sexta-feira, 27 de julho de 2012

CAFÉ-CONCERTO


DESCOBRI o café ideal através de um conhecido que sofre de angústia existencial
- Vamos ao café, que hoje estou para implicar - disse-me, e, quinze minutos depois, ele estava felicíssimo.
Quando entrámos, não se sentou. Dirigiu-se ao criado mais próximo e disse alto à boa maneira dos saloons nos westerns:
- Você é uma besta-quadrada. Sai à família, não é verdade?
- Tem Vossa Excelência toda a razão. Desejam mesa? - retorquiu sorridente o empregado.
Pouco depois de estarmos sentados, esse meu conhecido passou a mais bela rasteira que jamais vi a outro pobre funcionário que corria com dois tabuleiros, carregando catorze bicas, vinte e seis brandes, sete sandes, quatro copos de leite, três garotos e seis galões. Ainda o homem não havia caído e já tinha gritado:
- Desculpe, senhor, a culpa é inteiramente minha.
E ainda não se tinha levantado quando o patrão trovejou:
- Você vai pagar tudo isto, ó Silva.
Ao que ele retorquiu:
- Evidentemente, senhor Lopes.
Cenas como estas tornam o café que vos falo no café ideal. É de facto o café mais reconfortante da cidade e não me admiro nada que os psicanalistas em voga o recomendem mesmo sem receber comissão. Mas o mérito todo está no letreiro. Naquele enorme letreiro que se reflecte no grande espelho frontal e nas caras dos habitués.
De outra vez que lá voltei, uma senhora pediu a um empregado que fosse dar uma volta ao quarteirão com o caniche que a acompanhava enquanto ela telefonava a uma amiga. O homenzinho voltou alegremente meia hora mais tarde sem uma perna das calças, uma meia rota e os dedos a sangrar. Esperou doze minutos pelo fim da conversa telefónica e inquiriu delicadamente, apontando o bichinho:
- Não tem raiva, pois não?
- Raiva?! O meu amorzinho com raiva, seu animal?
- Bem me queria parecer que não – disse ele afastando-se sorridente.
Na minha quarta ida àquele café, eu próprio não resisti: fui à vitrina, tirei um pastel dos maiores e esmaguei-o na cara do empregado mais próximo.
- Muito obrigado. Até que enfim que aparece um cliente original – respondeu.
Fiquei evidentemente todo satisfeito. Mas o mérito está no letreiro.
É uma pena os criados dirigirem-se aos clientes em fala normal. Se cantassem quando fazem as encomendas ou chamam os «senhores» ao telefone, aquilo era uma opereta completa ou, se os saudosistas preferirem, um verdadeiro café-concerto. Mas o mérito está, todo, no enorme letreiro:

«O CLIENTE TEM SEMPRE RAZÃO!»

sábado, 21 de janeiro de 2012

O PASSEIO DA VELHA SENHORA

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A VELHA SENHORA arrastava os pés com dificuldade e os seus olhos eram todo o outro movimento, que não o das pernas, no frio pôr-do-sol de Outono-lnverno centro-lisboeta.

Eram uns olhos negros que pareciam não pertencer à cara empoada, de palhaço rico, com que a velha senhora furava a multidão.
A sua figura negra, feita de velhas roupas, de bom mas antiquado corte, parecia afastar a multidão à medida que ela se perdia no meio dos habitantes do fim de tarde centro-lisboeta.

Quem passasse junto da velha senhora ouviria, de quando em quando, como que num bocejo: «É o doze mil, cento e vinte e três.» Mas ninguém tinha tempo para ouvir fosse o que fosse na lufa-lufa de um fim de tarde comercial centro-lisboeta.

E a velha senhora continuou o seu caminho em círculos, passando sempre pelos mesmos pontos da praça, dizendo de vez em quando, como num bocejo enfastiado: «É o doze mil, cento e vinte e três.»

À terceira volta à praça, quando esta já voltara a ter contornos precisos e as suas luzes saltavam nos salpicos dos lagos, a velha senhora parou na porta quente, onde a luz era mais forte. Disse uma vez ainda «É o doze mil cento e vinte e três», esperou, e então foi até ao balcão, naquele movimento só-olhos-só-pernas, Aí, pediu «Um galão e um croissant», numa bonita voz requebrada e de excelente pronúncia francesa. E depois substituiu o seu movimento único só-pernas-só-olhos pelo da dentadura estranha na face escalavrada. Pagou sem uma palavra, no final, como se aquilo fosse um velho hábito: o de substituir um jantar por um galão e um croissant pedido com excelente pronúncia francesa.

À saída, demorou-se de novo. Os dentes saltaram-lhe no buraco negro da face escalavrada que resultava terrivelmente crua sob o néon antes de, sub-repticiamente, aquele murmúrio rabiar de novo por entre a multidão: «É o doze mil, cento e vinte e três».

Só depois de os seus olhos, quase independentes da face branca, terem feito o percurso, as pernas se dispuseram a outra, outra e outra volta à praça, no princípio da noite centro-lisboeta, Naquela noite, qualquer pessoa podia ter comprado no Rossio, de Lisboa, o bilhete de lotaria número 12 123 àquela sombra negra, de movimento só-pernas-só-olhos, que fingia fazer o passeio de uma velha senhora.