sexta-feira, 1 de agosto de 2008

A ESTÁTUA

A SENHORA SÓ REPAROU que eram homens que se perfilavam pela escadaria quando chegou ao primeiro patamar. Segurando o longo vestido e gozando o frufru da seda, dando o braço ao elegante cavalheiro de casaca e condecorações, estugava o passo miudinho na pressa de encontrar, finalmente, os príncipes, depois de toda a tarde se ter sujeitado aos maus tratos obsequiosos do instituto de beleza.
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Até ao primeiro patamar convenceu-se que, de um lado e de outro da passadeira, pela escadaria de mármore acima, se alinhavam preciosos jarrões. Foi um leve tilintar de esporas que lhe chamou a atenção – afinal, era pelo meio de homens perfilados, de espada desembainhada, que viera por ali fora, mantendo com o indicador um seio dentro do soutien, acertando a simetria do decote.
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Nenhum daqueles homens se movera. Dir-se-ia que estavam treinados para assistir àqueles últimos preparativos em trânsito, antes de os convidados desembocarem nos salões iluminados pelos belos candeeiros de cristal.
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Durante horas eles ficaram ali, sem um movimento, perfilados, brilhantes e emplumados, com vida apenas nos olhos e nas esporas, que espaçadamente se tocavam, sem nunca coincidirem com o bater de pestanas.
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Nos salões era a confusão da distinção e do mau gosto, misturados naquela combinação mesclada de classe média e outra assim-assim, com uns quantos aristocratas sobreviventes a darem o efeito das ginjas cristalizadas nas bebidas para menina à percentagem em bar de tenha a bondade.
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Ver os príncipes – esses reais visitantes que excitavam hormonas e arrepelavam cabelos, desencadeavam crises familiares e animavam as pálidas colunas sociais das Kekas e das Chu-Chas – era a palavra de ordem, longe de escoltas ou de guardas ou mesmo de qualquer decoro. «Ai, ela ao natural é muito mais bonita do que em fotografia», segundo umas e uns, «o pai é muito mais interessante do que ele», segundo outros.
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Cá fora, entretanto, como se diz nas histórias aos quadradinhos, os motoristas jogam às moedas no interior das limusinas, os polícias apanham chuva fininha e, pela escadaria, os guardas que pareciam jarrões continuam com escassos tilintares.
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É, normalmente, à descida, quer dizer à saída, que toda a gente dá por eles – sai-se devagar, em fila longa e paciente, requintadíssima, fatigada, aguardando pelo abafo no bengaleiro ou pelo carro à porta. E nesse momento há ocasião para trocar olhares embaraçosos com os guardas emplumados. Foi nesse instante que aconteceu o que ninguém esperava.
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Num nicho do patamar, branca, leitosa, misteriosamente sorridente, inefável e nua, estava a estátua de uma donzela, esculpida por cinzel florentino dois séculos atrás. As pessoas olhavam-na apreciativamente na descida, comentando as pregas da túnica tombada a seus pés, numa perfeição de forma e volume que, na própria pedra, quase se adivinhava a transparência.
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Três degraus acima, mas perfeitamente alinhado no campo visual, sem poder olhar para mais nada que não fosse a estátua, o soldado da guarda estava em sentido havia quatro horas, fixo naquele sorriso, naquele corpo.
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Diria ele, mais tarde, no serviço de psiquiatria do hospital militar, que não tinha dúvidas – a estátua era uma desavergonhada que o provocara todo o tempo do seu quarto. Durante quatro horas nua e a sorrir-lhe ele aguentara, mas quando a estátua lhe piscara o olho não pudera resistir. A estátua podia ser de pedra, mas a sentinela e que não é de pau.
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Foi em plena cedência que o frufru das sedas o apanhara – abraçado à estátua, capacete de plumas pelo ombro, esporas numa excitação de tlintlins. Os enfermeiros da ambulância levaram-no delicadamente. Toda a gente pôs um ar condoído e disse que não com a cabeça. Não sei porquê.
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Que a estátua lhe piscou o olho, piscou, porque eu, que vinha atrás, bem vi. que eram homens que se perfilavam pela escadaria quando chegou ao primeiro patamar. Segurando o longo vestido e gozando o frufru da seda, dando o braço ao elegante cavalheiro de casaca e condecorações, estugava o passo miudinho na pressa de encontrar, finalmente, os príncipes, depois de toda a tarde se ter sujeitado aos maus tratos obsequiosos do instituto de beleza.
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Até ao primeiro patamar convenceu-se que, de um lado e de outro da passadeira, pela escadaria de mármore acima, se alinhavam preciosos jarrões. Foi um leve tilintar de esporas que lhe chamou a atenção – afinal, era pelo meio de homens perfilados, de espada desembainhada, que viera por ali fora, mantendo com o indicador um seio dentro do soutien, acertando a simetria do decote.
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Nenhum daqueles homens se movera. Dir-se-ia que estavam treinados para assistir àqueles últimos preparativos em trânsito, antes de os convidados desembocarem nos salões iluminados pelos belos candeeiros de cristal.
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Durante horas eles ficaram ali, sem um movimento, perfilados, brilhantes e emplumados, com vida apenas nos olhos e nas esporas, que espaçadamente se tocavam, sem nunca coincidirem com o bater de pestanas.
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Nos salões era a confusão da distinção e do mau gosto, misturados naquela combinação mesclada de classe média e outra assim-assim, com uns quantos aristocratas sobreviventes a darem o efeito das ginjas cristalizadas nas bebidas para menina à percentagem em bar de tenha a bondade.
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Ver os príncipes – esses reais visitantes que excitavam hormonas e arrepelavam cabelos, desencadeavam crises familiares e animavam as pálidas colunas sociais das Kekas e das Chu-Chas – era a palavra de ordem, longe de escoltas ou de guardas ou mesmo de qualquer decoro. «Ai, ela ao natural é muito mais bonita do que em fotografia», segundo umas e uns, «o pai é muito mais interessante do que ele», segundo outros.
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Cá fora, entretanto, como se diz nas histórias aos quadradinhos, os motoristas jogam às moedas no interior das limusinas, os polícias apanham chuva fininha e, pela escadaria, os guardas que pareciam jarrões continuam com escassos tilintares.
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É, normalmente, à descida, quer dizer à saída, que toda a gente dá por eles – sai-se devagar, em fila longa e paciente, requintadíssima, fatigada, aguardando pelo abafo no bengaleiro ou pelo carro à porta. E nesse momento há ocasião para trocar olhares embaraçosos com os guardas emplumados. Foi nesse instante que aconteceu o que ninguém esperava.
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Num nicho do patamar, branca, leitosa, misteriosamente sorridente, inefável e nua, estava a estátua de uma donzela, esculpida por cinzel florentino dois séculos atrás. As pessoas olhavam-na apreciativamente na descida, comentando as pregas da túnica tombada a seus pés, numa perfeição de forma e volume que, na própria pedra, quase se adivinhava a transparência.
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Três degraus acima, mas perfeitamente alinhado no campo visual, sem poder olhar para mais nada que não fosse a estátua, o soldado da guarda estava em sentido havia quatro horas, fixo naquele sorriso, naquele corpo.
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Diria ele, mais tarde, no serviço de psiquiatria do hospital militar, que não tinha dúvidas – a estátua era uma desavergonhada que o provocara todo o tempo do seu quarto. Durante quatro horas nua e a sorrir-lhe ele aguentara, mas quando a estátua lhe piscara o olho não pudera resistir. A estátua podia ser de pedra, mas a sentinela e que não é de pau.
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Foi em plena cedência que o frufru das sedas o apanhara – abraçado à estátua, capacete de plumas pelo ombro, esporas numa excitação de tlintlins. Os enfermeiros da ambulância levaram-no delicadamente. Toda a gente pôs um ar condoído e disse que não com a cabeça. Não sei porquê.
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Que a estátua lhe piscou o olho, piscou, porque eu, que vinha atrás, bem vi.

1 comentário:

Chinha disse...

Maravilhoso.

Pena que estas histórias não possam ser narradas ao vivo para que a tua bela voz que bem conheço as relatasse com as devidas nuances.

É uma delicia ler-te

Um beijo