sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O CASAMENTO

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- O que se passa é que vocês são todas umas galdérias!
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A senhora, emplumada por uma estola de raposa prateada, abriu a boca esborratada de batôn pela comezaina, fez com ela um círculo perfeito, esbugalhou os olhos e disse:
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-Oh!
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O silêncio ampliou três vezes o redondo daquele «oh!».
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Mas ninguém disse mais nada, e foi no meio de estarrecido silêncio que, pálido e muito digno, de fraque e segurando luvas amarelas de pele de porco, o noivo abalou porta fora.
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Atrás deixou apenas destroços: a noiva, de branco até aos pés mas sem grinalda, soluçava. O pai da noiva desapertava os colchetes do vestido da desmaiada esposa, que amparava. As convidadas agarravam as tresmalhadas crias, lustrosas de veludos e meias de renda e sapatinhos de polimento. Os homens erguiam os ombros em ignorante interrogação, apertando os lábios em sinal de estupefacção.
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O bolo, de diversos pisos, adornava para o lado da faca que ficara cravada, a quatro mãos, pelos nubentes. Só um miúdo, de jaquetinha e calça de fantasia, colarinho branco de goma, sapatinhos de verniz, viu da janela do primeiro andar onde ficava aquele salão de aluguer - banquetes, casamentos, baptizados - o noivo desaparecer, dobrando a esquina, impecável no seu traje, com o braço hirto empunhando o par de luvas amarelas.
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Tudo começara quando o novel casal se preparava para cortar o bolo de casamento, em pose, com o fotógrafo a pedir «um pouco mais para a direita». Embevecidas, as famílias das duas partes contratantes, as convidadas e convidados, observavam, preparados para a salva de palmas, empanturrados de peru, arroz de marisco, rissóis de camarão e leitão frio, impantes de cup e ansiosos pelo espumante que provocasse o necessário flato.
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Nessa pausa breve, destinada a sorrisos benevolentes, ao descanso da orquestra, e à saída das crianças debaixo das mesas, o noivo empurrou a sua consorte, perfilou-se e, dirigindo-se à sua fiel companheira do bem e do mal, da doença e da saúde, até a morte os separar, proclamou, alto e bom som.
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- Você é uma grandessíssima galdéria!
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Entenda-se que não foi esse o nome que utilizou. O que ele disse foi bastante mais ofensivo, ainda que muito mais económico em sílabas - apenas duas - e parco em letras, somente quatro.
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Foi então que a senhora de estola de raposa prateada, com a boca cheia de empada, arregalou os olhos e, talvez com o ouvido prejudicado pela mastigação, perguntou:
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- O quê? Mas o que é que foi?
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E o noivo, muito didáctico e generoso, logo repetiu, englobando na explicação todas as senhoras presentes:
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- Foi que vocês são todas umas galdérias!
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Ninguém contestou. Em simultâneo, a noiva soluçou, perdendo flores de laranjeira, a mãe da noiva despenhou-se com fragor, o pai da noiva rugia.
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- Dou cabo dele! Que vergonha!
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Mas, pelo sim, pelo não, sempre foi perguntando em voz baixa:
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- A Teresinha fez alguma coisa?
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Seguiu-se o pandemónio, iniciou-se a debandada, deixando no meio dos despojos das carcaças de peru e de cabeças de leitão com laranjas na boca as duas famílias destroçadas de um casal que não consumaria a noite de núpcias na data devida.
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Uma semana mais tarde, iniciava-se a romaria: casa a casa, de cada convidado, o pedido formal de desculpas e a explicação devida. Segundo a versão do jovem casal, um grupo de amigos do noivo dera-lhe a beber uma taça de espumante onde diluíra cinza de charuto, o que teria efeito alucinogénio.
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Quanto ao desfecho de todo este caso, muitos anos depois de deixar de usar jaquetinha com calça de fantasia, posso eu testemunhar: os noivos foram muito felizes e tiveram muitos meninos.

2 comentários:

Paula Martins disse...

Ainda bem que tiveram muitos meninos e viveram felizes para sempre...Foi uma sorte que a idosa senhora ouvisse mal, porque com a boca cheia de bolo daquela maneira ainda corria o risco de se engasgar.
Adorei este hilariante conto. Obrigada
Beijinhos

Chinha disse...

O seu poder descritivo é algo fascinante.
Até o pormenor das luvas amarelas de pele de porco do noivo,não foi descurado.

Toda a cena envolvente e frustrante de uma boda terminada inesperadamente está hilariante.
As crianças a saírem debaixo das mesas e a convidada de boca atrafulhada de comida, tudo tipico de casamentos assim como os leitões de laranja na boca. :)

Estas suas histórias são realmente algo de sublime que ficam a pairar na mente.

Um bom resto de semana e

o beijo do costume