sábado, 17 de julho de 2010

ÁLIBIS

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Por Joaquim Letria

UM AMIGO meu, que é tipógrafo, diz que leva sempre um exemplar do jornal onde trabalha «para mostrar em casa à mulher que esteve a trabalhar durante o dia».
Um pescador, que conheço, também costuma passar pelo mercado, não para se gabar das suas façanhas, mas para a mulher não desconfiar de que não foi à pesca.
Um calceteiro, com quem falei há tempos, confessou-me que leva diariamente uma dor de rins para casa a fim de a mulher lhe não fazer cenas de ciúmes.

Aquele provador de vinhos, que encontrei, explicou-me também que nunca lavava os dentes antes de a mulher ter a certeza do volume do trabalho que diariamente o avassala.

Outro que tal, era aquele noticiarista que antes de ler as notícias ao microfone dizia: «Olá, querida!»

Não há dúvida que há mulheres ciumentas e maridos que não querem problemas em casa. Penso, no entanto, que os homens abusam.
Os casos que citei são bons exemplos de homens felizes. O seu trabalho faculta-lhes o álibi que as respectivas mulheres exigem.
Agora, se vocês são meus amigos, digam-me: Acham, francamente, que a minha mulher vai acreditar que levei todo o dia para escrever isto?

sexta-feira, 9 de julho de 2010

AS REGATAS DO RISSOL

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COCKTAILS E RECEPÇÕES são, em regra, boas fontes de notícias. Frequentei-os sempre por prazer, uns, por dever de ofício, outros. Mas quer num caso quer noutro encontrei sempre grande motivo de interesse na observação daquilo que chamo «as regatas do rissol».

Figuras simpáticas sulcam as salas a uma velocidade de cruzeiro constante, extremamente manobráveis, com braços e sorrisos sincronizados, respectivamente para o uísque e para as pessoas, quer dizer, sorrindo à direita enquanto o braço esquerdo apanha na passagem um copo do tabuleiro que vem em sentido contrário.

Sabem conviver telegraficamente: sete palavras a este antes de arrancar para aquele, passando pelos croquetes, com respectiva pausa posterior para deglutir o primeiro e engolir o segundo com tempo no caminho para limpar os dedos ao cortinado.

São perfeitos e eficientes. Trata-se, sem dúvida, duma arte difícil: sorrir enquanto se mastiga, gargalhar enquanto o caviar desliza pelo esófago e principalmente conseguir comer relativamente bem sem que se dê por isso. Parece evidente que escrevo estas linhas por despeito, mas, no fundo, trata-se duma inveja que não consigo esconder.

E sabem porquê. É fácil, nos cocktails só consigo comer pinhões, o que para além de engordar reconheço não ser maneira de estar em sociedade.

As mais das vezes, uma pessoa chega cansada, atrasada, contrariada, apressada. Metem-lhe um copo na mão, um bolinho de camarão no outro, acertam-lhe com um sorriso e desaparecem duma forma que é como quem diz «governa-te!».

Uma pessoa penetra em todo aquele abafado ruído dentário, navega à bolina por entre pãezinhos de leite e olhares acusadores. Quando a confiança começa a regressar, invariavelmente a dona de casa diz.

- Ainda não o vi comer. Não faça cerimónia. Faz favor de estar à sua vontade.

E lá se vai essa confiança, na eloquência dos nossos «hum, hum», com o folhado a saltar-nos da boca para a carpeta, com o sorriso transformado em esgar violáceo, com a consciência a perguntar sobre quem vai pensar e acreditar que aquela era a primeira empada?

- É por causa destas e doutras que admiro e invejo a actuação de quem pratica com à-vontade as regatas do rissol.

E é com tristeza que só consigo comer pinhões descascados. Minto: às vezes também como amendoins ou castanhas de caju.