sábado, 27 de março de 2010

O CARNAVAL DE «OLHOS TRISTES»

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AS PESSOAS DENTRO daquele automóvel parado junto do autocarro que o sinal vermelho imobilizara fizeram «Olhos Tristes» lembrar-se da Velha e sorrir.

As pessoas estavam mascaradas e gesticulavam no interior escuro do carro e riam-se muito e atiravam-se para cima umas das outras, mas nada se ouvia por causa dos vidros do carro e do autocarro e tudo aquilo parecia um filme mudo, com muitos gestos e bocas abertas a gritarem um riso mímico.

«Olhos Tristes» esteve todo o tempo a olhar e a lembrar-se da Velha que já devia estar à sua espera junto da paragem onde desceria dali a pouco, a cerca de duzentos e cinquenta metros da sua porta. Viu as horas e pensou que vinte e duas e trinta de véspera de Terça-Feira de Carnaval era uma boa hora para as pessoas estarem a fazer tudo o que lhes apetecia para se divertirem e devia ser essa a razão por que no autocarro só havia sete pessoas quando nos outros dias à mesma hora quase andava cheio.

«Dez e vinte é uma boa altura para um homem voltar para casa mas quando já está jantado. Para os outros, a noite já começou há um grande bocado e para tipos como eu é sempre mais pequena», pensou.

Quando a luzinha se passou para o verde, o autocarro arrancou mas o carro dos mascarados depressa o ultrapassou porque era mais leve e também por o motor ser mais potente em proporção.

O autocarro dava agora a volta apertada à esquina, e, sem saber porquê, ficou aborrecido com a Velha no pensamento.

«É uma boa mulher. Ainda hoje, com cinquentas, é uma boa mulher. Trabalhou à brava - caramba, se trabalhou! - e nem por isso ficou desfeada», pensou.

Na paragem anterior àquela em que saltaria, o homem perguntou-se: «Que me fará hoje a Velha para jantar?» E ficou a saber que lhe apetecia uma boa perna de frango, embora tivesse a certeza de que isso não aconteceria.

Quando desceu, não viu a Velha e parou na montra do costume onde há quase um ano mostravam aqueles pijamas de flanela às riscas e as camisas de nylon apenas a setenta e cinco escudos que ele cobiçava, mas que não tinha número que lhe servisse.

A Velha segurava nos netos pelas mãos, coçava uma perna na outra e esticava para a frente a barriga, quando ele a viu uns metros mais abaixo.

Os miúdos fizeram «Olhos Tristes» pensar que Alexandrina tinha lá ido jantar e voltou então a recordar-se que estava na véspera de Terça-Feira de Carnaval. O neto mais pequeno veio a correr e pendurou-se na lancheira em que sempre gostara de mexer.

- A tua mãe?
- Saiu. Jantámos e ela saiu. O avô fica connosco ou vai à taberna.
- Porquê? O avô vai mas é jantar.
- E depois?
- Depois logo se vê.

A Velha já ia junto dele e tinha aquele ar igual de todas as ocasiões. Era um ar que parecia dizer «paciência, já sabia que era assim que ia acontecer». Talvez por causa da cara da Velha, ele pensou outra vez no Carnaval.

- Já jantaste?

Esta era uma pergunta diária embora soubesse que ela esperava sempre por ele. Por isso não se preocupou com a resposta e perguntou:

- A Alexandrina onde foi?
- Não sei. Não me disse. Pediu só para ficarem cá hoje os miúdos e saiu.

Em casa foi directamente ao vaso da janela e viu como de costume se a planta precisava de água. Ficou-se a olhá-la enquanto o rádio aquecia, ouvindo a Velha mexer na louça.
«A Alexandrina, é uma boa rapariga, às direitas. Aqui todos falaram por os miúdos não terem pai, mas a Alexandrina é fixe e trabalhadeira», outra ideia que de súbito lhe veio à cabeça.

- Queres molho?
- Hum...
- Perguntei se queres molho, parece que estás a dormir, hoje.
- Pouco.

«Lá fez bife, a Velha... ela come sempre os restos do almoço mas cá para o rapaz faz sempre um petisco. Boa mulher esta Velha.»

- Mas então a Alexandrina não disse onde ia?
- Não. Falou só de uma festa com umas colegas.

«Pois claro. Uma festa. Afinal é véspera de Terça-feira de Carnaval.
«Este tipo agora pôs-se a cantar o fado. Só neste país... afinal que raio é o Carnaval? Naquele ano em que pensei em brincar ao Carnaval apanhei mas foi uma tareia do caraças que o meu pai me arreou por ter roubado uma bisnaga na tabacaria do Ramos».

Ficou-se diante do bife a olhar as costas da mulher curvada para o fogareiro.

Os miúdos brincavam com o cinzeiro de louça que era ao mesmo tempo o emblema do Benfica e que segurava o naperão sobre o aparelho de rádio.

- Tá quieto, Miguel. Olha que partes isso e depois eu arreio-te.

«Carnaval. E se... Não. Não digo nada à Velha.»

- Depois de comermos vais lavar a loiça?
- Lavas tu, não?
- Não é isso. Quero dizer se a podes deixar para amanhã.
- E depois amanhã vais tu à praça e lavas-me a roupa que é preciso...
- Merda. Mas não podes hoje deixar essa louça? Um dia não são dias…
- Posso. E depois?
- Os miúdos já comeram?
- Já.
- Então tu podias deitá-los e pedias aqui ao lado que dessem uma vista de olhos.
- Mas que raio de ideia te deu, homem?
- Ora, é Carnaval e podíamos ir até à Baixa ver as máscaras...
- Tu tás doido!

O bife era de porco e estava passado apenas o suficiente como ela sabia que ele gostava e as batatas eram fritas, grossas e moles como também preferia.

- Mas não podemos lá ir um bocadinho só?
- Mas praquê? Diz lá o que te deu?
- Depois, apanhávamos o elevador e vínhamos de eléctrico que sempre há até mais tarde.
- Pois, e amanhã, cá estava a escrava com o serviço todo às costas.
- É feriado e eu ajudava-te.
- Tem mas é juízo.
- A Alexandrina volta cedo?
- Sei lá! Não disse.

Acabou o bife, acendeu um cigarro, desceu a escada de ferro que rodeava todo o interior do pátio como se fosse uma galeria e para a qual davam todas as habitações do primeiro andar. Atravessou o empedrado e parou um bocado à porta a olhar a rua. Na esquina enfiou-se na taberna. Tomou um bagaço, mal conversou, e pôs-se a olhar a capelista da frente ainda aberta.

De repente, atravessou a rua, deu as boas-noites à menina Alzira, uma solteirona de quem se dizia que dormia com o gato grande e amarelo que desde sempre pulava por cima das caixas grandes dos rebuçados das colecções dos jogadores da bola e dos envelopes e das revistas. Esteve lá dentro uns dez minutos. Quando saiu, trazia uma mão atrás das costas e assobiava num meio sorriso.

No túnel que da rua conduzia ao pátio, para onde davam as habitações, parou um bocado, depois atravessou mais depressa e sem ruído o empedrado e teve cuidado em não fazer barulho quando subiu a escada de ferro. A porta estava encostada. A Velha lavava a louça e os miúdos brincavam em cima da cama.

- Huh, huh, huh...

Quando a Velha se voltou, uma gargalhada que parecia um grito desprendeu-se da garganta de «Olhos Tristes» e o homem atirou a cabeça para trás a rir cada vez mais e os miúdos saltavam à sua volta e riam-se também, só a Velha não ria, olhando com aquele ar que parecia dizer «paciência, já sabia que era assim que ia acontecer», e os miúdos gritavam «dê-me, avô, dê-me...» e «Olhos Tristes» curvava-se engasgado e vermelho, a urrar, até tombar devagarinho na cama, sempre a rir, agora já sem força o seu riso mais parecia um choro de bebé, com os miúdos a saltarem-lhe em cima e a puxarem, até a mascarilha preta de cartão lhe ficar na testa. O mais novo conseguiu agarrá-la e os dois foram para um canto cada um a querer pôr a mascarilha primeiro do que o outro Na borda da cama, «Olhos Tristes» sorria por causa dos miúdos e quando a Velha lhe passou a mão deu-lhe uma palmada no rabo e disse.

- Vá despacha-te. Vamo-nos deitar hoje, ou quê?

1 comentário:

Bartolomeu disse...

apesar da distância temporal, a história, esta história, não pode ainda ser "deitada fora".
do mesmo modo que as máscaras de carnaval e as pessoais são mantidas, umas sobre as outras, com o intuíto, talvez... de que não consigamos reconhecer-nos a nós mesmo.
talvez...
;)
o que vale é que, continuam a existir autocarros que transportam os olhos tristes e os galhofeiros, d'agente...
;)