quarta-feira, 3 de setembro de 2008

OS MANOS

OS OSSOS QUASE ROMPIAM a pele do velho. Deitado, sem mover a cabeça, fixava o tecto horas a fio, ou fechava os olhos encovados nas crateras das maçãs do rosto, convertidas em picos alpinos pela excessiva magreza.
Quando o irmão entrou no quarto, o velho, estendido na cama, disse:
- Mano, vou morrer!
Na antecâmara, que servira de quarto de vestir, um montão de velhas cochichava todo o santo dia, sempre lestas a acorrer aos gritos irados do moribundo ou a deixarem-se dormitar agora e depois, num aparente concurso de cabeçadas. Havia instantes em que o silêncio era absoluto.
O velho tinha oitenta e nove anos e parecia ainda mais magro porque lhe tinham tirado a dentadura postiça. O irmão tinha oitenta e quatro anos e ainda caminhava direito por aquela casa onde ambos haviam nascido e brincado, no início do século.
- Mano, vou morrer!
Quem pensa que os velhos querem morrer, a partir de uma certa idade, engana-se. Nem todos. Este, por exemplo, mostrava um evidente receio da morte.
- Mano, vou morrer!
Algumas das velhas espreitavam em cacho, da ombreira da porta, e choramingavam de cada vez que o moribundo lançava o grito anunciador do que ia fazer a seguir, para o outro velho, que fora chamado e se perfilava, muito direito e minúsculo, à cabeceira.
Haviam brincado juntos, tinham-se batido, atravessado juntos muitas outras mortes e alegrias, estado de relações cortadas e agora encontravam-se lado a lado pela última vez.
- Deixa lá – disse o velho que acabara de entrar para acompanhar os últimos instantes do irmão –, todos teremos de morrer. Mas pode ser que estejas enganado e não morras, pode vir aí o doutor Umbelino e curar-te.
- Mano, lembras-te do doutor Umbelino? Sabes que idade tinha quando nos obrigava a tomar o óleo de fígado de bacalhau e tratou a tia Leopoldina da pneumónica?
- O doutor Gonçalves devia ter uns quarenta anos quando nos fazia isso.
- E então como queres que venha aí? Hoje que idade teria? Cento e vinte? Não pode ser! Mano, vou morrer!
- Olha, se morreres agora eu também não demorarei muito. Já vivemos o bastante. Se morreres agora, eu morrerei a seguir. Sabes, quando se morre é como fazer uma grande viagem. Fecham-se os olhos e morre-se. Não vai doer. A gente morre assim sem dar por isso, fechamos os olhos e morremos. Li que quando se morre entra-se numa grande luz, muito forte, e ela leva-nos, devagarinho primeiro, depois com muita velocidade, vamos por aí fora com a luz, a ver coisas muito bonitas...
- Que luz é essa, mano? De que luz falas?
- Da luz que nos leva quando morremos. É como viajar, mas em vez de ser de carro ou de comboio é de luz, e quando começamos a afastar-nos o suficiente da vida entramos noutra luz ainda mais brilhante e mais forte, e a luz fica então com uma velocidade assim como a dos aviões a jacto e leva-nos finalmente para o outro mundo
- Mano, que luz é essa? Sabes quem penso que é essa luz?
- Quem? Diz lá quem?
- A Luz Fernandes!
- A Luz Fernandes? Qual Luz Fernandes?
- Mano, aquela que namorámos os dois e que morava no pátio, ali em cima, e que levantava as saias e não trazia nada por baixo e com quem fazíamos aquelas coisas na escada do Ramos da capelista, lembras-te? Até me zanguei contigo quando descobri que também lá ias... É essa Luz Fernandes, mano?
O irmão, pequenino no seu fato de linho, de corrente de ouro atravessada no ventre inflado, ficou ainda um pouco mais, mas o irmão não reagiu. A coberta subia e baixava com a respiração e as velhas espreitavam agora todas à porta, e o velho, agarrando o chapéu creme e a bengala de bambu, de castão de prata, saiu devagarinho, depois de ter pedido para o avisarem «se acontecesse alguma coisa».
As velhas mandaram-no chamar ao fim da tarde. O irmão morrera sem voltar a abrir os olhos. Mas morrera a falar. Elas não perceberam o quê. Morrera a rir e a falar numa tal Luz Fernandes...

2 comentários:

Chinha disse...

A história é de um moribundo , mas incontestàvelmente é uma delicia.
A par da parte triste e obscura da morte tem um toque fabuloso de hilariedade.
A sempre inesperada hora da partida.
Realmente ( insisto), tem o condão de me transportar em absoluto aos locais em que se desenrolam as cenas.
Continua sempre a ser um privilégio lê-lo.

Um Bom Fim de Semana

Beijo

Chinha disse...

Vim na esperança de de mais uma história....

Bom Fim de Semana

beijo