sábado, 3 de outubro de 2009

ALI-BABÁ E OS TRÊS ANÕES

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INQUILINO DESTAS PÁGINAS, vizinho de figuras tão interessantes como Madalena Barbosa e Helena Roseta, sem esquecer a vizinhança mais sisuda mas sempre simpática de Luís Morales decidi, este mês, dar a minha contribuiçãozinha anual para o movimento das mulheres, sem que tal represente qualquer encargo para o IF nem para quem quer que seja.

Permitam-me, assim, que esta contribuição vá em estilo de sugestão, a qual de muito bom gosto, e de resultados garantidos, porque em certas coisas, por muito mal pareça confessá-lo, nada sabe melhor do que o travozinho agridoce da vingança, e vingança é o que eu proponho a estas e todas as mulheres que elas possam representar.

Começo, portanto, por vos sugerir que deveis ir ao Cairo.

E, uma vez lá, e antes de vos entregardes à volúpia da descida do Nilo e vos perderdes na luxúria cultural de Luxor e Carnaque, deveis ir a Sahara City, suposto local de perdição, onde vos encontrareis no interior de uma ampla tenda de deserto, à beira das Pirâmides e do sorriso desgastado da Esfinge. Aí, vos asseguro eu, vos sentireis vingadas ao observardes dos mais estranhos espectáculos que é dado ver a um viajante, e muitos há a ler estas páginas, tão longamente elas resistem no interior dos aviões portugueses.

A tenda alberga um conjunto de mesas normais, de quatro e de oito e doze pessoas, ao redor de uma pista onde, sucessivamente, se apresentam voláteis ou pesadas, mas sabidonas, bailarinas orientais, especialistas na dança do ventre, que é a arte suprema de desenhar com o umbigo o sinal do infinito, aquele oitozinho deitado que tanto nos deu que fazer no tempo das sebentas e da Álgebra, e que também dispõe do sortilégio de todos os mistérios orientais, mesmo aqueles oriundos ou residentes do Oriente Próximo ou Médio, parente pobre das profundezas insondáveis dos povos do Extremo ou Longínquo Oriente.

Quer isto dizer que a primeira parte do espectáculo é perfeitamente adequada a ambos os sexos ou, se se preferir, mais recomendável aos machos, quiçá mais propensos aos sonhos ou às fantasias possíveis. Mas cuidado! A vingança chega depois!

Antes da vingança, porém, sucedem-se alguns cançonetistas, de ambos os sexos e de vozes meladas, claramente indicadas para as melopeias intermináveis onde podem fazer sempre o elogio dos presentes, com indicação sonora do nome do louvado, directamente proporcional ao valor da nota que se mete na mão dos cantantes.

E, finalmente, senhoras e senhores, a vingança!

Fellini, se os tivesse visto, já os teria utilizado num dos seus filmes, tão feios e deformados eles são. E são quatro, os homens. São quatro, mas três deles são anões, e tão pequenos, musculosos e desgrenhados, que logo fazem rir quem mesmo não concorde com a troça da desgraça alheia.

Os homens apresentam-se de fatos flamejantes, brilhantes, de cetim, de cores tão garridas que não podem deixar de ser considerados como artistas de circo, e tal o seu número mete forças combinadas que não restam dúvidas, com o homem normal a servir de base, suportando o peso dos anões e manejando-os com tanta perícia que não resta mais do que aplaudir e rir do que há para rir, pois é para isso que servem algumas palhaçadas que rapidamente desenvolvem, submersos pelo gáudio do excelentíssimo público.

Cabe, agora e aqui, falar-se do respeitável público, pois se não nos inteirarmos exactamente de quem rodeia aquela pista, bebendo álcool, rindo e batendo palmas, num país e com origem islâmica, não compreendemos bem todo o alcance da vingança. Maioritariamente, o público de Sahara City é composto por mulheres provenientes da Jordânia, algumas outras vindas dos Emirados e muitas egípcias, acompanhando-se entre si, quer dizer, sem homens, antes aproveitando a ausência destes nas suas mesas para lançarem algumas sugestões ópticas profundas a alguns homens desacompanhados e desprevenidos. Também muitos casamentos vão ali iniciar a noite, com os padrinhos ou pais de um dos nubentes a convidarem para aquele insólito copo-d’água e, ainda mais insólito, a levarem a estranha horda de meninos e meninas de soquetes brancos e sapatinhos de verniz que parece serem lugar-comum de casamento, seja por que religião for que os noivos cheguem ao altar.

E, senhoras, e senhores, finalmente, a vingança!

Começa esta quando dá a maluqueira ao homem que serve de base aos anões e nós começamos, de cabeça levantada, a seguir os pequenos corpos arremessados com força e a ficarem, quando o conseguem, a baterem com os costados pela lona das paredes da tenda, ou a aterrarem em mesas vazias, ou a caírem nas carpetas que cobrem o solo, os anões transformados em disformes bolas de ténis, as bocas fortemente pintadas das mulheres de olhos escuros a crescerem, escancaradas, pelo riso que agita as sedas que cobrem os seus peitos fortes e os anões a voarem, lá vai um, «crash», e toda agente a rir, e os homenzinhos, que são gregos, dir-me-iam, a saltarem como bolas e, de súbito, as luzes a apagarem-se, a música a mudar para o suave, a deixar o rufo dos tambores enfrenesiados que acompanhavam os disparos dos pequenos corpos, e, de novo, a lascívia nas notas musicais, as luzes ainda desligadas, um foco, sobre o palco, o estrado onde um dos anões desencadeia o mais tragicómico número de strip-tease que é dado ver-se.

Ao ritmo da música, agitando as nádegas e os ombros, o anão, sozinho sob o frio da luz do foco, vai-se despindo, atirando fora o seu coletezinho minúsculo, cor de laranja, vai desapertando os folhos da sua camisa azul-eléctrico, vai mostrando o peito, vai tirando peça a peça até ficar com um minúsculo slip onde as excitadas damas metem notas, rindo e tapando as bocas enormes com as mãozinhas sapudas cobertas de anéis, excitantes, exigentes, a quererem tudo ver, cada vez mais notas e estas cada vez maiores no slipzinho, e o anãozinho a fazer-se rogado, sem o apoio de Ali-Babá e dos outros dois anões, discretamente no escuro, até que uma mulheraça de Alexandria, que domina uma mesa de mais três mulheres, não permite mais brincadeiras e zás, com notas a esvoaçarem, fica com o slip do anão nas mãos e este cobre o que deve cobrir com as mãos, e as mulheres gritam histéricas e os homens sorriem desgostados, penso que, em primeiro lugar, porque aquele não é propriamente um lisonjeiro exemplar da espécie, depois porque as mulheres são demasiado violentas nas suas exigências.

Enfim, se as minhas vizinhas ou condóminas nestas páginas se querem sentir vingadas por séculos de mulheres-objectos, vão a Sahara City Ficam, certamente, satisfeitas.

Eu, pelo menos, fiquei envergonhado. É que concordo que as mulheres possam ter direito a strip-tease masculino.

Agora anões, senhoras, no mínimo, é de mau gosto...
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Lisboa, 1987

sexta-feira, 24 de abril de 2009

LUCUBRAÇÕES À VOLTA DO CÃO DA VIZINHA QUE DEBAIXO DA CAMA O TINHA

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TENHO UMA VIZINHA que tem um cão, mas ignoro se debaixo da cama o tem, como a velha que tinha um gato e debaixo da cama o tinha.
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A minha vizinha vive só, com o maldito cão, o que abona o animal porque a vizinha é interessante, humilha os homens porque parecem andar distraídos, e justifica que a vizinha diga que quanto mais conhece os homens mais gosta dos animais.
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Tudo isto vem a propósito de a minha vizinha ter um cão.
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O facto não teria outro significado se o cão da minha vizinha não desse cabo da paciência de quem passe o dia em casa, na vizinhança, o que me acontece com frequência, porque, na ausência da dona, o cão ladra e uiva incessantemente, o que ocorre todo o santo dia porque a referida pequena sai de manhã e volta à noite.
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Ontem pensei em cozinhar um pastel de estricnina e atirá-lo para o terraço onde o cão fica confinado quando a minha vizinha se ausenta, para voltar às tantas com aquele arzinho de quem quanto mais conhece os homens mais gosta dos animais.
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Não pretendo de modo algum que esta seja a crónica de uma morte anunciada. Se porventura eu não resistir e vier mesmo a envenenar o cão, ou alguém acabar por o fazer, não tirarei glória nem provento de antecipadamente ter falado no fim do cão. Para que não seja uma crónica com esse objectivo, e muito menos possa parecer um álibi antecipado, não posso perder este ensejo sem produzir algumas lucubrações breves sobre a natureza animal.
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Começarei pela minha própria, a fim de atenuar a má impressão certamente causada por esta confissão pública de predisposição assassina. Um bolo de estricnina rapidamente deglutido pelo animal deveria levá-lo à morte em aproximadamente dezassete minutos, isto calculando a porção do veneno em proporção ao peso do bicho, segundo alguns estudos médico-legais. Ao fim de algumas convulsões, e de um certo padecimento, o animal libertar-se-ia de vez deste sofrimento diário de solidão e saudade com que a dona o penitencia, eu libertar-me-ia do sofrimento que os seus latidos exasperantes me provocam, o que para nós dois seria de grande alívio, além de eu estar convencido de a digníssima vizinhança hipocritamente aplaudir, em silêncio, aquilo que descreveria como triste desaparecimento do simpático animal.
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Tendo eu em vista que um assassínio, não interessa a vítima nem importa a forma que envolva, será sempre o acto de apressar um processo natural, o qual nos cães é, de resto, muito breve, poderia este argumento ser tomado em consideração para aliviar as penas que me quisessem imputar por tão nefando acto.
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Mas continuando a imaginar coisas do comportamento animal, creio eu que a dona do cão, minha vizinha, graças ao meu tresloucado acto, como seria, descrito pelas gazetas, poderia libertar-se desta fixação em que vive, e descobrir, ela própria, que, independentemente das delícias que um canídeo inconscientemente possa provocar, um homem é um homem e um cão é um bicho. Se apesar de tudo ela não quisesse reconciliar-se com um parceiro da sua espécie, podia sempre comprar um canário ou um periquito, os quais, ainda que incapazes de aquecer a cama seja de quem for, garantiriam uma transição tranquila e sem danos à sua proprietária e digníssima vizinhança, na qual me incluo. Tenho, por outro lado, bem presente que o cão é o melhor amigo do homem. Ensinaram-me isso à força, na terceira classe, e toda a minha vida levei isso em consideração. Mas a verdade é que o cão, sendo um animal doce e inteligente, não tem personalidade. Batem-lhe, e ele lambe as mãos de quem o pune. Castigam-no, e ele submete-se. Prendem-no, e ele dá ao rabo. Permitem-lhe ousadias de aquecer camas e ele uiva, ladra, late e fica assim ululante todo o santo dia.
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Como já disse, não sei se esta minha vizinha tem à noite o cão debaixo da cama, como a velha que tinha um gato e debaixo da cama o tinha. Mas o gato, nunca podendo vir a ser o melhor amigo do homem, é um felino com personalidade que merece respeito.
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O problema que se me põe, com a concretização deste premeditado canicídio, é o da gratidão do cão. Porque é bem possível que se eu vier a envenenar este adorável bichinho da minha vizinha ele me fique tão grato que, quando eu próprio der a minha alma ao Criador, a alminha ululante do cão da minha vizinha me persiga nos meus passeios tranquilos e entediados pelo Céu. Será, sem dúvida, uma acusação terrível porque, nesse caso, terei de explicar a todas as boas almas que ganharam aqueles reinos que aquele tinha sido um cãozinho duma vizinha que talvez debaixo da cama o tinha, até que eu lhe ofereci um pastelinho, por mim próprio cozinhado, à base de estricnina.
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Estão a ver que esta história, mesmo com a gratidão do cão, e todos os diminutivos que eu possa vir a arranjar, não é uma história que se possa contar no Céu. De certeza que lá ninguém vai gostar.
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Estão a ver o que pode fazer à cabeça dum pacato cidadão o cão duma vizinha?
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Mais tarde, darei notícias se acabei, ou não, por decidir envenenar o cão da minha vizinha, que, se calhar, debaixo da cama o tinha. Para já, o que vos posso garantir é que prefiro o gato que era da velha e que debaixo da cama o tinha.
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Lisboa, 1987

sábado, 21 de fevereiro de 2009

O ANO DOS PATOS E DAS ANDORINHAS

COMEÇÁMOS NOVA VOLTA do carrossel. É esta a sensação estranha que actualmente me dá a passagem dos anos, entendendo por isto o acabar um ano e começar outro período igual.
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Toca a buzina, o carrossel abranda, há quem salte porque não pode mais, há quem se firme no tigre, se apoie no leão, se pendure na girafa e, «hop-lá», mais uma volta, vai andar, vai andar, com o vento na cara, agarrados à garupa da vida, a ver quem aguenta maior número de voltas, uns tirando prazer da viagem, outros limitando-se a não dar parte de fracos.
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Vivemos todos este rápido e angustiante período de transição. Agitamo-nos todos apertados neste parêntesis da História. Vimos do certo, do garantido, do seguro, da Feira Popular com os seus túneis do amor, barracas dos espelhos, castelos fantasmas, montanhas-russas, tudo destinado à ilusão provocada pelo sobressalto desejado para quebrar o ripanço garantido e animar a segurança da vida.
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Estamos agora na naúsea da vertigem da volta cada vez mais rápida, movemo-nos no círculo que nos atira para o vazio do desconhecido, penduramo-nos de cavalinhos de pau que riem, de zebras de pijama às riscas, de tigres a saltar em frente.
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Empurramo-nos, frenéticos, no grande parêntesis da História. Parêntesis entre o certo e estabelecido e o incerto, espécie de incógnita do poço da morte, em voltas cada vez mais rápidas, no carrossel da vida.
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Dantes, os anos pareciam ter muito mais coisas. Tinham Primavera, Verão, Outono e Inverno; tinham armários para guardar as roupas certas, tinham Verões de São Martinho adequados aos magustos e havia épocas para tudo - para começar as aulas, para forrar os livros, para ir aos ninhos, para tomar banhos de mar, para ir para o pinhal, para comer gelados ou comer castanhas, para carregar cartuchos calibre doze, para rachar lenha para o fogão.
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Havia também os momentos próprios para o sarampo, para o sarampelho, para a escarlatina ou para a difteria; assim coHoje, não há mais certeza de coisa nenhuma. Não há horas, nem vidas nem dias certos para o que quer que seja. Rodopiamos sem querer pensar onde nos leva esta viagem circular. Os anos entram à razão de montras de centro comercial e saem à mesma velocidade e sem cerimónia, connosco a vermos todas as feiras populares e luna-parques, cosmética de miséria humana, polvilhada de stands de «ó simpático, um tirinho».mo existiam dias indicados para colar nas costas o adesivo da tuberculina.
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Hoje, não há mais certeza de coisa nenhuma. Não há horas, nem vidas nem dias certos para o que quer que seja. Rodopiamos sem querer pensar onde nos leva esta viagem circular. Os anos entram à razão de montras de centro comercial e saem à mesma velocidade e sem cerimónia, connosco a vermos todas as feiras populares e luna-parques, cosmética de miséria humana, polvilhada de stands de «ó simpático, um tirinho».
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Desejar bom ano para todos os meus semelhantes é cair em lugar-comum de emissão televisiva endomingada e, sem desistir deste voto, não quero incorrer em falha tão grosseira. Assim, o melhor que posso fazer, sem alterar o nosso calendário, nem mudar do gregoriano para o chinês, é desejar que este ano todos dêem pela chegada das andorinhas, que notem a passagem dos patos com os seus gigantescos V V de vitória. Já repararam há quanto tempo a gente não dá por isso? Que este ano dos patos e das andorinhas seja um bom ano para todos os que continuam a resistir e recusam tornar-se aves de arribação em que alguns passarões nos querem transformar.
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Lisboa, 1987

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

ABAIXO-ASSINADO

NO MOLHO DE CARTAS que me puseram sobre a mesa destacava-se, naquele dia, um longilíneo sobrescrito de correio aéreo ao qual já haviam roubado, à tesoura, a fatia dos selos. Olhei-o guloso, mas decidido a deixá-lo para o fim, seguindo a velha teoria que privilegia «más notícias, primeiro», e que desde sempre me compele a ler, antes do mais, contas, contrafés e cartas tarjadas de luto carregado.

Uma, após outra, aquelas cartas constituíam uma correspondência sensaborona, recheada de impressos de concursos, de cursos por correspondência, de extractos de contas e de apólices de seguro, mais um cartão pessoal de alguém que agradecia um favor. Finalmente, restava a misteriosa carta, que não abri antes de acender um cigarro, ir espreitar à janela a chuva miudinha de Janeiro sombrio e ver os pinheirinhos abandonados junto dos caixotes de lixo, desde o Dia de Reis, despidos já das suas funções nobres e ilusórias de árvores de Natal.

Abri então o que restava do envelope e li as várias folhas, a última das quais preenchida por assinaturas, na sua maior parte ilegíveis. Tratava-se, sem dúvida, de um abaixo-assinado, e era-me endereçado duma capital latino-americana, em reacção à crónica anterior, aqui publicada, «Natal do Pai Natal».

Tinha à minha frente, sobre a mesa de trabalho, um abaixo-assinado de Pais Natais.

Em termos muito corteses, numa escrita muito polida, a carta continha, todavia, algumas elegantes blagues que não pude deixar de compreender, como aquela de me elogiarem «por ser, certamente, a última pessoa que nos dois hemisférios ainda escreve sobre Pais Natais, para além, evidentemente, das crianças a quem nas escolas pedem composições, ou redacções sobre tão antigo tema». Mas a par da crítica velada e ágil, ali estava, impressa, a reivindicação que penso, desta forma, estar a satisfazer: falar das horríveis condições de trabalho dos Pais Natais da América Latina. Posso, efectivamente, falar em favor destes personagens, que vi em diferentes Natais e em distintos países daquela latitude, quer de idioma castelhano, quer de língua portuguesa. Deve oferecer as maiores dificuldades ser-se Pai Natal na América Latina. Em primeiro lugar, porque é difícil criar a ilusão no meio dos desiludidos. Depois, porque os brinquedos e artigos para adultos são quase todos importados, o que relaciona o Pai Natal com a inflação e, sobretudo, com a dívida externa, no que temos de convir que é bastante desagradável. Além do mais, é praticamente impossível recriar o ambiente tradicional da quadra natalícia naquelas paragens.

Não é fácil comer-se bacalhau com batatas na noite da consoada antes de se sair para uma pescaria que durará toda a noite. Não se pode desejar um casaco de peles sem se pedir uma viagem paga à Europa, pois o abafo não pode ser usado em Ipanema, ou em Carrasco, ou em Montevideu, ou em Buenos Aires, porque aí o que dá jeito, e é mais conveniente, é a camiseta e o cai-cai.

Reside aqui um dos pontos cruciais nas dificuldades de se andar a encarnar o Pai Natal em paragens tão calorosas e de gentes tão acaloradas. É que, mesmo que seja de alpaca, o fato de Pai Natal é quente para quem dentro dele se tem de meter, afim de governar a vida por aqueles dias; é compreensível que ninguém conceba um Pai Natal de manga curta, ou de calções, assim como não se pode admitir um Pai Natal de cara rapada e de panamá, mas constitui uma verdadeira tortura a barba branca de algodão, mesmo que se chegue ao requinte de usar uma barba de linho, e é bom nem falar da violência do gorro debruado a pele. As reivindicações dos Pais Natais são, portanto, justas, ou antes, têm toda a razão de ser. Não se me afigura, no entanto, fácil dar-lhes satisfação. É, pelo menos, tão difícil como explicar aos meninos das favelas como é a neve, que sensação dá apalpá-la, e como os trenós deslizam sobre a sua superfície.

Quanto às condições de trabalho dos Pais Natais na América Latina, estamos conversados desde que vi três, de gorro e de barbas, com almofadas a darem-lhes a corpulência necessária à credibilidade, correndo como loucos no interior dum minúsculo modelo de marca de automóvel italiano, pelas ruas de Bogotá.