sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A DESPEDIDA

O homem tinha dito:
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- Seja franco, doutor!
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O médico saiu detrás da secretária, vagarosamente, pôs-lhe uma mão sobre o ombro e quase sussurrou.
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- É cancro.
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- Quanto tempo, doutor? - perguntou o homem sem o olhar, mas com aquele grau de cumplicidade no tom de voz que antecipava que ambos sabiam bem do que estava a falar.

- Um ano, ano e meio, no máximo - respondeu o médico.

Saiu do consultório devagar, numa confusão de ideias e de sentimentos, observando aqueles com quem se ia entrecruzando com uma sensação danada de inveja e, ao mesmo tempo, de raiva. «Porquê eu?!», perguntava, repetida e impessoalmente, sem ter propriamente entidade competente a quem dirigir a questão.
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Caminhou longamente, lentos e penosos quilómetros, interrogando-se sobre se devia ou não partilhar este segredo com mais alguém ou se ele devia ficar circunscrito apenas ao seu mutismo e ao segredo profissional do clínico. Esteve num café, que acabou por abandonar irritado com o ruído das vozes, e, acima de tudo, com os risos e as discussões estúpidas. «Ano e meio», pensava nessa altura, «ou antes, um ano, porque se sobrar alguma coisa faço férias». Na pequena praça onde ficava o seu prédio tomou a decisão - não diria nada a ninguém e ocuparia o tempo que lhe restava a ser aquilo que em criança desejara para quando fosse grande.

A família, ao princípio, não estranhou, nem protestou, quando vendeu a sua quota no escritório. Toda a gente pensou que decidira antecipar a reforma, gozar os rendimentos, cortar com uma vida de trabalhos e relações que lhe assegurara mais do que suficiente para viver medianamente.
A grande surpresa foi quando, algumas semanas mais tarde, anunciou que iniciava, no dia seguinte, a sua actividade de motorista de praça.
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- O teu pai ensandeceu! - comentou sua mulher para o filho do casal.
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Imperturbável, durante meses, correu pelas ruas da cidade, conheceu o que desconhecia mas adivinhava, riu, foi quase feliz e chegou mesmo a fazer uma viagem, com emigrantes, para França, num serviço que lhe apareceu.
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Um dia, sem dizer nada a ninguém, deixou-se ficar em casa.
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- Não vais trabalhar? - perguntou a mulher.

- Despedi-me - anunciou sem mais comentários.
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Durante o resto da semana leu e foi ao cinema, durante as tardes, em casa, sem palavras.
Uma manhã, ficou excitado com a leitura do jornal. Vestiu-se rapidamente e saiu. Não almoçou em casa nesse dia e, à tardinha, quando regressou, entregou seis bilhetes para o circo à mulher e disse:
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- Gostava que amanhã fosses à minha estreia como palhaço. Podes levar quem quiseres.
Nessa noite, mulher, filho e nora reuniram-se em casa destes últimos, preocupados com o que se passava.
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- Depois da vergonha do táxi, isto! - desabafava a mulher.
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- Mas que necessidade tem ele de andar a fazer estas figuras? - perguntava o filho.
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- Nenhuma, enlouqueceu! - comentava a nora.
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Só os netos riram e bateram palmas, contentes, perante o constrangimento geral.
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- Ena, pá! Bestial! O avô é palhaço...
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Enquanto a companhia esteve na cidade trabalhou todas as noites. Segurava, nos intervalos, a escadinha de corda da equilibrista sempre que esta tinha de subir ao arame e, uma vez por outra, foi-se abaixo, entre dois números - uma ocasião por causa das dores, as restantes por a falta de tempo lhe apertar o peito. Ninguém deu por nenhuma dessas crises e, embora sem talento especial, não fazia mal o seu papel de palhaço pobre, dedilhando aceitavelmente uma viola nas partes musicais.
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Por mais de uma vez, depois de o circo partir, teve de ficar de cama, pretextando achaques ligeiros, para se refazer das dores. Quando Dezembro chegou, deu fortes sinais de inquietação e, uma manhã, desembrulhou, no regresso a casa, uma peça de tecido vermelho e um rolo de pelúcia branco e, virando-se para a costureira da família, que todas as quintas-feiras costurava na saleta, ordenou.
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- Vai fazer-me um fato de Pai Natal!
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Morreu, sem se despedir, no dia 26 de Dezembro, ao princípio da tarde. Sobre a cama e a sorrir para o fato de Pai Natal! Deixou inconsolável viúva, um filho engravatado, uma nora estúpida e um par de netos que o adoravam. Deixou, também, uma conta bancária a descoberto.

7 comentários:

Chinha disse...

Fantástico...

Fui lendo o desenrolar desta existência destroçada a querer viver num ano uma vida.
A todo momento quase desejei que o desfecho fosse outro e não o que era certo e previsivel.

Fica um vazio na alma ao imaginar a partida dele ao lado do fato do Pai Natal.

Como sempre estas suas histórias deixam sempre vontade de chorar por mais!

Um excelente domingo

Um beijinho

Carlos Medina Ribeiro disse...

Chinha,

As crónicas que JL publica no «24 Horas» (e outras, remontando a Janeiro de 2005) estão disponíveis no blogue
Sorumbático(http://sorumbatico.blogspot.com)

Paula Martins disse...

Este texto é fabuloso, fez-me rir, sonhar e chorar, visualizei cada passagem da peça e ADOREI!

Beijinhos e um forte abraço

Cleopatra disse...

Sinceramente.... não sei que lhe diga.

Anónimo disse...

eu não entendi nada doutor..o que faço para entender esse fato?
abraços!!!

eu acho que é a minha mente que está com preguiça de aprender....mais a minha alma nescessita entender

Anónimo disse...

eu não entendi nada doutor..o que faço para entender esse fato?
abraços!!!

eu acho que é a minha mente que está com preguiça de aprender....mais a minha alma nescessita entender

Unknown disse...

é um texto bem interessante..