sexta-feira, 24 de abril de 2009

LUCUBRAÇÕES À VOLTA DO CÃO DA VIZINHA QUE DEBAIXO DA CAMA O TINHA

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TENHO UMA VIZINHA que tem um cão, mas ignoro se debaixo da cama o tem, como a velha que tinha um gato e debaixo da cama o tinha.
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A minha vizinha vive só, com o maldito cão, o que abona o animal porque a vizinha é interessante, humilha os homens porque parecem andar distraídos, e justifica que a vizinha diga que quanto mais conhece os homens mais gosta dos animais.
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Tudo isto vem a propósito de a minha vizinha ter um cão.
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O facto não teria outro significado se o cão da minha vizinha não desse cabo da paciência de quem passe o dia em casa, na vizinhança, o que me acontece com frequência, porque, na ausência da dona, o cão ladra e uiva incessantemente, o que ocorre todo o santo dia porque a referida pequena sai de manhã e volta à noite.
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Ontem pensei em cozinhar um pastel de estricnina e atirá-lo para o terraço onde o cão fica confinado quando a minha vizinha se ausenta, para voltar às tantas com aquele arzinho de quem quanto mais conhece os homens mais gosta dos animais.
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Não pretendo de modo algum que esta seja a crónica de uma morte anunciada. Se porventura eu não resistir e vier mesmo a envenenar o cão, ou alguém acabar por o fazer, não tirarei glória nem provento de antecipadamente ter falado no fim do cão. Para que não seja uma crónica com esse objectivo, e muito menos possa parecer um álibi antecipado, não posso perder este ensejo sem produzir algumas lucubrações breves sobre a natureza animal.
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Começarei pela minha própria, a fim de atenuar a má impressão certamente causada por esta confissão pública de predisposição assassina. Um bolo de estricnina rapidamente deglutido pelo animal deveria levá-lo à morte em aproximadamente dezassete minutos, isto calculando a porção do veneno em proporção ao peso do bicho, segundo alguns estudos médico-legais. Ao fim de algumas convulsões, e de um certo padecimento, o animal libertar-se-ia de vez deste sofrimento diário de solidão e saudade com que a dona o penitencia, eu libertar-me-ia do sofrimento que os seus latidos exasperantes me provocam, o que para nós dois seria de grande alívio, além de eu estar convencido de a digníssima vizinhança hipocritamente aplaudir, em silêncio, aquilo que descreveria como triste desaparecimento do simpático animal.
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Tendo eu em vista que um assassínio, não interessa a vítima nem importa a forma que envolva, será sempre o acto de apressar um processo natural, o qual nos cães é, de resto, muito breve, poderia este argumento ser tomado em consideração para aliviar as penas que me quisessem imputar por tão nefando acto.
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Mas continuando a imaginar coisas do comportamento animal, creio eu que a dona do cão, minha vizinha, graças ao meu tresloucado acto, como seria, descrito pelas gazetas, poderia libertar-se desta fixação em que vive, e descobrir, ela própria, que, independentemente das delícias que um canídeo inconscientemente possa provocar, um homem é um homem e um cão é um bicho. Se apesar de tudo ela não quisesse reconciliar-se com um parceiro da sua espécie, podia sempre comprar um canário ou um periquito, os quais, ainda que incapazes de aquecer a cama seja de quem for, garantiriam uma transição tranquila e sem danos à sua proprietária e digníssima vizinhança, na qual me incluo. Tenho, por outro lado, bem presente que o cão é o melhor amigo do homem. Ensinaram-me isso à força, na terceira classe, e toda a minha vida levei isso em consideração. Mas a verdade é que o cão, sendo um animal doce e inteligente, não tem personalidade. Batem-lhe, e ele lambe as mãos de quem o pune. Castigam-no, e ele submete-se. Prendem-no, e ele dá ao rabo. Permitem-lhe ousadias de aquecer camas e ele uiva, ladra, late e fica assim ululante todo o santo dia.
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Como já disse, não sei se esta minha vizinha tem à noite o cão debaixo da cama, como a velha que tinha um gato e debaixo da cama o tinha. Mas o gato, nunca podendo vir a ser o melhor amigo do homem, é um felino com personalidade que merece respeito.
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O problema que se me põe, com a concretização deste premeditado canicídio, é o da gratidão do cão. Porque é bem possível que se eu vier a envenenar este adorável bichinho da minha vizinha ele me fique tão grato que, quando eu próprio der a minha alma ao Criador, a alminha ululante do cão da minha vizinha me persiga nos meus passeios tranquilos e entediados pelo Céu. Será, sem dúvida, uma acusação terrível porque, nesse caso, terei de explicar a todas as boas almas que ganharam aqueles reinos que aquele tinha sido um cãozinho duma vizinha que talvez debaixo da cama o tinha, até que eu lhe ofereci um pastelinho, por mim próprio cozinhado, à base de estricnina.
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Estão a ver que esta história, mesmo com a gratidão do cão, e todos os diminutivos que eu possa vir a arranjar, não é uma história que se possa contar no Céu. De certeza que lá ninguém vai gostar.
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Estão a ver o que pode fazer à cabeça dum pacato cidadão o cão duma vizinha?
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Mais tarde, darei notícias se acabei, ou não, por decidir envenenar o cão da minha vizinha, que, se calhar, debaixo da cama o tinha. Para já, o que vos posso garantir é que prefiro o gato que era da velha e que debaixo da cama o tinha.
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Lisboa, 1987