sexta-feira, 18 de julho de 2008

Os gansos do silêncio

PUS DE LADO O SUPLEMENTO literário que acabara de ler e meditei, seriamente, como convém a um leitor atento de qualquer suplemento literário.
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O meu primeiro movimento foi o de agarrar num lápis e fazer um círculo ao redor da mesma palavra em três trechos diferentes, de modo a não me restar qualquer dúvida.
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O suplemento publicava excertos de livros no prelo de autores conhecidos e em três diferentes textos eu encontrava a mesma palavra, em contextos diferentes, é verdade, mas que não deixava de ser preocupante porque se tratava de um substantivo, feminino, ainda que numa das três circunstâncias fosse utilizado o diminutivo, tudo muito singular.
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Olhei os três círculos em páginas diferentes, mas sequentes, e li «ginja», «ginja», «ginjinha». Fiquei, portanto, preocupado com o peso da ginja na literatura portuguesa e decidi que tinha de comprar aqueles livros logo que chegassem aos escaparates, não só pelo apreço que nutro pelos respectivos autores, mas também para descobrir se as ginjas eram com elas, ou sem elas, questão a que os truncados nacos de prosa não respondiam.
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Fiquei, decerto, por associação de ideias, a pensar no gosto ingénuo de anos atrás em se ir aos Restauradores beber a melhor ginja de Lisboa - ao que se dizia - e a estranha experiência que era ficar a disparar caroços para o passeio, desde o balcão apinhado, no barzinho superlotado e estranhamente silencioso num fim de tarde de domingo de futebol. Esperava-se então pelas edições dominicais dos vespertinos que publicavam os resumos dos jogos, a classificação e os comentários e entretinha-se a espera com ginjinhas e «piratas» na Praça dos Restauradores, que, de repente, era despertada pelas sapatilhas ágeis dos ardinas, que, se fossem cronometrados, teriam batido o recorde dos cem metros, ainda que sem direito a homologação, porque corriam a descer pelo percurso sorna do Elevador da Glória, cuja calçada se convertia assim em zarabatana, lançando aqueles dardos humanos e gritantes pela praça fora até à porta do Cinema Condes.
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Mas a Rubi, no meio de tudo, fascinava-me. Não pela sua ginja espessa, sangue-de-boi, com o fruto ressequido e alcoolizado no fundo, mas pela sua fauna silenciosa e gesticulante. Era como se tratasse de um caçador submarino – mergulhava, entrava naquelas caras vivas, expressivas, dolorosamente expressivas de quem quer comunicar o melhor que pode - a mais de dez braças, no mundo do silêncio. E o contraste era tanto maior quanto mesmo ali ao lado, no velho Palladium se discutia apaixonadamente, pelo meio das carambolas do primeiro andar, e no lusco-fusco da Praça dos Restauradores havia gritos desencontrados e velhos amarelos da Carris de circulação apanhados em andamento, com direito a acabar a conversa antes da grande viagem, cuja partida era dada - subentendia-se, claro - por alturas do Lourenço & Santos ou, para evitar falsas partidas, logo a seguir aos gelados do Italiano.
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A Rubi era o fundo de tudo isso. A sua ginja, ou ginjinha, naqueles domingos à tarde, que se assemelhavam ao fim de um recreio, com as correrias das partidas e chegadas e a angústia dos desencontros, era o pretexto para a reunião de uma das mais curiosas e ignoradas tertúlias que este país já teve - a dos surdos-mudos, quase todos casapianos, de ganso na lapela, falando com a maior veemência que possam imaginar, de coisas que sabe Deus quais.
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Podem crer que era comovente ficar a cuspinhar caroços de ginja para o passeio, naquela bolha de silêncio na hora mais ruidosa e empenhada da Praça dos Restauradores, naqueles fins de recreio de esperanças e desesperanças sem conseguir adivinhar as paixões e os segredos daquele vocabulário gesticulante e silencioso.
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Era como viajar no interior dum batíscafo, pelo leito dum lago, agitado, sem conseguir deixar de olhar ou perder um gesto daqueles patéticos gansos do silêncio.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

A revolta de quem é de V. Exas. tanciosamente

EM PLENA CRISE DE CRIAÇÃO telefonei a uma amiga que vive em Nova Iorque e perguntei-lhe:
- Se tivesses que escrever um texto para a Eles e Elas, que é que tu escreverias?
- Contava-lhes uma boa história que se tivesse passado comigo ou simplesmente esquecia-me, metia-me no avião e vinha a Nova Iorque ouvir Woody Allen tocar clarinete na terça-feira que vem.
- Não posso - respondi eu -, tenho de acabar a preparação do Jornal das Nove no Segundo Canal da Televisão, e se fizesse isso nem crónica na revista nem notícias na televisão.
- E daí? - perguntou a minha amiga.
- Daí, nada - respondi eu -, os leitores ficavam mais tranquilos, os espectadores menos furiosos e eu mais contente comigo próprio. Esse é o drama.
- Onde está o drama?
- O drama está em quererem obrigar-me a fazer coisas que não me apetecem. Na TV tenho de escrever e dizer às pessoas as notícias do dia, na revista querem que escreva uma coluna de opinião e eu não quero saber de notícias nem ter opiniões, entendes agora?
- Okay, entendido. Por isso, mete-te no avião e vem ter connosco. Vamos jantar ao Elain's, pode ser que lá esteja o Norman Mailer, vamos a um espectáculo na Broadway, vamos ouvir o Woody e...
- ... e depois não posso voltar. A directora da revista mata-me, que é o melhor que me pode acontecer, porque se sobreviver na Televisão ficam a tratar-me abaixo de qualquer cão dum mineiro moçambicano negro que trabalhe na África do Sul.
- Então escreve uma boa história.
Mas eu não quero escrever uma boa história e, de resto, querem que eu escreva uma coluna de opinião.
- Então em vez de tudo isso o que é que gostavas de fazer?
- Justamente o que te vou dizer: gostaria de escrever diálogos para personagens de séries de TV, precisamente aquilo em que estou a transformar este texto que, definitivamente, quando acabado, não será uma coluna de opinião. Depois, em vez de ir a Nova Iorque jantar com o Norman Mailer e ouvir o Woody Allen, já ficava satisfeito de ir à Costa da Caparica tomar uns copos com o Cardoso Pires e rir-me com o Raul Solnado e, depois, voltar para Lisboa, e em vez de ler o noticiário fazer um anúncio a uma pasta de dentes disponível e, se tudo isto estivesse a sair bem, acabar por ir a Madrid ouvir a Olga Ramos, comprar a Hola em vez dos semanários de Lisboa, ler o Manuel Fraga Iribarne em vez do Francisco Lucas Pires e a Elena Flores em vez da Helena Roseta. Se queres saber o que eu gostava de fazer, era isto.
- Então porque não fazes?
- Porque não posso. Tenho de ceder às solicitações. Vou ter de dizer às pessoas as notícias da noite sem lhes contar o que aconteceu durante o dia e terei de escrever um texto que não sendo uma coluna de opinião será publicado pela Eles e Elas como uma coluna escondida com opinião de fora.
- Então, recusas?
- Não, aceito. Mas ainda há momentos a Madonna me dizia «Papa, don't Preach», e eu não vou pregar sermões, mas tenho de mostrar que sou de algum modo ajuizado porque é isso que as pessoas esperam que eu seja. Se eu não fosse ajuizado não te estava a telefonar para Nova Iorque, a pedir a tua opinião, tinha fechado os olhos e inventado para consumo próprio que fugia com a Madonna, para ela imitar só para mim a Marilyn, para dizer com aquela vozinha de rainha-cláudia «Papá, não pregues sermões» e tentaria escrever coisas mais divertidas do que a Morte de Um Caixeiro-Viajante, e quando visse essas coisas representadas no Parque Mayer convencia-me que não era o Arthur Miller e que a Madonna não é a Marilyn e que a única coisa que têm em comum é não gostarem de usar cuecas, e por fim atraiçoava a Madonna com a Hannah sem o Michael Caine e o Woody Allen saberem e...
- E estás mas é louco. Afinal, que vais fazer?
- Que remédio, vou acabar esta crónica. Vou acabá-la como um toureiro que despacha de uma estocada um touro que não presta para a muleta. Vou assegurar-me que não queiram que eu escreva mais. Vou beber um longo, longo uísque. Vou ficar sozinho em casa. Vou fechar os olhos e pôr-me a ouvir o Luciano Pavarotti e vou tentar esquecer a Madonna, enquanto posso.
- É tudo?- É tudo. Dá um beijo meu aos miúdos. E não te preocupes. Isto vai passar, como sempre aconteceu, acabo por fazer certinho aquilo que esperam que eu faça.