sexta-feira, 15 de agosto de 2008

CENAS DA VIDA CONJUGAL

- O que farias bem era deitar-me fora e comprares outro marido em bom estado, amanhã.
- Estás louco, põe-te bom. Vais ficar bom e vamos tentar de novo.
A cabeça parecia estalar ao homem, com dores e pressões internas que não o deixavam quase pensar, sentindo-se unicamente melhor com os olhos fechados e com a cabeça na almofada, o corpo aquecido sob as cobertas da cama.
- Para que sirvo eu, assim?
- Homem, porque estares a mortificar-te e a fazeres-me sofrer a mim?
A ideia ganhara forma na sua cabeça dorida. Apetecia-lhe ficar assim, de olhos fechados, a dor a latejar, as têmporas a estalar, o calor da cama, sozinho, sem ruídos em casa, sem crianças a fazerem barulho, sem o toque do telefone, sem os saltos altos da mulher a matraquearem o soalho envernizado. Queria que o deixassem sofredor, dorido e abandonado.
- Deita-me fora e arranja um gajo em condições, amanhã.
O dia crescia em horas desde que estava doente. As dores não permitiam que dormisse, a vida passava diante dos olhos cerrados e encovados e os dias escoavam-se inúteis, sem vida nem objectivo, sem amor nem esperança.
- Porque não me internas tu?
- Parece que não sabes como estão os hospitais.
Para o bem e para o mal, na saúde e na doença, dissera muitos anos antes o padre. Mas hoje, nada disso fazia sentido. A mulher arranjava-se de manhã, cuidadosamente, e saía para o trabalho, perfumada e atraente, depois de horas sofridas ao lado do seu corpo sem utilidade. E ele ficava a roer-se, de ciúmes e de dúvidas, de interrogações, de vontade de não ser enganado, de nada ter que ver com ela, livres os dois para o que cada um entendesse.
- Não estás melhor?
- Não, não estou melhor.
- Vamos ver o que o médico diz amanhã. É dia de consulta, amanhã.
Mas os dias e as consultas iam passando e não estava melhor. Pelo contrário – cada vez mais lhe apetecia fechar os olhos e deixar correr. «Abandonem-me aqui», pensava «deixem-me aqui a apodrecer, como um grande desgraçado, com a barba a crescer, os olhos a encovarem-se, o sorriso a rarear, os ombros a responderem cada vez mais a todas estas perguntas estúpidas que me fazem e a que não me apetece responder.»
- Amanhã arranjas um gajo em condições e deitas-me fora, tá bem?
- Homem, não me castigues assim... Sabes que te amo, que te quero bom depressa, e que vivamos os dois até ao fim dos nossos dias sempre juntos.
A ofensiva que desencadeara não resultava. A mulher não o deixava, as dores não abrandavam, o ciúme não se desvanecia, os dias arrastavam-se cada vez mais inúteis, mais estéreis, mais sem sentido ou justificação para o que quer que fosse.
- Deita-me para o caixote do lixo, arranja um gajo em condições, para ti!
Era uma insistência estúpida e sem nexo. Era uma contradição para com os desvelos quase maternais que a mulher desenvolvia, diariamente para que pudesse sentir-se melhor. Era um insulto para a mãe dos seus filhos, uma mulher de trabalho que se sacrificava desde as seis e meia da manhã, todos os dias, deixando tudo feito em casa e partindo fresca para o trabalho.
O médico veio no dia seguinte. Respirou fundo, tossiu, arregalou os olhos sob a luzinha da lâmpada, mostrou a língua e estendeu-se de novo na cama. O médico interrogou a mulher e foram os dois para a sala de jantar, passar receitas, discutir sintomas, essas coisas. Ficou deitado a apertar o pijama, os dedos a tremerem nos botões, um formigueiro na nuca, um desejo de se deitar e ficar só, de novo. Tacteou o chão com os pés, em busca dos chinelos, a fim de poder ir à casa de banho. Levantou-se trémulo, segurando-se aos móveis, sem ruído. Quando, no corredor, olhou para a sala de jantar viu a mulher e o médico. Ficaram os três a olharem-se uns para os outros, sem palavras. Acabou por ir à casa de banho e regressou à cama, apagou a luz e ficou quieto, sem mover um músculo. Olhou o tecto sem o ver. Pela primeira vez em muitos meses não sentia dores, nem pressões sobre os olhos nem a nuca a latejar.
O silêncio, na casa abandonada, era completo. Pela primeira vez em meses longos e seguidos se sentiu bem e adormeceu convencido de que ao fim do dia ninguém regressaria àquela casa onde, finalmente, poderia apodrecer em paz.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

A ESTÁTUA

A SENHORA SÓ REPAROU que eram homens que se perfilavam pela escadaria quando chegou ao primeiro patamar. Segurando o longo vestido e gozando o frufru da seda, dando o braço ao elegante cavalheiro de casaca e condecorações, estugava o passo miudinho na pressa de encontrar, finalmente, os príncipes, depois de toda a tarde se ter sujeitado aos maus tratos obsequiosos do instituto de beleza.
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Até ao primeiro patamar convenceu-se que, de um lado e de outro da passadeira, pela escadaria de mármore acima, se alinhavam preciosos jarrões. Foi um leve tilintar de esporas que lhe chamou a atenção – afinal, era pelo meio de homens perfilados, de espada desembainhada, que viera por ali fora, mantendo com o indicador um seio dentro do soutien, acertando a simetria do decote.
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Nenhum daqueles homens se movera. Dir-se-ia que estavam treinados para assistir àqueles últimos preparativos em trânsito, antes de os convidados desembocarem nos salões iluminados pelos belos candeeiros de cristal.
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Durante horas eles ficaram ali, sem um movimento, perfilados, brilhantes e emplumados, com vida apenas nos olhos e nas esporas, que espaçadamente se tocavam, sem nunca coincidirem com o bater de pestanas.
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Nos salões era a confusão da distinção e do mau gosto, misturados naquela combinação mesclada de classe média e outra assim-assim, com uns quantos aristocratas sobreviventes a darem o efeito das ginjas cristalizadas nas bebidas para menina à percentagem em bar de tenha a bondade.
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Ver os príncipes – esses reais visitantes que excitavam hormonas e arrepelavam cabelos, desencadeavam crises familiares e animavam as pálidas colunas sociais das Kekas e das Chu-Chas – era a palavra de ordem, longe de escoltas ou de guardas ou mesmo de qualquer decoro. «Ai, ela ao natural é muito mais bonita do que em fotografia», segundo umas e uns, «o pai é muito mais interessante do que ele», segundo outros.
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Cá fora, entretanto, como se diz nas histórias aos quadradinhos, os motoristas jogam às moedas no interior das limusinas, os polícias apanham chuva fininha e, pela escadaria, os guardas que pareciam jarrões continuam com escassos tilintares.
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É, normalmente, à descida, quer dizer à saída, que toda a gente dá por eles – sai-se devagar, em fila longa e paciente, requintadíssima, fatigada, aguardando pelo abafo no bengaleiro ou pelo carro à porta. E nesse momento há ocasião para trocar olhares embaraçosos com os guardas emplumados. Foi nesse instante que aconteceu o que ninguém esperava.
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Num nicho do patamar, branca, leitosa, misteriosamente sorridente, inefável e nua, estava a estátua de uma donzela, esculpida por cinzel florentino dois séculos atrás. As pessoas olhavam-na apreciativamente na descida, comentando as pregas da túnica tombada a seus pés, numa perfeição de forma e volume que, na própria pedra, quase se adivinhava a transparência.
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Três degraus acima, mas perfeitamente alinhado no campo visual, sem poder olhar para mais nada que não fosse a estátua, o soldado da guarda estava em sentido havia quatro horas, fixo naquele sorriso, naquele corpo.
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Diria ele, mais tarde, no serviço de psiquiatria do hospital militar, que não tinha dúvidas – a estátua era uma desavergonhada que o provocara todo o tempo do seu quarto. Durante quatro horas nua e a sorrir-lhe ele aguentara, mas quando a estátua lhe piscara o olho não pudera resistir. A estátua podia ser de pedra, mas a sentinela e que não é de pau.
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Foi em plena cedência que o frufru das sedas o apanhara – abraçado à estátua, capacete de plumas pelo ombro, esporas numa excitação de tlintlins. Os enfermeiros da ambulância levaram-no delicadamente. Toda a gente pôs um ar condoído e disse que não com a cabeça. Não sei porquê.
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Que a estátua lhe piscou o olho, piscou, porque eu, que vinha atrás, bem vi. que eram homens que se perfilavam pela escadaria quando chegou ao primeiro patamar. Segurando o longo vestido e gozando o frufru da seda, dando o braço ao elegante cavalheiro de casaca e condecorações, estugava o passo miudinho na pressa de encontrar, finalmente, os príncipes, depois de toda a tarde se ter sujeitado aos maus tratos obsequiosos do instituto de beleza.
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Até ao primeiro patamar convenceu-se que, de um lado e de outro da passadeira, pela escadaria de mármore acima, se alinhavam preciosos jarrões. Foi um leve tilintar de esporas que lhe chamou a atenção – afinal, era pelo meio de homens perfilados, de espada desembainhada, que viera por ali fora, mantendo com o indicador um seio dentro do soutien, acertando a simetria do decote.
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Nenhum daqueles homens se movera. Dir-se-ia que estavam treinados para assistir àqueles últimos preparativos em trânsito, antes de os convidados desembocarem nos salões iluminados pelos belos candeeiros de cristal.
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Durante horas eles ficaram ali, sem um movimento, perfilados, brilhantes e emplumados, com vida apenas nos olhos e nas esporas, que espaçadamente se tocavam, sem nunca coincidirem com o bater de pestanas.
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Nos salões era a confusão da distinção e do mau gosto, misturados naquela combinação mesclada de classe média e outra assim-assim, com uns quantos aristocratas sobreviventes a darem o efeito das ginjas cristalizadas nas bebidas para menina à percentagem em bar de tenha a bondade.
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Ver os príncipes – esses reais visitantes que excitavam hormonas e arrepelavam cabelos, desencadeavam crises familiares e animavam as pálidas colunas sociais das Kekas e das Chu-Chas – era a palavra de ordem, longe de escoltas ou de guardas ou mesmo de qualquer decoro. «Ai, ela ao natural é muito mais bonita do que em fotografia», segundo umas e uns, «o pai é muito mais interessante do que ele», segundo outros.
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Cá fora, entretanto, como se diz nas histórias aos quadradinhos, os motoristas jogam às moedas no interior das limusinas, os polícias apanham chuva fininha e, pela escadaria, os guardas que pareciam jarrões continuam com escassos tilintares.
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É, normalmente, à descida, quer dizer à saída, que toda a gente dá por eles – sai-se devagar, em fila longa e paciente, requintadíssima, fatigada, aguardando pelo abafo no bengaleiro ou pelo carro à porta. E nesse momento há ocasião para trocar olhares embaraçosos com os guardas emplumados. Foi nesse instante que aconteceu o que ninguém esperava.
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Num nicho do patamar, branca, leitosa, misteriosamente sorridente, inefável e nua, estava a estátua de uma donzela, esculpida por cinzel florentino dois séculos atrás. As pessoas olhavam-na apreciativamente na descida, comentando as pregas da túnica tombada a seus pés, numa perfeição de forma e volume que, na própria pedra, quase se adivinhava a transparência.
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Três degraus acima, mas perfeitamente alinhado no campo visual, sem poder olhar para mais nada que não fosse a estátua, o soldado da guarda estava em sentido havia quatro horas, fixo naquele sorriso, naquele corpo.
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Diria ele, mais tarde, no serviço de psiquiatria do hospital militar, que não tinha dúvidas – a estátua era uma desavergonhada que o provocara todo o tempo do seu quarto. Durante quatro horas nua e a sorrir-lhe ele aguentara, mas quando a estátua lhe piscara o olho não pudera resistir. A estátua podia ser de pedra, mas a sentinela e que não é de pau.
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Foi em plena cedência que o frufru das sedas o apanhara – abraçado à estátua, capacete de plumas pelo ombro, esporas numa excitação de tlintlins. Os enfermeiros da ambulância levaram-no delicadamente. Toda a gente pôs um ar condoído e disse que não com a cabeça. Não sei porquê.
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Que a estátua lhe piscou o olho, piscou, porque eu, que vinha atrás, bem vi.