domingo, 8 de junho de 2008

Uma carta de amor

VESTE SEMPRE UMA CAMISOLA DE LÃ, mesmo de Verão, o que, além de inevitavelmente ter de lhe fazer calor, lhe dá um ar de refugiado de alguma parte, acabado de chegar, sem bagagem e sem destino.
Está sentado, quase imóvel, no banco de lona articulado, sem mover a cabeça numa ou noutra direcção, acompanhando apenas com os olhos este ou aquele que por ali passam, com a pressa dos selos fiscais, das fotos á là minute, ou de mais um impresso que sempre falta à boca dos guichés.
Repousa as mãos afiladas, de dedos longos e postura delicada, numa prancheta de cartão prensado, cor verde-garrafa, e os olhos observam desinteressados o que acontece em cem graus de visão, os quais se recusa a aumentar, aconteça o que acontecer.
Passou o suficiente e calcorreou o bastante para ter a prata no cabelo e os sulcos na pele que só o arado da vida abre no coiro de cada um. Distinto e distante, sabe construir a sua superioridade da altura daquele mocho quase rasteiro, e quem nele atenta ou com ele fale fica com a sensação de ter à sua frente alguém a quem a vida pregou uma partida, mas que nada tem a ver com o sítio onde se posta, as pessoas que lhe falam, o dinheiro que lhe pagam ou a roupa que veste. Tem aquela idade indefinida que vai aos quarenta aos sessenta, sem que ninguém possa dizer ao certo quantos anos tem, e cumpre religiosamente um horário quer chova ou taça sol, debaixo da arcada onde vende os seus serviços, com ar de inspector de polícia ou de chefe de gabinete ou, melhor ainda, pela sua distinção, com ar de embaixador.
Preenche impressos a cinquenta escudos, escreve cartas a setenta e os analfabetos são o seu mercado. Mas, principalmente, preenche impressos, postado que está em posição fronteira ao Arquivo de Identificação, onde mesmo os analfabetos têm de ter uma identidade e um cartão que a prove com um número, uma cara e uma impressão digital. As cartas são menos frequentes, mas todos os dias tem pelo menos uma que escrever, o que faz sem emendas e em silêncio, após alguns minutos de conversa com o remetente para conhecer o conteúdo e o destinatário. Mostra-se, mais do que insensível, impermeabilizado aos assuntos que lhe sugerem para tema das relações que alinha em letra pontiaguda e agressiva, consoante a sintaxe que conhece e a vulgaridade das vidas sem história, ou das dificuldades sem grandeza de que lhe dão conta.
Pedem-lhe, normalmente, para escrever que tudo vai bem, que as crianças estão na escola, que vivem numa parte de casa mas que em breve se vão mudar, que arranjaram um andar só para eles ou que em breve começarão num emprego muito melhor. Quase sempre as coisas estão difíceis mas todos dizem que vão melhorar.
Outras vezes, nem isso. Apenas quinze linhas a dizer que tudo bem e que no Natal os não esperem, mas que na Páscoa vamos a ver. São cartas tristes, não por anunciarem algo de dramático, mas por reflectirem a desesperança de quem as encomenda. Começam, quase sempre, por «Maria», ou por «Querida Mãe», ou ainda por «Queridos Pais», e quem é que vai escrever à mulher ou aos pais, a dizer o que realmente lhes vai na alma? São meros registos de «nós por cá todos bem», o que raramente é verdade mas que serve para tranquilizar, e até dar orgulho a quem os recebe.
Muitas vezes pensa em quem vai ler o que está a escrever. Naturalmente que os analfabetos escrevem cartas uns aos outros. Não faria muito sentido um analfabeto escrever uma carta a um pai ou a uma mãe que sabem ler. Portanto, tem quase sempre a preocupação de as suas cartas manterem a oralidade que faz sentido não a quem as vai ler, mas a quem as vai escutar. Tem consciência que, no meio, há um codificador de sentimentos, que é ele, que escreve sinais num papel que alguém no destino descodificará em voz alta, soletrando o mais depressa que pode aquela caligrafia inclinada e ossuda.
Mas a maioria do seu trabalho é, já se sabe, com os impressos, nome, apelido, morada, nome do pai, nome da mãe, profissão, estado. É com isto que, aparentemente, se governa, escrevendo maiúsculas em quadradinhos verdes do computador, que regista tudo o que nós, Portugueses, somos ou, as mais das vezes, o que deixámos de ser.
No outro dia teve um sobressalto. Pediram-lhe para escrever uma carta de amor. Não lhe pediram assim. Foi um freguês, um homem ainda novo, de pele escura, com um endereço e código postal para o Sul, que lhe disse.
- Tenho uma carta para vossemecê escrever. Quanto é?
- Setenta escudos até duas páginas. O que é que quer dizer na carta?
- É para uma rapariga. Não quero dizer nada de especial. Não tenho nada para dizer. Quero só mandar-lhe dizer que gosto dela e penso nela todos os dias. Pode ser?
Sorriu, olhando demoradamente a cara morena que tinha à sua frente e que o olhava com ansiedade, e respondeu:
- Volte daqui a uma hora que já deve estar pronta. Vamos ver se sou capaz.
Depois, agarrou num velho bloco cujas páginas já iam em metade e tirou uma velha caneta de tinta permanente da pasta, guardando a esferográfica que usava nos impressos, e pôs-se à escrita, começando: «Meu amor.» Escreveu uma página e outra e outra, dos dois lados das folhas, até a caligrafia saía diferente, com a letra menos inclinada e mais arredondada até acabar «...custa-me viver assim, longe de ti, a pensar no que estarás a fazer em cada momento. Não me sais do pensamento. Quando estivermos juntos não nos separaremos mais. Amo-te».
Quando o rapaz voltou, perguntou-lhe o nome e assinou a carta. Escreveu cuidadosamente o envelope, com destinatária e remetente, e entregou-lho, sem o fechar, com um sorriso feliz:
- Pronto. Meta no correio. A mim, você não deve nada.
E quem por ali estivesse a observá-lo, na sua camisola de lã, as mãos delicadas repousando na prancheta de cartão verde-garrafa, sobre os joelhos dobrados pela posição no banco de lona articulado, descobrir-lhe-ia, na cara quase sem expressão, e nos olhos aparentemente desinteressados, um sorriso e um brilho que, sendo quase indecifráveis, se poderia apostar que eram de felicidade.

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