quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

ABAIXO-ASSINADO

NO MOLHO DE CARTAS que me puseram sobre a mesa destacava-se, naquele dia, um longilíneo sobrescrito de correio aéreo ao qual já haviam roubado, à tesoura, a fatia dos selos. Olhei-o guloso, mas decidido a deixá-lo para o fim, seguindo a velha teoria que privilegia «más notícias, primeiro», e que desde sempre me compele a ler, antes do mais, contas, contrafés e cartas tarjadas de luto carregado.

Uma, após outra, aquelas cartas constituíam uma correspondência sensaborona, recheada de impressos de concursos, de cursos por correspondência, de extractos de contas e de apólices de seguro, mais um cartão pessoal de alguém que agradecia um favor. Finalmente, restava a misteriosa carta, que não abri antes de acender um cigarro, ir espreitar à janela a chuva miudinha de Janeiro sombrio e ver os pinheirinhos abandonados junto dos caixotes de lixo, desde o Dia de Reis, despidos já das suas funções nobres e ilusórias de árvores de Natal.

Abri então o que restava do envelope e li as várias folhas, a última das quais preenchida por assinaturas, na sua maior parte ilegíveis. Tratava-se, sem dúvida, de um abaixo-assinado, e era-me endereçado duma capital latino-americana, em reacção à crónica anterior, aqui publicada, «Natal do Pai Natal».

Tinha à minha frente, sobre a mesa de trabalho, um abaixo-assinado de Pais Natais.

Em termos muito corteses, numa escrita muito polida, a carta continha, todavia, algumas elegantes blagues que não pude deixar de compreender, como aquela de me elogiarem «por ser, certamente, a última pessoa que nos dois hemisférios ainda escreve sobre Pais Natais, para além, evidentemente, das crianças a quem nas escolas pedem composições, ou redacções sobre tão antigo tema». Mas a par da crítica velada e ágil, ali estava, impressa, a reivindicação que penso, desta forma, estar a satisfazer: falar das horríveis condições de trabalho dos Pais Natais da América Latina. Posso, efectivamente, falar em favor destes personagens, que vi em diferentes Natais e em distintos países daquela latitude, quer de idioma castelhano, quer de língua portuguesa. Deve oferecer as maiores dificuldades ser-se Pai Natal na América Latina. Em primeiro lugar, porque é difícil criar a ilusão no meio dos desiludidos. Depois, porque os brinquedos e artigos para adultos são quase todos importados, o que relaciona o Pai Natal com a inflação e, sobretudo, com a dívida externa, no que temos de convir que é bastante desagradável. Além do mais, é praticamente impossível recriar o ambiente tradicional da quadra natalícia naquelas paragens.

Não é fácil comer-se bacalhau com batatas na noite da consoada antes de se sair para uma pescaria que durará toda a noite. Não se pode desejar um casaco de peles sem se pedir uma viagem paga à Europa, pois o abafo não pode ser usado em Ipanema, ou em Carrasco, ou em Montevideu, ou em Buenos Aires, porque aí o que dá jeito, e é mais conveniente, é a camiseta e o cai-cai.

Reside aqui um dos pontos cruciais nas dificuldades de se andar a encarnar o Pai Natal em paragens tão calorosas e de gentes tão acaloradas. É que, mesmo que seja de alpaca, o fato de Pai Natal é quente para quem dentro dele se tem de meter, afim de governar a vida por aqueles dias; é compreensível que ninguém conceba um Pai Natal de manga curta, ou de calções, assim como não se pode admitir um Pai Natal de cara rapada e de panamá, mas constitui uma verdadeira tortura a barba branca de algodão, mesmo que se chegue ao requinte de usar uma barba de linho, e é bom nem falar da violência do gorro debruado a pele. As reivindicações dos Pais Natais são, portanto, justas, ou antes, têm toda a razão de ser. Não se me afigura, no entanto, fácil dar-lhes satisfação. É, pelo menos, tão difícil como explicar aos meninos das favelas como é a neve, que sensação dá apalpá-la, e como os trenós deslizam sobre a sua superfície.

Quanto às condições de trabalho dos Pais Natais na América Latina, estamos conversados desde que vi três, de gorro e de barbas, com almofadas a darem-lhes a corpulência necessária à credibilidade, correndo como loucos no interior dum minúsculo modelo de marca de automóvel italiano, pelas ruas de Bogotá.

6 comentários:

Madalena S. disse...

Sim,senhor!
Nunca me passaria pela cabeça mas é um facto que até os Pais Natal devem ter direito à defesa dos seus direitos, designadamente os laborais.
Ainda bem que alguém fala por eles. Não sei se não seria de juntar a este grupo, o desgraçado do meu Nicolau, PN, cuja história dramática narrei na minha Gaveta da Escrita, em Dezembro.
Um grande abraço, caro amigo e até um dia destes.

Carlos Medina Ribeiro disse...

Cara Madalena S,

O J. Letria também escreve no 'Sorumbático' (http://sorumbatico.blogspot.com), blogue de que é um dos fundadores.

Manuela Gonzaga disse...

que bom encontrar-te! Adoro o teu sítio, vou adicioná-lo. Um beijo enorme, Manuela

Anónimo disse...

Boa história



Abraços d´ASSIMETRIA DO PERFEITO

Chinha disse...

Realmente nunca me tinha acometido tal ideia de como devem os Pais Natais dessas bandas de terras tão quentes serem uns sofredores!

Claro que têm direito a reivindicar. Quem sabe um qualquer estilista famoso faça uma criação renovadora e fresca para eles....

Como sempre um texto maravilhoso açambarcador da minha atenção.

Que o Fim de Semana seja de relaxe e descanso.
Irei fazer o mesmo pois a noite já procura a madrugada.

Beijinhos e até breve

Anónimo disse...

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