sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O SOBRETUDO

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ERA AMARELO-TORRADO, macio, leve e quente. No seu interior, uma discreta etiqueta garantia «100% caxemira». Caía a direito, depois de ligeiramente cintado, e, só por si, conferia distinção e estatuto a quem o vestisse. Era um belo sobretudo.
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Para além da sua função protectora e calorífica, era um distinto tapa-misérias. Não importava o que se vestisse por baixo, nem que fosse um pijama de flanela às riscas, o sobretudo garantia ao seu dono o aspecto de quem vem dum elegante night-club, o ar de quem parte para uma selecta recepção numa embaixada, o porte de quem carrega sobre os ombros importantes decisões a tomar ou de quem conhece decisivos segredos de Estado.
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Durante meses, namorara aquele sobretudo na montra da elegante alfaiataria que o oferecia ao mercado. Chegara mesmo a entrar, a tocar-lhe e a prová-lo, mirando-se frente ao espelho com pequenas piruetas e pondo uma perna à frente da outra, agora a esquerda, logo a direita.
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Desistira, no entanto, face ao preço.
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- Mas repare Vossa Excelência que é de caxemira pura.
- Eu sei! Só que não tenho dinheiro para o comprar...
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O vendedor guardou então prudente silêncio, de quem não comenta, não confirma nem desmente.
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- Quando Vossa Excelência decidir, cá está à sua disposição.
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Entretanto, o frio apertava. Os jornais falavam de «Inverno rigoroso», de «frente de vento gélido proveniente da Sibéria», de «gente a morrer de frio sob as pontes de Paris», «alemães retidos pela neve nas auto-estradas» e «velhos a tiritarem pela Europa fora».
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Fazia-se ao frio ajeitando ao pescoço a gola da sua leve gabardina. Uma noite, em casa, depois do terceiro espirro consecutivo e de mais um ataque de tosse, a mulher decretou:
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- Tens de comprar um sobretudo!
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Concordava. Mas a comprar, o sobretudo só podia ser um - aquele, o sobretudo.
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Durante o fim-de-semana, enchouriçado em camisolas de lã e uma leve gabardina a tapar misérias, passou pela montra da elegante alfaiataria. Levava a mulher e um dos filhos consigo. Mostrou-lhes o sobretudo, anunciou-lhes o preço, falou-lhes da leveza que já experimentara ao prová-lo, exagerou quanto à onda de calor que sentira, exaltou tanto as qualidades e lamentou tanto o preço que a mulher disse:
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- Homem, compra o sobretudo. Também não é uma coisa que se faça todos os dias, e já viste os anos que um bom sobretudo como este te vai durar?
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Na semana seguinte aprofundaram o tema. Discutiam agora os aspectos orçamentais. Estabeleciam prioridades, coisas que passariam para mais tarde, o carro que se trocaria só no Verão antes das férias de Setembro. Quando se chegou a sábado, estava decidido e tornara-se possível – na segunda-feira, encontrar-se-iam depois do trabalho de cada um e, às seis e meia da tarde, iriam juntos comprar o sobretudo. No seu entusiasmo, ele não resistiu a dizer:
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- A loja fecha às sete, mas meia hora chega perfeitamente. Vais ver. Assenta como uma luva, parece que foi feito por medida para mim!
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A segunda-feira passou-se vagarosamente, as horas pareciam ter mais minutos do que de costume. Saíra de manhã sem gabardina para poder à noite regressar com o sobretudo vestido, por isso fora almoçar transido. Dez minutos antes da hora marcada já estava à porta do estabelecimento. A mulher atrasara-se e isso exasperava-o. Entraram na alfaiataria eram dezoito e quarenta – vinte minutos antes do fecho.
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O sobretudo ficava-lhe, realmente, tão bem como dissera. O vendedor chamava ainda a atenção para outro factor positivo:
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- E assim solto, com este cair, o senhor se quiser ainda pode vestir colete ou pulôver.
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Realmente, uma maravilha. A mulher parecia regressar a casa com outro homem. Em casa, penduraram numa cruzeta, no guarda-fato, o precioso sobretudo. Tudo para não deformar. Ele anunciou:
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- Amanhã levo a gabardina. Estreio o sobretudo na quinta-feira, naquele almoço importante que tu sabes.
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Quinta-feira saiu impante. O sobretudo dava-lhe, efectivamente, o aspecto de um senhor, como logo um colega comentou de manhã, no elevador da companhia onde trabalhava.
Saiu com tempo e chegou ao restaurante antes dos outros participantes no almoço. Esperou no bar, bebendo um porto seco, sem despir o sobretudo. Quando os outros chegaram teve alguma dificuldade em separar-se do sobretudo, que o empregado lhe pedia.
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- Não tem chapinha?
- Não se preocupe, que não é preciso – respondeu o empregado.
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O almoço correu bem. Levantaram-se da mesa a rir e pararam a dizer graças junto ao bengaleiro, um a um vestindo os abafos. Quando chegou a sua vez, olhou assustado para a gabardina azul e sebenta na gola que o empregado lhe estendia.
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- Não é isto! O meu é um sobretudo amarelo-torrado.
- Mas... então?! Não está cá mais nada. O senhor tem a certeza?
- Homem, até lhe perguntei se não tinham chapinhas numeradas.
- Olhe que isto nunca nos sucedeu.
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Saiu no meio da indiferença dos outros. «Deixe lá que fez uma boa acção», gracejava um, «vai ver que aparece», animava outro, «homem, sobretudos há muitos», filosofava um terceiro, e o último sentenciou «a saúde é que é importante. Antes isto do que partir uma perna».
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Despediu-se, desceu pela boca do metropolitano, anónimo e insignificante, de fatinho de meia estação, com as lágrimas nos olhos e a tiritar de frio. Desde esse dia que ninguém o viu usar sobretudo, nem naquela semana em que nevou no Ribatejo, o que não sucedia desde o início do século.

7 comentários:

Chinha disse...

Olá boa noite

Fiquei pregada do principio ao fim da história. Não fazia a menor ideia de qual seria o desfecho.
Não obstante ao longo de toda a narrativa estar a achar piada à tremenda luta para adquirir o sobretudo, tive que no final ficar com uma certa tristeza, ao imaginar o desgosto de tal criatura ao ficar sem o seu adorado abafo.

Sempre impressionantemente envolventes estas suas histórias.

Continua a ser sempre um privilégio lê-lo

Uma boa semana

beijo

Joaquim Letria disse...

Já viu o que é ter de clicar no reply para lhe retribuir o beijo?!Ah, cibernética! mulher virtual!!
Um bj do jl
P.S.-Virtual e virtuosa...
semana feliz!

stériuéré disse...

Quando vi, li e adorei. Já a minha mãe me falava do sr. Letria, e já na altura era muito gabado. Adrei ler a história, entre as fantásticas descrições pormenorizadas e os pequenos detalhes de moda. Caiam que nem luvas. Já agora atrevo-me a convidá-lo pa uma pequena visita ao meu modesto e humilde blog , seria com enorme prazer que iria receber a sua visita e uma pequena critica á minha insignificante escrita. Fique bem. stériuéré

Paula Martins disse...

Olá Joaquim, tomei a liberdade de entrar no seu cantinho e posso dizer que fui muito bem recebida pelos magnificos textos que li, voltarei mais vezes.

Beijinho

Chinha disse...

Em tarde de sol, uma passagem na procura de mais uma história....

Bom fim de semana


beijo

Carlos Medina Ribeiro disse...

Cara Chinha,

Poderá encontrar outras crónicas de J.L. em:
http://sorumbatico.blogspot.com

Algumas, que remontam a Janeiro de 2005, encontrará em "Arquivo".

Chinha disse...

Boa noite

Agradeço ao Carlos Medina Ribeiro pela informação.

Irei certamente pesquisar, assim que o tempo o permita.

Beijo e boa semana