz sempre um petisco. Boa mulher esta Velha.»

- Mas então a Alexandrina não disse onde ia?
- Não. Falou só de uma festa com umas colegas.

«Pois claro. Uma festa. Afinal é véspera de Terça-feira de Carnaval.
«Este tipo agora pôs-se a cantar o fado. Só neste país... afinal que raio é o Carnaval? Naquele ano em que pensei em brincar ao Carnaval apanhei mas foi uma tareia do caraças que o meu pai me arreou por ter roubado uma bisnaga na tabacaria do Ramos».

Ficou-se diante do bife a olhar as costas da mulher curvada para o fogareiro.

Os miúdos brincavam com o cinzeiro de louça que era ao mesmo tempo o emblema do Benfica e que segurava o naperão sobre o aparelho de rádio.

- Tá quieto, Miguel. Olha que partes isso e depois eu arreio-te.

«Carnaval. E se... Não. Não digo nada à Velha.»

- Depois de comermos vais lavar a loiça?
- Lavas tu, não?
- Não é isso. Quero dizer se a podes deixar para amanhã.
- E depois amanhã vais tu à praça e lavas-me a roupa que é preciso...
- Merda. Mas não podes hoje deixar essa louça? Um dia não são dias…
- Posso. E depois?
- Os miúdos já comeram?
- Já.
- Então tu podias deitá-los e pedias aqui ao lado que dessem uma vista de olhos.
- Mas que raio de ideia te deu, homem?
- Ora, é Carnaval e podíamos ir até à Baixa ver as máscaras...
- Tu tás doido!

O bife era de porco e estava passado apenas o suficiente como ela sabia que ele gostava e as batatas eram fritas, grossas e moles como também preferia.

- Mas não podemos lá ir um bocadinho só?
- Mas praquê? Diz lá o que te deu?
- Depois, apanhávamos o elevador e vínhamos de eléctrico que sempre há até mais tarde.
- Pois, e amanhã, cá estava a escrava com o serviço todo às costas.
- É feriado e eu ajudava-te.
- Tem mas é juízo.
- A Alexandrina volta cedo?
- Sei lá! Não disse.

Acabou o bife, acendeu um cigarro, desceu a escada de ferro que rodeava todo o interior do pátio como se fosse uma galeria e para a qual davam todas as habitações do primeiro andar. Atravessou o empedrado e parou um bocado à porta a olhar a rua. Na esquina enfiou-se na taberna. Tomou um bagaço, mal conversou, e pôs-se a olhar a capelista da frente ainda aberta.

De repente, atravessou a rua, deu as boas-noites à menina Alzira, uma solteirona de quem se dizia que dormia com o gato grande e amarelo que desde sempre pulava por cima das caixas grandes dos rebuçados das colecções dos jogadores da bola e dos envelopes e das revistas. Esteve lá dentro uns dez minutos. Quando saiu, trazia uma mão atrás das costas e assobiava num meio sorriso.

No túnel que da rua conduzia ao pátio, para onde davam as habitações, parou um bocado, depois atravessou mais depressa e sem ruído o empedrado e teve cuidado em não fazer barulho quando subiu a escada de ferro. A porta estava encostada. A Velha lavava a louça e os miúdos brincavam em cima da cama.

- Huh, huh, huh...

Quando a Velha se voltou, uma gargalhada que parecia um grito desprendeu-se da garganta de «Olhos Tristes» e o homem atirou a cabeça para trás a rir cada vez mais e os miúdos saltavam à sua volta e riam-se também, só a Velha não ria, olhando com aquele ar que parecia dizer «paciência, já sabia que era assim que ia acontecer», e os miúdos gritavam «dê-me, avô, dê-me...» e «Olhos Tristes» curvava-se engasgado e vermelho, a urrar, até tombar devagarinho na cama, sempre a rir, agora já sem força o seu riso mais parecia um choro de bebé, com os miúdos a saltarem-lhe em cima e a puxarem, até a mascarilha preta de cartão lhe ficar na testa. O mais novo conseguiu agarrá-la e os dois foram para um canto cada um a querer pôr a mascarilha primeiro do que o outro Na borda da cama, «Olhos Tristes» sorria por causa dos miúdos e quando a Velha lhe passou a mão deu-lhe uma palmada no rabo e disse.

- Vá despacha-te. Vamo-nos deitar hoje, ou quê?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

À ESPERA, PELOS JARDINS

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O VELHO OLHOU, tranquilamente, para o outro extremo do jardim. Era um olhar certo, que sabia antecipadamente o que ia encontrar. Era o olhar de um velho.

As crianças que brincam naquele jardim não notam os velhos. Brincam entregues a si próprias e só elas contam, entre si; os velhos não brincam com as crianças, naquele jardim, nem reparam nelas demasiadamente. As crianças importam-se apenas consigo próprias e com as brincadeiras. Os velhos importam-se com coisa nenhuma. São apenas velhos a aquecerem-se ao sol. São velhos à espera da morte.

O miúdo louro, de quatro anos e de bola na mão, foi apanhado pela retina que fixava aquele extremo do jardim. Ria. De três em três passos, dava um pulo, na corrida. O braço levantou-se mais alto do que a cabeça e a bola foi arremessada.
O velho não seguiu a trajectória da bola e os seus velhos olhos apenas piscaram mais demoradamente mas não mais do que o necessário. Ficou-se a olhar a criança e logo a seguir o sítio onde ela estivera.

(Têm pernas nuas as crianças dos jardins e os velhos vestem pesados sobretudos e têm cachecóis de malha caseira à volta do pescoço, de peles por barbear.
Naquele jardim sossegado, diariamente, as crianças brincam por entre árvores e velhos à espera da morte, sem o perigo dos automóveis).

É curioso e estranho que estes velhos escolham um jardim para gastar os dias secos. Há velhos que são apenas velhos. Mas estes são velhos à espera da morte. Um velho que não espera mais do que acabar procura quase sempre um jardim, e é quase o único que sabe tirar todo o prazer da tranquilidade relativa do lugar.
Os velhos que não pensam ainda em acabar deixam os jardins vazios para as crianças e para os namorados e ficam-se a ver a laranjinha ou a sueca, no botequim ou no clube do bairro.
Mas os velhos que se sentem um peso morto para a família, que perderam as companheiras, que arrastam os pés e se sentam próximo dos urinóis, esses olham tudo e todos com aquela certeza antecipada do que vão ver e ficam-se, estaticamente confundidos com as árvores de grande porte.

- Como vai isso, amigo, como vai isso?
- Comé qu 'há-de ir, isto agora já não vai. Só um balde de cal e três badaladas.
- Oh, e eu nem me diga, amigo. Prà qui penamos. . .
É um dos típicos diálogos destes velhos, nos jardins que fazem lembrar cemitérios de elefantes.

Conversas destas e frases como «A morte anda cega» e «Já falta pouco para tudo se acabar» podem ali ser escutadas por qualquer curioso do quotidiano.
Não sei se foi encontrado algum velho morto, num jardim público. Mas acho que sim. «Ir ao jardim» é, afinal, a resposta à vida que se obrigam dar quando se sentem mais perto da morte. Um velho distraído, num jardim, é o balanço de uma existência; é uma soma de amarguras.
Quando um não aparece, os outros pensam que foi do frio ou, talvez, do reumático. Mas se passam mais uns dias, um há que vai perguntar. Então uma vizinha diz. «Morreu, coitadinho. Morreu na semana passada.» O velho, que foi saber, volta mais tarde do que o costume e conta ao primeiro dos outros velhos o que ouviu. A notícia vai assim correndo. Mas não a comentam em grupo, embora a possam repetir a alguns já avisados. E ficam-se por aí, porque sabem que aquilo é o que acontece em todos os casos. Pensam, então, que estão a ganhar mais uns dias ou, pelo contrário, que o camarada lhes ganhou a corrida.

(Tenho visto muitos cadáveres e entre estes os de muitos velhos. São os que apresentam no rosto rígido uma certa felicidade. Não estou a dizer nenhuma irreverência São, de facto, os «velhos-que-esperam-a-morte» que aparentam a maior tranquilidade depois de acabados, mesmo que o fim tenha sido violento.
Têm todos o ar de que não restou nada para fazer e o de a quem aconteceu, simplesmente, aquilo aguardado com a frieza das certezas antecipadas. Não se pode falar com um morto. Mas um cadáver de velho diz-nos muita coisa, serenamente.)

Se se fizesse a média dos velhos que todos os dias se finam, concluir-se-ia que, em breve, não haveria ninguém à espera da morte nos jardins públicos. Mas não se pode esquecer que, diariamente, nascem velhos; e há também jovens à espera do fim de uma «vida provisória».

Sim. Mas, e as crianças? Pois. As crianças...
Passemos-lhes a mão pelos cabelos, numa promessa. Uma promessa mútua: para elas e para nós. Porque se não soubermos dar-lhes uma vida definitiva, então, amigos, não haverá, quando o nosso tempo também chegar, velhos nos jardins. A menos que não sintamos vergonha ao encararmos com as crianças.

sábado, 3 de outubro de 2009

ALI-BABÁ E OS TRÊS ANÕES

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INQUILINO DESTAS PÁGINAS, vizinho de figuras tão interessantes como Madalena Barbosa e Helena Roseta, sem esquecer a vizinhança mais sisuda mas sempre simpática de Luís Morales decidi, este mês, dar a minha contribuiçãozinha anual para o movimento das mulheres, sem que tal represente qualquer encargo para o IF nem para quem quer que seja.

Permitam-me, assim, que esta contribuição vá em estilo de sugestão, a qual de muito bom gosto, e de resultados garantidos, porque em certas coisas, por muito mal pareça confessá-lo, nada sabe melhor do que o travozinho agridoce da vingança, e vingança é o que eu proponho a estas e todas as mulheres que elas possam representar.

Começo, portanto, por vos sugerir que deveis ir ao Cairo.

E, uma vez lá, e antes de vos entregardes à volúpia da descida do Nilo e vos perderdes na luxúria cultural de Luxor e Carnaque, deveis ir a Sahara City, suposto local de perdição, onde vos encontrareis no interior de uma ampla tenda de deserto, à beira das Pirâmides e do sorriso desgastado da Esfinge. Aí, vos asseguro eu, vos sentireis vingadas ao observardes dos mais estranhos espectáculos que é dado ver a um viajante, e muitos há a ler estas páginas, tão longamente elas resistem no interior dos aviões portugueses.

A tenda alberga um conjunto de mesas normais, de quatro e de oito e doze pessoas, ao redor de uma pista onde, sucessivamente, se apresentam voláteis ou pesadas, mas sabidonas, bailarinas orientais, especialistas na dança do ventre, que é a arte suprema de desenhar com o umbigo o sinal do infinito, aquele oitozinho deitado que tanto nos deu que fazer no tempo das sebentas e da Álgebra, e que também dispõe do sortilégio de todos os mistérios orientais, mesmo aqueles oriundos ou residentes do Oriente Próximo ou Médio, parente pobre das profundezas insondáveis dos povos do Extremo ou Longínquo Oriente.

Quer isto dizer que a primeira parte do espectáculo é perfeitamente adequada a ambos os sexos ou, se se preferir, mais recomendável aos machos, quiçá mais propensos aos sonhos ou às fantasias possíveis. Mas cuidado! A vingança chega depois!

Antes da vingança, porém, sucedem-se alguns cançonetistas, de ambos os sexos e de vozes meladas, claramente indicadas para as melopeias intermináveis onde podem fazer sempre o elogio dos presentes, com indicação sonora do nome do louvado, directamente proporcional ao valor da nota que se mete na mão dos cantantes.

E, finalmente, senhoras e senhores, a vingança!

Fellini, se os tivesse visto, já os teria utilizado num dos seus filmes, tão feios e deformados eles são. E são quatro, os homens. São quatro, mas três deles são anões, e tão pequenos, musculosos e desgrenhados, que logo fazem rir quem mesmo não concorde com a troça da desgraça alheia.

Os homens apresentam-se de fatos flamejantes, brilhantes, de cetim, de cores tão garridas que não podem deixar de ser considerados como artistas de circo, e tal o seu número mete forças combinadas que não restam dúvidas, com o homem normal a servir de base, suportando o peso dos anões e manejando-os com tanta perícia que não resta mais do que aplaudir e rir do que há para rir, pois é para isso que servem algumas palhaçadas que rapidamente desenvolvem, submersos pelo gáudio do excelentíssimo público.

Cabe, agora e aqui, falar-se do respeitável público, pois se não nos inteirarmos exactamente de quem rodeia aquela pista, bebendo álcool, rindo e batendo palmas, num país e com origem islâmica, não compreendemos bem todo o alcance da vingança. Maioritariamente, o público de Sahara City é composto por mulheres provenientes da Jordânia, algumas outras vindas dos Emirados e muitas egípcias, acompanhando-se entre si, quer dizer, sem homens, antes aproveitando a ausência destes nas suas mesas para lançarem algumas sugestões ópticas profundas a alguns homens desacompanhados e desprevenidos. Também muitos casamentos vão ali iniciar a noite, com os padrinhos ou pais de um dos nubentes a convidarem para aquele insólito copo-d’água e, ainda mais insólito, a levarem a estranha horda de meninos e meninas de soquetes brancos e sapatinhos de verniz que parece serem lugar-comum de casamento, seja por que religião for que os noivos cheguem ao altar.

E, senhoras, e senhores, finalmente, a vingança!

Começa esta quando dá a maluqueira ao homem que serve de base aos anões e nós começamos, de cabeça levantada, a seguir os pequenos corpos arremessados com força e a ficarem, quando o conseguem, a baterem com os costados pela lona das paredes da tenda, ou a aterrarem em mesas vazias, ou a caírem nas carpetas que cobrem o solo, os anões transformados em disformes bolas de ténis, as bocas fortemente pintadas das mulheres de olhos escuros a crescerem, escancaradas, pelo riso que agita as sedas que cobrem os seus peitos fortes e os anões a voarem, lá vai um, «crash», e toda agente a rir, e os homenzinhos, que são gregos, dir-me-iam, a saltarem como bolas e, de súbito, as luzes a apagarem-se, a música a mudar para o suave, a deixar o rufo dos tambores enfrenesiados que acompanhavam os disparos dos pequenos corpos, e, de novo, a lascívia nas notas musicais, as luzes ainda desligadas, um foco, sobre o palco, o estrado onde um dos anões desencadeia o mais tragicómico número de strip-tease que é dado ver-se.

Ao ritmo da música, agitando as nádegas e os ombros, o anão, sozinho sob o frio da luz do foco, vai-se despindo, atirando fora o seu coletezinho minúsculo, cor de laranja, vai desapertando os folhos da sua camisa azul-eléctrico, vai mostrando o peito, vai tirando peça a peça até ficar com um minúsculo slip onde as excitadas damas metem notas, rindo e tapando as bocas enormes com as mãozinhas sapudas cobertas de anéis, excitantes, exigentes, a quererem tudo ver, cada vez mais notas e estas cada vez maiores no slipzinho, e o anãozinho a fazer-se rogado, sem o apoio de Ali-Babá e dos outros dois anões, discretamente no escuro, até que uma mulheraça de Alexandria, que domina uma mesa de mais três mulheres, não permite mais brincadeiras e zás, com notas a esvoaçarem, fica com o slip do anão nas mãos e este cobre o que deve cobrir com as mãos, e as mulheres gritam histéricas e os homens sorriem desgostados, penso que, em primeiro lugar, porque aquele não é propriamente um lisonjeiro exemplar da espécie, depois porque as mulheres são demasiado violentas nas suas exigências.

Enfim, se as minhas vizinhas ou condóminas nestas páginas se querem sentir vingadas por séculos de mulheres-objectos, vão a Sahara City Ficam, certamente, satisfeitas.

Eu, pelo menos, fiquei envergonhado. É que concordo que as mulheres possam ter direito a strip-tease masculino.

Agora anões, senhoras, no mínimo, é de mau gosto...
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Lisboa, 1987

sexta-feira, 24 de abril de 2009

LUCUBRAÇÕES À VOLTA DO CÃO DA VIZINHA QUE DEBAIXO DA CAMA O TINHA

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TENHO UMA VIZINHA que tem um cão, mas ignoro se debaixo da cama o tem, como a velha que tinha um gato e debaixo da cama o tinha.
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A minha vizinha vive só, com o maldito cão, o que abona o animal porque a vizinha é interessante, humilha os homens porque parecem andar distraídos, e justifica que a vizinha diga que quanto mais conhece os homens mais gosta dos animais.
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Tudo isto vem a propósito de a minha vizinha ter um cão.
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O facto não teria outro significado se o cão da minha vizinha não desse cabo da paciência de quem passe o dia em casa, na vizinhança, o que me acontece com frequência, porque, na ausência da dona, o cão ladra e uiva incessantemente, o que ocorre todo o santo dia porque a referida pequena sai de manhã e volta à noite.
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Ontem pensei em cozinhar um pastel de estricnina e atirá-lo para o terraço onde o cão fica confinado quando a minha vizinha se ausenta, para voltar às tantas com aquele arzinho de quem quanto mais conhece os homens mais gosta dos animais.
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Não pretendo de modo algum que esta seja a crónica de uma morte anunciada. Se porventura eu não resistir e vier mesmo a envenenar o cão, ou alguém acabar por o fazer, não tirarei glória nem provento de antecipadamente ter falado no fim do cão. Para que não seja uma crónica com esse objectivo, e muito menos possa parecer um álibi antecipado, não posso perder este ensejo sem produzir algumas lucubrações breves sobre a natureza animal.
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Começarei pela minha própria, a fim de atenuar a má impressão certamente causada por esta confissão pública de predisposição assassina. Um bolo de estricnina rapidamente deglutido pelo animal deveria levá-lo à morte em aproximadamente dezassete minutos, isto calculando a porção do veneno em proporção ao peso do bicho, segundo alguns estudos médico-legais. Ao fim de algumas convulsões, e de um certo padecimento, o animal libertar-se-ia de vez deste sofrimento diário de solidão e saudade com que a dona o penitencia, eu libertar-me-ia do sofrimento que os seus latidos exasperantes me provocam, o que para nós dois seria de grande alívio, além de eu estar convencido de a digníssima vizinhança hipocritamente aplaudir, em silêncio, aquilo que descreveria como triste desaparecimento do simpático animal.
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Tendo eu em vista que um assassínio, não interessa a vítima nem importa a forma que envolva, será sempre o acto de apressar um processo natural, o qual nos cães é, de resto, muito breve, poderia este argumento ser tomado em consideração para aliviar as penas que me quisessem imputar por tão nefando acto.
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Mas continuando a imaginar coisas do comportamento animal, creio eu que a dona do cão, minha vizinha, graças ao meu tresloucado acto, como seria, descrito pelas gazetas, poderia libertar-se desta fixação em que vive, e descobrir, ela própria, que, independentemente das delícias que um canídeo inconscientemente possa provocar, um homem é um homem e um cão é um bicho. Se apesar de tudo ela não quisesse reconciliar-se com um parceiro da sua espécie, podia sempre comprar um canário ou um periquito, os quais, ainda que incapazes de aquecer a cama seja de quem for, garantiriam uma transição tranquila e sem danos à sua proprietária e digníssima vizinhança, na qual me incluo. Tenho, por outro lado, bem presente que o cão é o melhor amigo do homem. Ensinaram-me isso à força, na terceira classe, e toda a minha vida levei isso em consideração. Mas a verdade é que o cão, sendo um animal doce e inteligente, não tem personalidade. Batem-lhe, e ele lambe as mãos de quem o pune. Castigam-no, e ele submete-se. Prendem-no, e ele dá ao rabo. Permitem-lhe ousadias de aquecer camas e ele uiva, ladra, late e fica assim ululante todo o santo dia.
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Como já disse, não sei se esta minha vizinha tem à noite o cão debaixo da cama, como a velha que tinha um gato e debaixo da cama o tinha. Mas o gato, nunca podendo vir a ser o melhor amigo do homem, é um felino com personalidade que merece respeito.
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O problema que se me põe, com a concretização deste premeditado canicídio, é o da gratidão do cão. Porque é bem possível que se eu vier a envenenar este adorável bichinho da minha vizinha ele me fique tão grato que, quando eu próprio der a minha alma ao Criador, a alminha ululante do cão da minha vizinha me persiga nos meus passeios tranquilos e entediados pelo Céu. Será, sem dúvida, uma acusação terrível porque, nesse caso, terei de explicar a todas as boas almas que ganharam aqueles reinos que aquele tinha sido um cãozinho duma vizinha que talvez debaixo da cama o tinha, até que eu lhe ofereci um pastelinho, por mim próprio cozinhado, à base de estricnina.
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Estão a ver que esta história, mesmo com a gratidão do cão, e todos os diminutivos que eu possa vir a arranjar, não é uma história que se possa contar no Céu. De certeza que lá ninguém vai gostar.
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Estão a ver o que pode fazer à cabeça dum pacato cidadão o cão duma vizinha?
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Mais tarde, darei notícias se acabei, ou não, por decidir envenenar o cão da minha vizinha, que, se calhar, debaixo da cama o tinha. Para já, o que vos posso garantir é que prefiro o gato que era da velha e que debaixo da cama o tinha.
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Lisboa, 1987

sábado, 21 de fevereiro de 2009

O ANO DOS PATOS E DAS ANDORINHAS

COMEÇÁMOS NOVA VOLTA do carrossel. É esta a sensação estranha que actualmente me dá a passagem dos anos, entendendo por isto o acabar um ano e começar outro período igual.
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Toca a buzina, o carrossel abranda, há quem salte porque não pode mais, há quem se firme no tigre, se apoie no leão, se pendure na girafa e, «hop-lá», mais uma volta, vai andar, vai andar, com o vento na cara, agarrados à garupa da vida, a ver quem aguenta maior número de voltas, uns tirando prazer da viagem, outros limitando-se a não dar parte de fracos.
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Vivemos todos este rápido e angustiante período de transição. Agitamo-nos todos apertados neste parêntesis da História. Vimos do certo, do garantido, do seguro, da Feira Popular com os seus túneis do amor, barracas dos espelhos, castelos fantasmas, montanhas-russas, tudo destinado à ilusão provocada pelo sobressalto desejado para quebrar o ripanço garantido e animar a segurança da vida.
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Estamos agora na naúsea da vertigem da volta cada vez mais rápida, movemo-nos no círculo que nos atira para o vazio do desconhecido, penduramo-nos de cavalinhos de pau que riem, de zebras de pijama às riscas, de tigres a saltar em frente.
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Empurramo-nos, frenéticos, no grande parêntesis da História. Parêntesis entre o certo e estabelecido e o incerto, espécie de incógnita do poço da morte, em voltas cada vez mais rápidas, no carrossel da vida.
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Dantes, os anos pareciam ter muito mais coisas. Tinham Primavera, Verão, Outono e Inverno; tinham armários para guardar as roupas certas, tinham Verões de São Martinho adequados aos magustos e havia épocas para tudo - para começar as aulas, para forrar os livros, para ir aos ninhos, para tomar banhos de mar, para ir para o pinhal, para comer gelados ou comer castanhas, para carregar cartuchos calibre doze, para rachar lenha para o fogão.
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Havia também os momentos próprios para o sarampo, para o sarampelho, para a escarlatina ou para a difteria; assim coHoje, não há mais certeza de coisa nenhuma. Não há horas, nem vidas nem dias certos para o que quer que seja. Rodopiamos sem querer pensar onde nos leva esta viagem circular. Os anos entram à razão de montras de centro comercial e saem à mesma velocidade e sem cerimónia, connosco a vermos todas as feiras populares e luna-parques, cosmética de miséria humana, polvilhada de stands de «ó simpático, um tirinho».mo existiam dias indicados para colar nas costas o adesivo da tuberculina.
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Hoje, não há mais certeza de coisa nenhuma. Não há horas, nem vidas nem dias certos para o que quer que seja. Rodopiamos sem querer pensar onde nos leva esta viagem circular. Os anos entram à razão de montras de centro comercial e saem à mesma velocidade e sem cerimónia, connosco a vermos todas as feiras populares e luna-parques, cosmética de miséria humana, polvilhada de stands de «ó simpático, um tirinho».
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Desejar bom ano para todos os meus semelhantes é cair em lugar-comum de emissão televisiva endomingada e, sem desistir deste voto, não quero incorrer em falha tão grosseira. Assim, o melhor que posso fazer, sem alterar o nosso calendário, nem mudar do gregoriano para o chinês, é desejar que este ano todos dêem pela chegada das andorinhas, que notem a passagem dos patos com os seus gigantescos V V de vitória. Já repararam há quanto tempo a gente não dá por isso? Que este ano dos patos e das andorinhas seja um bom ano para todos os que continuam a resistir e recusam tornar-se aves de arribação em que alguns passarões nos querem transformar.
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Lisboa, 1987

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

ABAIXO-ASSINADO

NO MOLHO DE CARTAS que me puseram sobre a mesa destacava-se, naquele dia, um longilíneo sobrescrito de correio aéreo ao qual já haviam roubado, à tesoura, a fatia dos selos. Olhei-o guloso, mas decidido a deixá-lo para o fim, seguindo a velha teoria que privilegia «más notícias, primeiro», e que desde sempre me compele a ler, antes do mais, contas, contrafés e cartas tarjadas de luto carregado.

Uma, após outra, aquelas cartas constituíam uma correspondência sensaborona, recheada de impressos de concursos, de cursos por correspondência, de extractos de contas e de apólices de seguro, mais um cartão pessoal de alguém que agradecia um favor. Finalmente, restava a misteriosa carta, que não abri antes de acender um cigarro, ir espreitar à janela a chuva miudinha de Janeiro sombrio e ver os pinheirinhos abandonados junto dos caixotes de lixo, desde o Dia de Reis, despidos já das suas funções nobres e ilusórias de árvores de Natal.

Abri então o que restava do envelope e li as várias folhas, a última das quais preenchida por assinaturas, na sua maior parte ilegíveis. Tratava-se, sem dúvida, de um abaixo-assinado, e era-me endereçado duma capital latino-americana, em reacção à crónica anterior, aqui publicada, «Natal do Pai Natal».

Tinha à minha frente, sobre a mesa de trabalho, um abaixo-assinado de Pais Natais.

Em termos muito corteses, numa escrita muito polida, a carta continha, todavia, algumas elegantes blagues que não pude deixar de compreender, como aquela de me elogiarem «por ser, certamente, a última pessoa que nos dois hemisférios ainda escreve sobre Pais Natais, para além, evidentemente, das crianças a quem nas escolas pedem composições, ou redacções sobre tão antigo tema». Mas a par da crítica velada e ágil, ali estava, impressa, a reivindicação que penso, desta forma, estar a satisfazer: falar das horríveis condições de trabalho dos Pais Natais da América Latina. Posso, efectivamente, falar em favor destes personagens, que vi em diferentes Natais e em distintos países daquela latitude, quer de idioma castelhano, quer de língua portuguesa. Deve oferecer as maiores dificuldades ser-se Pai Natal na América Latina. Em primeiro lugar, porque é difícil criar a ilusão no meio dos desiludidos. Depois, porque os brinquedos e artigos para adultos são quase todos importados, o que relaciona o Pai Natal com a inflação e, sobretudo, com a dívida externa, no que temos de convir que é bastante desagradável. Além do mais, é praticamente impossível recriar o ambiente tradicional da quadra natalícia naquelas paragens.

Não é fácil comer-se bacalhau com batatas na noite da consoada antes de se sair para uma pescaria que durará toda a noite. Não se pode desejar um casaco de peles sem se pedir uma viagem paga à Europa, pois o abafo não pode ser usado em Ipanema, ou em Carrasco, ou em Montevideu, ou em Buenos Aires, porque aí o que dá jeito, e é mais conveniente, é a camiseta e o cai-cai.

Reside aqui um dos pontos cruciais nas dificuldades de se andar a encarnar o Pai Natal em paragens tão calorosas e de gentes tão acaloradas. É que, mesmo que seja de alpaca, o fato de Pai Natal é quente para quem dentro dele se tem de meter, afim de governar a vida por aqueles dias; é compreensível que ninguém conceba um Pai Natal de manga curta, ou de calções, assim como não se pode admitir um Pai Natal de cara rapada e de panamá, mas constitui uma verdadeira tortura a barba branca de algodão, mesmo que se chegue ao requinte de usar uma barba de linho, e é bom nem falar da violência do gorro debruado a pele. As reivindicações dos Pais Natais são, portanto, justas, ou antes, têm toda a razão de ser. Não se me afigura, no entanto, fácil dar-lhes satisfação. É, pelo menos, tão difícil como explicar aos meninos das favelas como é a neve, que sensação dá apalpá-la, e como os trenós deslizam sobre a sua superfície.

Quanto às condições de trabalho dos Pais Natais na América Latina, estamos conversados desde que vi três, de gorro e de barbas, com almofadas a darem-lhes a corpulência necessária à credibilidade, correndo como loucos no interior dum minúsculo modelo de marca de automóvel italiano, pelas ruas de Bogotá.

sábado, 13 de dezembro de 2008

O NATAL DO PAI NATAL

PENSEI QUE NÃO SE FALAVA assim ao Pai Natal, mas o homem repetiu, para que não me restassem dúvidas:
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- Se voltas a sair daqui da porta, apanhas uma palmada!
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O Pai Natal ficou meio amuado, meio medroso, como todos os miúdos a quem se promete pancada. Segurando os três balões de cores diferentes na mão esquerda, agitou violentamente o sino com a mão direita, de modo a se fazer ouvir por cima do barulho daquela rua comercial.
Por debaixo do fato vermelho e do algodão branco das barbas, o Pai Natal não tinha para mais de doze anos e muito menos para apanhar uma palmada. Se em vez de Natal estivéssemos no Carnaval, qualquer pessoa pensaria que se tratava dum miúdo mascarado.

- Ó filho, não vês que é um Pai Natal a fingir? - disse uma mãe a um filho mais incrédulo, mas não tanto que deixasse de acreditar que todos os anos há um senhor com um trenó carregado de prendas puxado por renas, que vem do Norte despejar presentes pelas chaminés.
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A voz tonitruante, ameaçadora, do comerciante lembrava a todos os que passavam que vivíamos o auge da grande saison da paz e do amor.
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- Pago-te para estares aqui à porta não é para andares a passear por aí. Se te apanho outra vez a afastares-te, não te pago e corro-te a pontapés!
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Aquele fato era, nitidamente, maior do que o corpo que o não enchia, o que se poderia atribuir ao planeamento correcto dum comerciante moderno que vestia o seu Pai Natal com roupa suficientemente grande para permitir o seu crescimento.
Não se percebia a razão pela qual o dono da loja não havia escolhido um Pai Natal à medida, mas também isso certamente se poderia ficar a dever a uma análise e estudo aprofundados de custos e benefícios, pois sem dúvida que um Pai Natal mais pequeno deveria sair mais barato e fazia o mesmo efeito.
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- Ó mãe, deixa ver o Pai Natal.
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Nessa altura, o Pai Natal dava ao sino, olhava para o outro lado da rua e afastava-se um pouco. Ao vê-lo assim proceder, era difícil não concluir que o Pai Natal tinha vergonha.
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- Ó mãe, o Pai Natal é um menino como nós? - perguntou uma menina.
- Ó filha, não! Não vês que este é um Pai Natal a brincar?
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Debaixo das barbas, o Pai Natal teve um sobressalto e olhou espantado. A brincar?! Das nove da manhã às sete da noite, de badalo e balões nas mãos, quer chovesse quer fizesse sol, durante uma semana inteirinha, era brincar? O Pai Natal não concordava. Parou de dar ao sino, enquanto a outra mão, vermelha das guitas e do frio, deixava fugir um balão que subiu até se perder de vista por cima dos prédios, arrastado pelo vento.
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- Ó mãe, olha um balão do Pai Natal....
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A pouco e pouco, o Pai Natal estava de novo longe da porta da loja a que pertencia, e junto do cigano que vendia pistolas à cowboy, com um cesto poisado à beira do passeio.
Era um velho cigano, todo vestido de preto, com um grande bigode branco que tinha uma grande mancha amarela de tabaco. Olhou o Pai Natal, riu, e disse numa voz profunda:
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- Queres uma? Eu dou-te. Toma lá uma, para tu brincares.
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Naquela noite, quando os meninos estavam já todos de pijama, depois de tomarem banho antes do jantar, houve quem visse um Pai Natal, com a barba de algodão branco a esvoaçar, presa por um elástico ao pescoço, andar pendurado nos tróleis e nos autocarros, a dar tiros para o ar com uma pistola de fulminantes.
E os meninos, muito penteadinhos, nos seus pijaminhas quentinhos, ficaram muito assustados quando as mamãs lhes disseram:
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- Se não comes a sopa, chamo o cigano e digo ao Pai Natal para não te dar nada.
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Se os meninos conhecessem esta história, tinham rido a bandeiras despregadas e pedido para nunca mais ninguém escrever contos de Natal.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A DESPEDIDA

O homem tinha dito:
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- Seja franco, doutor!
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O médico saiu detrás da secretária, vagarosamente, pôs-lhe uma mão sobre o ombro e quase sussurrou.
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- É cancro.
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- Quanto tempo, doutor? - perguntou o homem sem o olhar, mas com aquele grau de cumplicidade no tom de voz que antecipava que ambos sabiam bem do que estava a falar.

- Um ano, ano e meio, no máximo - respondeu o médico.

Saiu do consultório devagar, numa confusão de ideias e de sentimentos, observando aqueles com quem se ia entrecruzando com uma sensação danada de inveja e, ao mesmo tempo, de raiva. «Porquê eu?!», perguntava, repetida e impessoalmente, sem ter propriamente entidade competente a quem dirigir a questão.
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Caminhou longamente, lentos e penosos quilómetros, interrogando-se sobre se devia ou não partilhar este segredo com mais alguém ou se ele devia ficar circunscrito apenas ao seu mutismo e ao segredo profissional do clínico. Esteve num café, que acabou por abandonar irritado com o ruído das vozes, e, acima de tudo, com os risos e as discussões estúpidas. «Ano e meio», pensava nessa altura, «ou antes, um ano, porque se sobrar alguma coisa faço férias». Na pequena praça onde ficava o seu prédio tomou a decisão - não diria nada a ninguém e ocuparia o tempo que lhe restava a ser aquilo que em criança desejara para quando fosse grande.

A família, ao princípio, não estranhou, nem protestou, quando vendeu a sua quota no escritório. Toda a gente pensou que decidira antecipar a reforma, gozar os rendimentos, cortar com uma vida de trabalhos e relações que lhe assegurara mais do que suficiente para viver medianamente.
A grande surpresa foi quando, algumas semanas mais tarde, anunciou que iniciava, no dia seguinte, a sua actividade de motorista de praça.
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- O teu pai ensandeceu! - comentou sua mulher para o filho do casal.
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Imperturbável, durante meses, correu pelas ruas da cidade, conheceu o que desconhecia mas adivinhava, riu, foi quase feliz e chegou mesmo a fazer uma viagem, com emigrantes, para França, num serviço que lhe apareceu.
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Um dia, sem dizer nada a ninguém, deixou-se ficar em casa.
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- Não vais trabalhar? - perguntou a mulher.

- Despedi-me - anunciou sem mais comentários.
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Durante o resto da semana leu e foi ao cinema, durante as tardes, em casa, sem palavras.
Uma manhã, ficou excitado com a leitura do jornal. Vestiu-se rapidamente e saiu. Não almoçou em casa nesse dia e, à tardinha, quando regressou, entregou seis bilhetes para o circo à mulher e disse:
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- Gostava que amanhã fosses à minha estreia como palhaço. Podes levar quem quiseres.
Nessa noite, mulher, filho e nora reuniram-se em casa destes últimos, preocupados com o que se passava.
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- Depois da vergonha do táxi, isto! - desabafava a mulher.
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- Mas que necessidade tem ele de andar a fazer estas figuras? - perguntava o filho.
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- Nenhuma, enlouqueceu! - comentava a nora.
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Só os netos riram e bateram palmas, contentes, perante o constrangimento geral.
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- Ena, pá! Bestial! O avô é palhaço...
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Enquanto a companhia esteve na cidade trabalhou todas as noites. Segurava, nos intervalos, a escadinha de corda da equilibrista sempre que esta tinha de subir ao arame e, uma vez por outra, foi-se abaixo, entre dois números - uma ocasião por causa das dores, as restantes por a falta de tempo lhe apertar o peito. Ninguém deu por nenhuma dessas crises e, embora sem talento especial, não fazia mal o seu papel de palhaço pobre, dedilhando aceitavelmente uma viola nas partes musicais.
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Por mais de uma vez, depois de o circo partir, teve de ficar de cama, pretextando achaques ligeiros, para se refazer das dores. Quando Dezembro chegou, deu fortes sinais de inquietação e, uma manhã, desembrulhou, no regresso a casa, uma peça de tecido vermelho e um rolo de pelúcia branco e, virando-se para a costureira da família, que todas as quintas-feiras costurava na saleta, ordenou.
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- Vai fazer-me um fato de Pai Natal!
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Morreu, sem se despedir, no dia 26 de Dezembro, ao princípio da tarde. Sobre a cama e a sorrir para o fato de Pai Natal! Deixou inconsolável viúva, um filho engravatado, uma nora estúpida e um par de netos que o adoravam. Deixou, também, uma conta bancária a descoberto.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O CASAMENTO

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- O que se passa é que vocês são todas umas galdérias!
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A senhora, emplumada por uma estola de raposa prateada, abriu a boca esborratada de batôn pela comezaina, fez com ela um círculo perfeito, esbugalhou os olhos e disse:
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-Oh!
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O silêncio ampliou três vezes o redondo daquele «oh!».
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Mas ninguém disse mais nada, e foi no meio de estarrecido silêncio que, pálido e muito digno, de fraque e segurando luvas amarelas de pele de porco, o noivo abalou porta fora.
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Atrás deixou apenas destroços: a noiva, de branco até aos pés mas sem grinalda, soluçava. O pai da noiva desapertava os colchetes do vestido da desmaiada esposa, que amparava. As convidadas agarravam as tresmalhadas crias, lustrosas de veludos e meias de renda e sapatinhos de polimento. Os homens erguiam os ombros em ignorante interrogação, apertando os lábios em sinal de estupefacção.
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O bolo, de diversos pisos, adornava para o lado da faca que ficara cravada, a quatro mãos, pelos nubentes. Só um miúdo, de jaquetinha e calça de fantasia, colarinho branco de goma, sapatinhos de verniz, viu da janela do primeiro andar onde ficava aquele salão de aluguer - banquetes, casamentos, baptizados - o noivo desaparecer, dobrando a esquina, impecável no seu traje, com o braço hirto empunhando o par de luvas amarelas.
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Tudo começara quando o novel casal se preparava para cortar o bolo de casamento, em pose, com o fotógrafo a pedir «um pouco mais para a direita». Embevecidas, as famílias das duas partes contratantes, as convidadas e convidados, observavam, preparados para a salva de palmas, empanturrados de peru, arroz de marisco, rissóis de camarão e leitão frio, impantes de cup e ansiosos pelo espumante que provocasse o necessário flato.
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Nessa pausa breve, destinada a sorrisos benevolentes, ao descanso da orquestra, e à saída das crianças debaixo das mesas, o noivo empurrou a sua consorte, perfilou-se e, dirigindo-se à sua fiel companheira do bem e do mal, da doença e da saúde, até a morte os separar, proclamou, alto e bom som.
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- Você é uma grandessíssima galdéria!
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Entenda-se que não foi esse o nome que utilizou. O que ele disse foi bastante mais ofensivo, ainda que muito mais económico em sílabas - apenas duas - e parco em letras, somente quatro.
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Foi então que a senhora de estola de raposa prateada, com a boca cheia de empada, arregalou os olhos e, talvez com o ouvido prejudicado pela mastigação, perguntou:
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- O quê? Mas o que é que foi?
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E o noivo, muito didáctico e generoso, logo repetiu, englobando na explicação todas as senhoras presentes:
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- Foi que vocês são todas umas galdérias!
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Ninguém contestou. Em simultâneo, a noiva soluçou, perdendo flores de laranjeira, a mãe da noiva despenhou-se com fragor, o pai da noiva rugia.
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- Dou cabo dele! Que vergonha!
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Mas, pelo sim, pelo não, sempre foi perguntando em voz baixa:
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- A Teresinha fez alguma coisa?
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Seguiu-se o pandemónio, iniciou-se a debandada, deixando no meio dos despojos das carcaças de peru e de cabeças de leitão com laranjas na boca as duas famílias destroçadas de um casal que não consumaria a noite de núpcias na data devida.
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Uma semana mais tarde, iniciava-se a romaria: casa a casa, de cada convidado, o pedido formal de desculpas e a explicação devida. Segundo a versão do jovem casal, um grupo de amigos do noivo dera-lhe a beber uma taça de espumante onde diluíra cinza de charuto, o que teria efeito alucinogénio.
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Quanto ao desfecho de todo este caso, muitos anos depois de deixar de usar jaquetinha com calça de fantasia, posso eu testemunhar: os noivos foram muito felizes e tiveram muitos meninos.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O SOBRETUDO

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ERA AMARELO-TORRADO, macio, leve e quente. No seu interior, uma discreta etiqueta garantia «100% caxemira». Caía a direito, depois de ligeiramente cintado, e, só por si, conferia distinção e estatuto a quem o vestisse. Era um belo sobretudo.
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Para além da sua função protectora e calorífica, era um distinto tapa-misérias. Não importava o que se vestisse por baixo, nem que fosse um pijama de flanela às riscas, o sobretudo garantia ao seu dono o aspecto de quem vem dum elegante night-club, o ar de quem parte para uma selecta recepção numa embaixada, o porte de quem carrega sobre os ombros importantes decisões a tomar ou de quem conhece decisivos segredos de Estado.
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Durante meses, namorara aquele sobretudo na montra da elegante alfaiataria que o oferecia ao mercado. Chegara mesmo a entrar, a tocar-lhe e a prová-lo, mirando-se frente ao espelho com pequenas piruetas e pondo uma perna à frente da outra, agora a esquerda, logo a direita.
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Desistira, no entanto, face ao preço.
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- Mas repare Vossa Excelência que é de caxemira pura.
- Eu sei! Só que não tenho dinheiro para o comprar...
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O vendedor guardou então prudente silêncio, de quem não comenta, não confirma nem desmente.
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- Quando Vossa Excelência decidir, cá está à sua disposição.
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Entretanto, o frio apertava. Os jornais falavam de «Inverno rigoroso», de «frente de vento gélido proveniente da Sibéria», de «gente a morrer de frio sob as pontes de Paris», «alemães retidos pela neve nas auto-estradas» e «velhos a tiritarem pela Europa fora».
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Fazia-se ao frio ajeitando ao pescoço a gola da sua leve gabardina. Uma noite, em casa, depois do terceiro espirro consecutivo e de mais um ataque de tosse, a mulher decretou:
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- Tens de comprar um sobretudo!
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Concordava. Mas a comprar, o sobretudo só podia ser um - aquele, o sobretudo.
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Durante o fim-de-semana, enchouriçado em camisolas de lã e uma leve gabardina a tapar misérias, passou pela montra da elegante alfaiataria. Levava a mulher e um dos filhos consigo. Mostrou-lhes o sobretudo, anunciou-lhes o preço, falou-lhes da leveza que já experimentara ao prová-lo, exagerou quanto à onda de calor que sentira, exaltou tanto as qualidades e lamentou tanto o preço que a mulher disse:
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- Homem, compra o sobretudo. Também não é uma coisa que se faça todos os dias, e já viste os anos que um bom sobretudo como este te vai durar?
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Na semana seguinte aprofundaram o tema. Discutiam agora os aspectos orçamentais. Estabeleciam prioridades, coisas que passariam para mais tarde, o carro que se trocaria só no Verão antes das férias de Setembro. Quando se chegou a sábado, estava decidido e tornara-se possível – na segunda-feira, encontrar-se-iam depois do trabalho de cada um e, às seis e meia da tarde, iriam juntos comprar o sobretudo. No seu entusiasmo, ele não resistiu a dizer:
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- A loja fecha às sete, mas meia hora chega perfeitamente. Vais ver. Assenta como uma luva, parece que foi feito por medida para mim!
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A segunda-feira passou-se vagarosamente, as horas pareciam ter mais minutos do que de costume. Saíra de manhã sem gabardina para poder à noite regressar com o sobretudo vestido, por isso fora almoçar transido. Dez minutos antes da hora marcada já estava à porta do estabelecimento. A mulher atrasara-se e isso exasperava-o. Entraram na alfaiataria eram dezoito e quarenta – vinte minutos antes do fecho.
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O sobretudo ficava-lhe, realmente, tão bem como dissera. O vendedor chamava ainda a atenção para outro factor positivo:
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- E assim solto, com este cair, o senhor se quiser ainda pode vestir colete ou pulôver.
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Realmente, uma maravilha. A mulher parecia regressar a casa com outro homem. Em casa, penduraram numa cruzeta, no guarda-fato, o precioso sobretudo. Tudo para não deformar. Ele anunciou:
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- Amanhã levo a gabardina. Estreio o sobretudo na quinta-feira, naquele almoço importante que tu sabes.
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Quinta-feira saiu impante. O sobretudo dava-lhe, efectivamente, o aspecto de um senhor, como logo um colega comentou de manhã, no elevador da companhia onde trabalhava.
Saiu com tempo e chegou ao restaurante antes dos outros participantes no almoço. Esperou no bar, bebendo um porto seco, sem despir o sobretudo. Quando os outros chegaram teve alguma dificuldade em separar-se do sobretudo, que o empregado lhe pedia.
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- Não tem chapinha?
- Não se preocupe, que não é preciso – respondeu o empregado.
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O almoço correu bem. Levantaram-se da mesa a rir e pararam a dizer graças junto ao bengaleiro, um a um vestindo os abafos. Quando chegou a sua vez, olhou assustado para a gabardina azul e sebenta na gola que o empregado lhe estendia.
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- Não é isto! O meu é um sobretudo amarelo-torrado.
- Mas... então?! Não está cá mais nada. O senhor tem a certeza?
- Homem, até lhe perguntei se não tinham chapinhas numeradas.
- Olhe que isto nunca nos sucedeu.
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Saiu no meio da indiferença dos outros. «Deixe lá que fez uma boa acção», gracejava um, «vai ver que aparece», animava outro, «homem, sobretudos há muitos», filosofava um terceiro, e o último sentenciou «a saúde é que é importante. Antes isto do que partir uma perna».
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Despediu-se, desceu pela boca do metropolitano, anónimo e insignificante, de fatinho de meia estação, com as lágrimas nos olhos e a tiritar de frio. Desde esse dia que ninguém o viu usar sobretudo, nem naquela semana em que nevou no Ribatejo, o que não sucedia desde o início do século.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

OS MANOS

OS OSSOS QUASE ROMPIAM a pele do velho. Deitado, sem mover a cabeça, fixava o tecto horas a fio, ou fechava os olhos encovados nas crateras das maçãs do rosto, convertidas em picos alpinos pela excessiva magreza.
Quando o irmão entrou no quarto, o velho, estendido na cama, disse:
- Mano, vou morrer!
Na antecâmara, que servira de quarto de vestir, um montão de velhas cochichava todo o santo dia, sempre lestas a acorrer aos gritos irados do moribundo ou a deixarem-se dormitar agora e depois, num aparente concurso de cabeçadas. Havia instantes em que o silêncio era absoluto.
O velho tinha oitenta e nove anos e parecia ainda mais magro porque lhe tinham tirado a dentadura postiça. O irmão tinha oitenta e quatro anos e ainda caminhava direito por aquela casa onde ambos haviam nascido e brincado, no início do século.
- Mano, vou morrer!
Quem pensa que os velhos querem morrer, a partir de uma certa idade, engana-se. Nem todos. Este, por exemplo, mostrava um evidente receio da morte.
- Mano, vou morrer!
Algumas das velhas espreitavam em cacho, da ombreira da porta, e choramingavam de cada vez que o moribundo lançava o grito anunciador do que ia fazer a seguir, para o outro velho, que fora chamado e se perfilava, muito direito e minúsculo, à cabeceira.
Haviam brincado juntos, tinham-se batido, atravessado juntos muitas outras mortes e alegrias, estado de relações cortadas e agora encontravam-se lado a lado pela última vez.
- Deixa lá – disse o velho que acabara de entrar para acompanhar os últimos instantes do irmão –, todos teremos de morrer. Mas pode ser que estejas enganado e não morras, pode vir aí o doutor Umbelino e curar-te.
- Mano, lembras-te do doutor Umbelino? Sabes que idade tinha quando nos obrigava a tomar o óleo de fígado de bacalhau e tratou a tia Leopoldina da pneumónica?
- O doutor Gonçalves devia ter uns quarenta anos quando nos fazia isso.
- E então como queres que venha aí? Hoje que idade teria? Cento e vinte? Não pode ser! Mano, vou morrer!
- Olha, se morreres agora eu também não demorarei muito. Já vivemos o bastante. Se morreres agora, eu morrerei a seguir. Sabes, quando se morre é como fazer uma grande viagem. Fecham-se os olhos e morre-se. Não vai doer. A gente morre assim sem dar por isso, fechamos os olhos e morremos. Li que quando se morre entra-se numa grande luz, muito forte, e ela leva-nos, devagarinho primeiro, depois com muita velocidade, vamos por aí fora com a luz, a ver coisas muito bonitas...
- Que luz é essa, mano? De que luz falas?
- Da luz que nos leva quando morremos. É como viajar, mas em vez de ser de carro ou de comboio é de luz, e quando começamos a afastar-nos o suficiente da vida entramos noutra luz ainda mais brilhante e mais forte, e a luz fica então com uma velocidade assim como a dos aviões a jacto e leva-nos finalmente para o outro mundo
- Mano, que luz é essa? Sabes quem penso que é essa luz?
- Quem? Diz lá quem?
- A Luz Fernandes!
- A Luz Fernandes? Qual Luz Fernandes?
- Mano, aquela que namorámos os dois e que morava no pátio, ali em cima, e que levantava as saias e não trazia nada por baixo e com quem fazíamos aquelas coisas na escada do Ramos da capelista, lembras-te? Até me zanguei contigo quando descobri que também lá ias... É essa Luz Fernandes, mano?
O irmão, pequenino no seu fato de linho, de corrente de ouro atravessada no ventre inflado, ficou ainda um pouco mais, mas o irmão não reagiu. A coberta subia e baixava com a respiração e as velhas espreitavam agora todas à porta, e o velho, agarrando o chapéu creme e a bengala de bambu, de castão de prata, saiu devagarinho, depois de ter pedido para o avisarem «se acontecesse alguma coisa».
As velhas mandaram-no chamar ao fim da tarde. O irmão morrera sem voltar a abrir os olhos. Mas morrera a falar. Elas não perceberam o quê. Morrera a rir e a falar numa tal Luz Fernandes...

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

CENAS DA VIDA CONJUGAL

- O que farias bem era deitar-me fora e comprares outro marido em bom estado, amanhã.
- Estás louco, põe-te bom. Vais ficar bom e vamos tentar de novo.
A cabeça parecia estalar ao homem, com dores e pressões internas que não o deixavam quase pensar, sentindo-se unicamente melhor com os olhos fechados e com a cabeça na almofada, o corpo aquecido sob as cobertas da cama.
- Para que sirvo eu, assim?
- Homem, porque estares a mortificar-te e a fazeres-me sofrer a mim?
A ideia ganhara forma na sua cabeça dorida. Apetecia-lhe ficar assim, de olhos fechados, a dor a latejar, as têmporas a estalar, o calor da cama, sozinho, sem ruídos em casa, sem crianças a fazerem barulho, sem o toque do telefone, sem os saltos altos da mulher a matraquearem o soalho envernizado. Queria que o deixassem sofredor, dorido e abandonado.
- Deita-me fora e arranja um gajo em condições, amanhã.
O dia crescia em horas desde que estava doente. As dores não permitiam que dormisse, a vida passava diante dos olhos cerrados e encovados e os dias escoavam-se inúteis, sem vida nem objectivo, sem amor nem esperança.
- Porque não me internas tu?
- Parece que não sabes como estão os hospitais.
Para o bem e para o mal, na saúde e na doença, dissera muitos anos antes o padre. Mas hoje, nada disso fazia sentido. A mulher arranjava-se de manhã, cuidadosamente, e saía para o trabalho, perfumada e atraente, depois de horas sofridas ao lado do seu corpo sem utilidade. E ele ficava a roer-se, de ciúmes e de dúvidas, de interrogações, de vontade de não ser enganado, de nada ter que ver com ela, livres os dois para o que cada um entendesse.
- Não estás melhor?
- Não, não estou melhor.
- Vamos ver o que o médico diz amanhã. É dia de consulta, amanhã.
Mas os dias e as consultas iam passando e não estava melhor. Pelo contrário – cada vez mais lhe apetecia fechar os olhos e deixar correr. «Abandonem-me aqui», pensava «deixem-me aqui a apodrecer, como um grande desgraçado, com a barba a crescer, os olhos a encovarem-se, o sorriso a rarear, os ombros a responderem cada vez mais a todas estas perguntas estúpidas que me fazem e a que não me apetece responder.»
- Amanhã arranjas um gajo em condições e deitas-me fora, tá bem?
- Homem, não me castigues assim... Sabes que te amo, que te quero bom depressa, e que vivamos os dois até ao fim dos nossos dias sempre juntos.
A ofensiva que desencadeara não resultava. A mulher não o deixava, as dores não abrandavam, o ciúme não se desvanecia, os dias arrastavam-se cada vez mais inúteis, mais estéreis, mais sem sentido ou justificação para o que quer que fosse.
- Deita-me para o caixote do lixo, arranja um gajo em condições, para ti!
Era uma insistência estúpida e sem nexo. Era uma contradição para com os desvelos quase maternais que a mulher desenvolvia, diariamente para que pudesse sentir-se melhor. Era um insulto para a mãe dos seus filhos, uma mulher de trabalho que se sacrificava desde as seis e meia da manhã, todos os dias, deixando tudo feito em casa e partindo fresca para o trabalho.
O médico veio no dia seguinte. Respirou fundo, tossiu, arregalou os olhos sob a luzinha da lâmpada, mostrou a língua e estendeu-se de novo na cama. O médico interrogou a mulher e foram os dois para a sala de jantar, passar receitas, discutir sintomas, essas coisas. Ficou deitado a apertar o pijama, os dedos a tremerem nos botões, um formigueiro na nuca, um desejo de se deitar e ficar só, de novo. Tacteou o chão com os pés, em busca dos chinelos, a fim de poder ir à casa de banho. Levantou-se trémulo, segurando-se aos móveis, sem ruído. Quando, no corredor, olhou para a sala de jantar viu a mulher e o médico. Ficaram os três a olharem-se uns para os outros, sem palavras. Acabou por ir à casa de banho e regressou à cama, apagou a luz e ficou quieto, sem mover um músculo. Olhou o tecto sem o ver. Pela primeira vez em muitos meses não sentia dores, nem pressões sobre os olhos nem a nuca a latejar.
O silêncio, na casa abandonada, era completo. Pela primeira vez em meses longos e seguidos se sentiu bem e adormeceu convencido de que ao fim do dia ninguém regressaria àquela casa onde, finalmente, poderia apodrecer em paz.