sábado, 21 de janeiro de 2012

O PASSEIO DA VELHA SENHORA

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A VELHA SENHORA arrastava os pés com dificuldade e os seus olhos eram todo o outro movimento, que não o das pernas, no frio pôr-do-sol de Outono-lnverno centro-lisboeta.

Eram uns olhos negros que pareciam não pertencer à cara empoada, de palhaço rico, com que a velha senhora furava a multidão.
A sua figura negra, feita de velhas roupas, de bom mas antiquado corte, parecia afastar a multidão à medida que ela se perdia no meio dos habitantes do fim de tarde centro-lisboeta.

Quem passasse junto da velha senhora ouviria, de quando em quando, como que num bocejo: «É o doze mil, cento e vinte e três.» Mas ninguém tinha tempo para ouvir fosse o que fosse na lufa-lufa de um fim de tarde comercial centro-lisboeta.

E a velha senhora continuou o seu caminho em círculos, passando sempre pelos mesmos pontos da praça, dizendo de vez em quando, como num bocejo enfastiado: «É o doze mil, cento e vinte e três.»

À terceira volta à praça, quando esta já voltara a ter contornos precisos e as suas luzes saltavam nos salpicos dos lagos, a velha senhora parou na porta quente, onde a luz era mais forte. Disse uma vez ainda «É o doze mil cento e vinte e três», esperou, e então foi até ao balcão, naquele movimento só-olhos-só-pernas, Aí, pediu «Um galão e um croissant», numa bonita voz requebrada e de excelente pronúncia francesa. E depois substituiu o seu movimento único só-pernas-só-olhos pelo da dentadura estranha na face escalavrada. Pagou sem uma palavra, no final, como se aquilo fosse um velho hábito: o de substituir um jantar por um galão e um croissant pedido com excelente pronúncia francesa.

À saída, demorou-se de novo. Os dentes saltaram-lhe no buraco negro da face escalavrada que resultava terrivelmente crua sob o néon antes de, sub-repticiamente, aquele murmúrio rabiar de novo por entre a multidão: «É o doze mil, cento e vinte e três».

Só depois de os seus olhos, quase independentes da face branca, terem feito o percurso, as pernas se dispuseram a outra, outra e outra volta à praça, no princípio da noite centro-lisboeta, Naquela noite, qualquer pessoa podia ter comprado no Rossio, de Lisboa, o bilhete de lotaria número 12 123 àquela sombra negra, de movimento só-pernas-só-olhos, que fingia fazer o passeio de uma velha senhora.

1 comentário:

Maria disse...

Cada vez haverá menos senhoras às voltas na rua, a entrar na pastelaria e, pedir com pronúncia correcta, um croissant. Qualquer dia, esses seres caídos e envelhecidos, dirão, entrando no 1º tasco: Ó meu! Dá aí um copo de água e uma carcaça com molho de prego. Ou então, chegam à porta e aspiram o odor de fritos e, ficam jantadas de borla.
Gostei da história. Lembrou-me muita gente que conheci.
Maria