domingo, 8 de junho de 2008

O caçador de cabeças

IMPECAVELMENTE VESTIDO, como se tivesse chegado do casamento de um filho, com o cabelo sal-e-pimenta cortado à francesa, a cheirar a Aramis a dois quilómetros e meio de distância, não perdoa e raramente falha sempre que salta sobre a vítima seleccionada.
- Oh pá, como é que tu vais? Não te lembras de mim? Vê lá bem, sou o Bento, a última vez que estivemos foi em Viseu, andámos nessas guerras todas, os anos é que não perdoam, mas tu lembras-te de mim, diz lá se não lembras!!!
Aturdida pela violência deste primeiro embate, receando ficar em falta, revolvendo milhares de caras na memória subitamente confusa, a vítima, normalmente uma figura pública da política, do desporto ou do espectáculo, hesita e cede.
- Oh pá, agora estou a ver. Desculpa, isto é tanta gente... Mas claro que me lembro, agora, como vais tu?
- Claro que havias de te lembrar. Quem vi no outro dia foi fulano.
E salta, assim, entre os dois, o nome de outra figura pública, neste caso notoriamente conhecida como adversária da vítima.
- Oh pá, agarrei-o pelos gorgomilos e dei-lhe um par de estalos à frente de toda a gente. Malandro! Sabes que me enganou a mim também? Estes gajos têm de começar a aprender. Mas isso agora não interessa. Tu o que fazes agora?
A cumplicidade, a camaradagem da mesma trincheira, acaba de ser implicitamente estabelecida. Então, lento, paciente, sinuoso mas pouco subtil, começa o discreto interrogatório.
- Mas tu estás bem, não precisas de nada? Quanto é que ganhas naquela coisa onde estás agora? Precisas de alguma coisa?
Obviamente que a presa diz que não. E ainda está a dizer que nunca esteve tão bem quando outro golpe lhe é desferido, tipo coice frontal no fígado.
- Ouve lá, tu não alinhas com os comunas, pois não?
- Eu?! Nem pensar!!!
- Claro, eu sabia, eu sempre disse isso. Oh pá, ainda no outro dia tive uma discussão lá em cima por tua causa. Eu é que te defendi, e disse-lhes que eu é que te conhecia, que tínhamos andado juntos nestas guerras todas e sabia muito bem que eras um gajo porreiro.

Lentamente, vai também impondo o seu discurso e através deste a sua desinteressada amizade. Mas o sorriso que a vítima agora esboça logo se esboroa face à próxima pergunta, um directo ao nariz!
- E o partido, como é que está? Aquilo vai para a frente, ou quê?
- Qual partido?
- Tu não estás lá? Eu bem dizia! Ainda ontem eu dizia que o gajo, desculpa lá que o gajo és tu, mas a gente fala assim, tás a ver, mas ainda ontem eu dizia que o gajo é demasiado honesto para se meter naquela bodega
.
Quase não dá tempo de resposta. Pergunta, responde, tacteia, procura obter informações que utilizará em outros assaltos futuros a outras presas seleccionadas. Esta, que se encontra agora nas suas garras, tenta iniciar o movimento de fuga:
- Bom, tenho de ir andando. Tenho gente à espera.
- Homem, também eu. Olha para ali, é a carrinha lá da fábrica e trouxe aqueles macacos todos, que me pediram para eu lhes dar boleia. Íamos a passar quando eu disse: «pára que tenho ali de dar um abraço àquele meu amigo.»

A medo, a vítima olha para o carro designado. Várias cabeças, todas de gente sorridente, espreitam das janelas e chegam a acenar quando o sacrificado olha. Há mesmo um que salta, vem junto dos dois homens especados e diz à presa seleccionada:
- É só para o cumprimentar. Amanhã, lá em cima, já posso dizer que estive consigo.
Ríspido, altivo, Bento, o assaltante de figuras públicas, diz com voz forte:
- Eu não dizia que éramos amigos? Tás a ver agora?
E para a vítima:
- Desculpa lá este gajo. Vêm da província, vêem um tipo conhecido e vêm logo chatear. Queres tomar um uísque?
- Não, hoje não posso
- resiste a vítima -, tenho gente à espera.
- Homem, um uísque velho!?
- Não, sinceramente que não hoje não posso. Fica para outra vez.
- Houve
(*)
lá uma coisa: lembras-te da minha miúda mais velha, a Mira, assim de grandes olhos azuis como a mãe? Oh pá, está um traçalhão, mas é uma miúda afinada, e uma estampa, da cabeça aos pés, não é nenhuma dessas galdérias que andam por aí. Tu não sabes de nada para ela? Fala línguas e escreve à máquina.
- Não, não sei de nada. As coisas, como sabes, estão muito difíceis.
- Houve
(*)
lá, mas achas que se eu a mandar falar com sicrano e disser que é da tua parte, ele não desenrasca nada? Se for preciso, a miúda até pode entrar para o partido...
- Experimenta. Tenho de ir agora. Experimenta. Diz que mandas a miúda da minha parte e adeus.

Liberta, finalmente, a presa. Estuga o passo, acelera, perde-se na multidão, murmurando de si para si que tem de perder aquela mania de andar a pé, cansada de desconhecidos impertinentes.
Já na carrinha, com os conterrâneos, o caçador de cabeças senta-se, muito empertigado, puxando o casaco brilhante, de alpaca, esticando-o atrás para não se amarrotar. E olhando em frente, pelo pára-brisas, sem se dirigir a ninguém em particular, diz alto e bom som:
- Eu não dizia que conhecia o gajo? De ginjeira! O caramelo ficou à rasca quando me viu, mas recompôs-se e ainda não foi desta que me pagou os cinco contos que me deve.

(*) A razão destes dois “Houve” (em vez de “Ouve”) está explicada numa outra história, intitulada «Os agás mudos são uma gaita», a publicar em breve.

Sem comentários: